A cada cinco pessoas que trabalhavam no meio rural há 11 anos, uma deixou o campo no Rio Grande do Sul. Essa migração levou o Estado a ter, pela primeira vez, menos de um milhão de pessoas ocupadas na atividade rural, totalizando 983.751 pessoas, segundo o Censo Agropecuário 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A realidade do Estado é a mesma de Canguçu, município que mais perdeu trabalhadores entre os 497 municípios gaúchos. Hoje, pouco mais de 21 mil resistem vivendo da atividade agropecuária, 5,8 mil a menos do que em 2006.
Localizada no sul do Estado, Canguçu vem perdendo as características que a credenciam como capital nacional da agricultura familiar e maior minifúndio da América Latina. O tabaco e a fruticultura cedem ao avanço da soja, as pequenas propriedades vêm sendo incorporadas a latifúndios, e a mecanização substitui a mão de obra jovem, que foi em busca de novas oportunidades.
Morador da localidade Estância da Figueira, o produtor Arlescio Reichow Thurow, 46 anos, é de uma família que há décadas cultivava tabaco. Há seis anos, incorporou a soja e, desde o ano passado, aposta apenas no grão dourado:
– Parei com o fumo, porque não tinha mais gente para trabalhar. Como a safra coincide com a da soja, optei pela atividade em que as máquinas podem fazer o trabalho de muitas pessoas.
A realidade do produtor é a mesma de outros agricultores do município. Segundo o censo, a área plantada de soja em Canguçu cresceu mais de 760% em pouco mais de uma década, passando de 4,7 mil hectares para 41 mil hectares. Mesmo exigindo proporcionalmente menos espaço para ser lucrativo, o tabaco registrou queda de 23,4%, ocupando atualmente 9,8 mil hectares.
Para a nova atividade, Thurow investiu em colheitadeiras, tratores, caminhão e semeadoras e terras. Cultiva em 60 hectares próprios e outros 40 hectares arrendados de vizinhos – que desistiram da agricultura.
– Uns não têm mais idade para plantar e cedem as áreas em troca de uma porcentagem do lucro. Outros foram embora, em busca de oportunidades na cidade. Só ficou quem tem recursos para comprar máquinas e terras. Só consegui porque planejei e guardei o dinheiro do fumo – conta o produtor.
O levantamento do IBGE indica que a desocupação em Canguçu se deu, majoritariamente, nas pequenas propriedades: dos 1,8 mil estabelecimentos agropecuários reduzidos, apenas 50 tinham mais de 50 hectares. As unidades com mais de 50 hectares, porém, apresentaram leve crescimento, passando de 882 para 895.
Busca de oportunidades de trabalho nas cidades
Duas causas são consideradas fundamentais para o esvaziamento do campo, segundo o chefe do escritório municipal da Emater, Gilvane Furtado: a migração para a área urbana, provocada pelo aquecimento de setores como comércio, construção civil e polo naval de Rio Grande (há alguns anos) e o envelhecimento da população rural. Esta última é resultado da queda na natalidade e da saída dos jovens em busca de estudo, principalmente para a vizinha Pelotas.
– Tem localidades no Interior em que não se encontra uma única pessoa com menos de 35 anos. O jovem foi em busca de novas perspectivas, pois houve certo desencanto com a atividade primária – explica Furtado.
Coordenador de Agricultura e Pecuária da prefeitura, Michel Aldrighi Gonçalves, considera a situação um desafio social e econômico, principalmente se seguir na direção da monocultura da soja e dos latifúndios, pois a economia local depende da atividade.
– Se houver um revés na cultura da soja e o agricultor tiver de retornar à origem de produtos tradicionais, como fruta e fumo, faltará mão de obra útil e especializada – observa o agrônomo, informando que, enquanto cem hectares de soja podem ser cultivados por uma pessoa, um hectare de morango exige pelo menos quatro.
Professor de Agronomia da Universidade de Passo Fundo (UPF), Benami Bacaltchuk complexifica o problema de investir na soja e questiona:
– Por que as pessoas utilizam tecnologia no plantio de soja? Porque é uma das poucas culturas que remunera bem. Mas quanta soja (nós) ou os animais consumem? Precisamos é de batata, feijão, hortaliças e outros produtos do dia a dia, cujo valor pago não é suficiente para manter o agricultor satisfeito. Agricultor não é máquina, também quer conforto.
