Com a proposta de simplificar a regulação, o governo de Jair Bolsonaro alterou as Normas Regulamentadoras (NRs) relativas a questões de segurança e saúde no ambiente de trabalho. Na reformulação, publicada na quarta-feira (31), as normas mais modificadas foram a NR 1 (que serve como uma disposição geral para outras normas), a NR 2 (relativa à inspeção prévia em qualquer tipo de empresa) e a NR 12 (sobre segurança no trabalho no uso de máquinas e equipamentos).
O balanço dos especialistas é que as alterações facilitam a abertura de empresas e a compra de equipamentos.
As NRs surgiram em 1978, quando o governo brasileiro criou 28 normas de uma só vez. Até a publicação da portaria do governo Bolsonaro, o país tinha 36 delas. Agora, com uma delas revogada, passa para 35.
O objetivo dessas regras é estabelecer obrigações, tanto a trabalhadores quanto a empregadores, para evitar e prevenir acidentes e doenças no trabalho.
Como ato do executivo, as portarias do governo federal entram em vigor imediatamente após a publicação. Apenas quando há a necessidade de adaptações, é fixado um prazo para que a portaria passe a vigorar. Neste caso, as portarias são de vigências imediatas.
Conheça as principais mudanças e o como essas normas devem afetar as empresas e os trabalhadores:
Norma Regulamentadora 1
O que muda?
- Regra que permite ao trabalhador suspender o serviço em caso de risco, que antes estava detalhada em diferentes normas, agora está prevista como conceito geral.
- Pequena empresa de risco 1 e 2 (de menor grau) deixa de ser obrigada a realizar programas de prevenção de risco ambiental e programa de controle médico.
- Sem tais programas, porém, essas companhias podem ficar desprotegidas em ações trabalhistas.
- Trabalhadores das pequenas empresas podem ficar desprotegidos sem acompanhamento médico.
- Aposentadoria especial para trabalhador de pequena empresa fica ameaçada
- Trabalhador que fizer cursos de segurança numa área específica em uma empresa não precisa fazer outro curso com o mesmo conteúdo se trocar de emprego (em menos de 2 anos) e assumir área correlata.
Entenda:
1) Abrangência da norma:
Essa norma funciona como um guia para a aplicação das demais NRs. Na prática, ela já tinha esse caráter, o que ocorre agora é uma atualização.
Por exemplo, constava em algumas regras (aquelas que envolviam eletricidade, combustível ou altura), a medida que permitia o trabalhador interromper sua atividade ao constatar risco. Agora essa medida passou a integrar a NR 1 e tornou-se universal, portanto, aplicável a todas as normas.
O fim de especificidades dentro de cada norma, porém, pode atrapalhar a fiscalização, segundo a presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto.
— Essa norma vinha na mesma linha da convenção 155 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Agora não, ela desorienta a fiscalização do trabalho quanto a rigidez laboral — disse.
— A questão da certificação de aprovação de instalações, por exemplo, antes você tinha uma série de critérios, e agora elas se tornaram mais gerais. Então como você vai saber que uma empresa está adotando instalações consideradas seguras? — questionou.
2) Pequenas empresas
Uma das regras universais dessa norma é que o microempreendedor e a empresa de pequeno porte não precisam mais elaborar programas sobre prevenção de risco ambiental e sobre controle médico de saúde. Para isso, porém, é preciso que esses estabelecimentos estejam entre grau de risco 1 e 2 (confira no quadro 1 o grau de sua empresa) e não possuam riscos físicos, biológicos, químicos e ergonômicos.
Na avaliação do advogado trabalhista Henrique Soares Melo, do escritório NHMF, a mudança será benéfica para as pequenas empresas que não apresentavam qualquer tipo de perigo ao trabalhador.
— Até então, um escritório de pequeno porte, que tinha 20 ou 30 pessoas trabalhando, precisava todo ano contratar uma consultoria para fazer esses programas. Não faz sentido um escritório, cujo maior risco é cortar a mão no papel, ter um documento complexo desses que tem custos e precisa de renovação anual — defendeu.
A definição desses riscos, no entanto, ainda não está clara, segundo o médico e diretor do Instituto Paulista de Segurança e Saúde no Trabalho João Opitz Neto.
— Por exemplo, uma pessoa que trabalha muito tempo sentada ou muito tempo em pé se enquadra em risco ergonômico — explicou.
Além disso, na avaliação de Opitz Neto, sem um acompanhamento médico, o trabalhador pode ficar desassistido, enquanto a empresa fica sem provas a seu favor em disputas judiciais.
— Para a empresa de menor porte o custo desses programas é mesmo elevado, mas não ter esse controle e fazer documentos avulsos, como é proposto agora, vai ser um procedimento meramente protocolar porque o médico não conhecerá a empresa nem os riscos operacionais — avaliou.
— Isso para o trabalhador é ruim porque não vai haver alguém acompanhando a saúde dele no ambiente de trabalho. Para as pequenas empresas também, porque numa eventual ação na Justiça do Trabalho, não vão ter documentos para conseguirem comprovar determinadas situações — afirmou.
Outro ponto levantado pela advogada Adriane Bramante, especializada em direito previdenciário, trata sobre aposentadorias especiais. Ela explica que para a solicitação dessas previdências é exigido que a empresa apresente um Laudo Técnico das Condições do Ambiente de Trabalho (LTCAT). Quando a companhia não possui esse documento, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) aceita o programa de prevenção de risco ambiental, que agora deixa de ser exigido das empresas de risco 1 e 2.
— A empresa pode alegar que não tem os riscos (químico, físico, biológico e ergonômico) e não fazer o programa. Então isso fica sob responsabilidade da fiscalização, que hoje, na verdade, é bem pouca —explicou.
— Por um lado é bom ter alterações e modernizações nas leis, por outro precisa ter mais critério técnico. O que acontece aqui não é modernização, e sim desburocratização — disse Bramante.
Vale lembrar que essa dispensa não desobriga as empresas de realizar exames médicos admissional e demissional.
Além disso, as informações sobre segurança e trabalho precisarão ser declaradas digitalmente pelos estabelecimentos. Por enquanto, não há um sistema da Secretaria do Trabalho para receber tais dados, e enquanto não houver essa plataforma, o documento estabelece que as empresas mantenham uma declaração de inexistência de riscos em suas sedes.
3) Aproveitamento de cursos de capacitação
A norma regulamentadora 1 também estabelece que treinamentos de capacitação poderão ser aproveitados de forma total ou parcial por uma empresa diferente daquela que forneceu o curso.
Por exemplo, um trabalhador do setor elétrico que fez um curso de capacitação na empresa 1 foi contratado tempos depois pela empresa 2 para exercer a mesma função que tinha no seu emprego anterior. Essa empresa 2 não precisa necessariamente fornecer um novo curso de capacitação. Ela pode utilizar o curso dado pela empresa 1.
O treinamento, no entanto, precisa ter sido feito há menos de dois anos, e o trabalhador precisa ter cumprido toda a carga horária e conteúdo exigidos.
Para a advogada trabalhista Mayra Palópoli, essa alteração permite maior realocação dos trabalhadores no mercado de trabalho.
— Isso facilita a recolocação porque reduz o custo do empregador, contratando uma pessoa que havia sido qualificada no emprego anterior, e que vai exercer a mesma função — explicou.
Norma Regulamentadora 2
O que muda?
- Não é mais obrigatória a inspeção prévia de órgãos do trabalho para qualquer estabelecimento abrir as portas.
- A fiscalização pode ocorrer após o início das operações.
- A não exigência dessa análise prévia em companhias de risco 3 e 4 (de maior grau) pode colocar trabalhador em perigo.
Entenda
Essa norma foi revogada nas mudanças feitas pelo governo. Isso significa que ela deixa de valer. Em seu primeiro item, essa NR exigia que todo estabelecimento novo, antes de iniciar suas atividades, devesse solicitar aprovação de suas instalações.
Sobre a necessidade dessa inspeção prévia, há quem concorde com a mudança e quem discorde. Para o advogado André Fittipaldi, do escritório Tozzini e Freire, a mudança é positiva, uma vez que tira um entrave para abrir o próprio negócio, sem extinguir a fiscalização.
— Na prática tira uma burocracia que existe para abrir uma empresa, mas não muda o fato de que a fiscalização pode a qualquer momento ocorrer — segundo Fittipaldi.
Para o advogado Henrique Soares, essa norma já não era seguida à risca pelos órgãos fiscalizadores.
— Era um documento muito raro de encontrar. Era uma obrigação um tanto em desuso. O que acontece é que a própria fiscalização do trabalho já estava deixando de solicitá-lo. Em resumo, estamos falando quase de uma letra morta — explicou.
Acabar com a exigência dessa inspeção em todas as empresas, contudo, não seria o ideal, de acordo com o médico Opitz Neto.
— O bom senso seria um meio termo. Por exemplo, para empresas de grau de risco 1 e 2 não teria inspeção prévia e para as de grau de risco 3 e 4 teria. Tirar totalmente é complicado — defendeu.
— Para uma lanchonete e para atividades sem risco, tudo bem não ter essa inspeção prévia. Para uma grande indústria, o mais coerente seria ter essa inspeção — avaliou Opitz Neto.
A presidente da Anamatra classificou a revogação da nortma como "assustadora".
— Sempre que se fala em saúde e segurança no ambiente do trabalho, se fala em prevenção. Com o cancelamento disso, nós estamos recuando em políticas de prevenção de acidentes e adoecimentos em segmentos econômicos que são conhecidos por serem perigosos — afirmou.
Norma Regulamentadora 12
O que muda:
- Máquinas compradas no exterior e que têm certificação internacional não precisam se adequar a normas da NR 12, quando lei brasileira não fizer detalhamento.
- Quando máquinas e equipamentos são certificados pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia), não é preciso mais adequação às regras da NR 12.
- Equipamentos estáticos e ferramentas portáteis não precisam mais ser certificados pela NR 12.
Entenda
A NR 12 é a mais debatida e polêmica entre as normas regulamentadoras, segundo os especialistas ouvidos pela Folha. Isso porque ela estabelece exigências em relação a máquinas e equipamentos que as empresas utilizam.
Mudanças nessa norma já vinham sendo solicitadas por empresários desde 2010, quando uma atualização a ampliou criando especificidades.
1) Certificação internacional
Até a publicação da portaria do governo Bolsonaro, máquinas e equipamentos comprados no exterior precisavam passar por uma avaliação interna no Brasil e receber a certificação de que aquele instrumento seguia todas as exigências da NR 12. Com a nova portaria, algumas máquinas (aquelas em que a lei brasileira não entra em detalhe) não precisam mais se adequar a norma.
2) Certificação pelo Inmetro
Antes da portaria publicada pelo secretário Rogério Marinho, empresas que compravam máquinas já certificadas pelo Inmetro tinham que adequá-las também com as regras da NR 12. Agora a certificação da entidade basta para a utilização desses equipamentos.
3) Equipamentos estáticos e ferramentas portáteis
Como a norma regulamentadora 12 era abrangente, máquinas que não tinham nenhum movimento (as estáticas) tinham de passar por certificação. O mesmo ocorria com ferramentas de pequeno porte, como parafusadeiras. A nova portaria especifica que esses equipamentos não precisam mais se enquadrar nas normas da NR 12.
Embora não tenha feito uma avaliação geral sobre todas as mudanças, Fittipaldi disse que a burocracia exigida para seguir todos os dispositivos da NR 12 dificultava o trabalho das empresas. Agora, segundo o advogado, o país "passa a se comunicar com as regras de fora".
— O universo disso, para ter todas as formalidades da NR 12 cumpridas, era praticamente impossível. Não estou falando apenas de custo, mas de documentação. Até para inovar o maquinário, porque teria que passar por todo esse procedimento novamente — disse.
Na avaliação de Noemia Porto, no entanto, as modificações estão tirando a segurança que a norma garantia.
— Máquinas que recebem certificação internacional serão consideradas automaticamente seguras. O que é um problema, antigamente não era assim. Agora há uma presunção inicial de segurança — afirmou.
— A peneira rotativa, por exemplo, pelas atuais modificações, como é uma máquina importada, vai ser considerada, apenas por isso, em razão das conformidades das normas técnicas internacionais, como segura. E não precisa passar pelos ajustes da NR 12 —explicou.
Grupo de trabalho
Além da alteração das normas, o governo também criou um grupo para revisar a política de segurança e saúde no trabalho. Ele será composto por três representantes indicados pela Secretaria do Trabalho, dois representantes indicados pela Secretaria da Previdência, três representantes dos empregadores e três dos trabalhadores.
O grupo terá 60 dias (após publicação de portaria com os nomes dos membros) para desenvolver uma proposta de revisão da Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST).
A participação dos membros será considerada prestação de serviço público relevante, sem remuneração.