O agrônomo pondera que a garantia de futuro da produção de alimentos não está na intensificação, mas na incorporação de valor aos produtos.
– É preciso organizar o sistema social no meio rural para que os alimentos se tornem agregadores de valor, por meio de serviço, produção semi-industrial ou industrial. A saída é o associativismo, as cooperativas ajudam a minimizar as dificuldades de produção e de logística, e não ser apenas empregado nas grandes integradoras – afirma Bacaltchuk.
Trabalhadores substituídos pela tecnologia
A redução de pessoas no campo é realidade no Rio Grande do Sul e no Brasil. Em 11 anos, 248 mil saíram da zona rural gaúcha, o que representa queda de cerca de 20%. No país, a retração foi de 1,5 milhão de pessoas, encolhimento de 9,2% em relação a 2006. Segundo a professora Rosa Maria Vieira Medeiros, chefe do departamento de Geografia da UFRGS, no país, de modo geral, a redução está associada ao uso crescente de tecnologias, que resulta na necessidade menor de trabalhadores.
Os dados do IBGE corroboram a análise: o número de tratores cresceu quase 50%, mesma média do Estado. Outra característica local é a limitação da expansão fundiária. Como não há novas terras para explorar, a forma de o produtor gaúcho ampliar é a partir da aquisição de terras. Assim, o número de propriedades caiu, mas a área utilizada aumentou.
– A particularidade do Estado é ter sido o fornecedor de agricultores especialistas para as diferentes regiões brasileiras. Podemos afirmar que, onde se cultiva soja no país, é possível registrar a presença de gaúchos – explica Rosa.
Outro problema mais relevante localmente é o envelhecimento da população. No meio rural, os produtores com mais de 65 anos passaram de 17,5% para 23,1% em 11 anos, enquanto o número de jovens decresceu – de 1,9% para 1,2% na faixa etária de até 25 anos.
De acordo com João Carlos Costa Gomes, chefe de Transferência de Tecnologia da Embrapa Clima Temperado, em Pelotas, o Rio Grande do Sul passou por processo histórico de redução de pessoas por motivos diferentes:
– Há cem anos, o número de filhos significava mão de obra na agricultura. Há 50 anos, o modelo econômico via o campo como reservatório de trabalhadores para a indústria. Hoje, a taxa de natalidade é menor e os empregos no meio urbano chegaram ao limite. Com isso, a mecanização, a intensificação da produção e o uso de agrotóxicos são tanto solução como causa de um número menor de pessoas no campo.
Gomes projeta que, assim como na Europa, a tendência é de retorno para o campo, em busca de vida mais tranquila e da produção de alimentos em rede. Para isso, acrescenta Bacaltchuk, será necessária mudança nas políticas e criação de nova cultura:
– Os americanos já entenderam isso. A saída é a agricultura social: eles (os urbanos dos EUA) sustentam o meio rural deles, porque já passaram fome. A gente vive no paraíso porque nunca tivemos um inverno que mata tudo e temos terras férteis. Falta pagar o valor justo pelos alimentos.
Tradição familiar na agricultura ameaçada
A falta de sucessão nas pequenas propriedades impacta as que se dedicam a atividades mais intensivas de mão de obra. Erico Feil, 65 anos, vem de uma família de agricultores, mas a tradição vai parar por aí. Seus dois filhos saíram do interior de Lajeado, no Vale do Taquari, para estudar. Feil se orgulha de ter pago com o leite o investimento no futuro dos filhos – um doutor e uma mestranda em Contabilidade –, mas lamenta pela descontinuidade da atividade, realidade confirmada pelo Censo Agropecuário.
– É uma pena, porque agora temos tudo organizado e ordenha mecanizada que faz todo o trabalho pesado – conta o produtor.
Na visão do professor de Agronomia da Universidade de Passo Fundo Benami Bacaltchuk, essa dificuldade está atrelada à falta de investimentos do poder público e conscientização dos produtores:
– Em geral, os pais não entenderam que, para os filhos voltarem, eles têm que ter autonomia para inovar. Precisamos treinar os familiares para aceitarem que existem outras maneiras de produzir.
Por enquanto, Feil e a mulher, Ilária, 64 anos, dão conta de ordenhar e alimentar as 32 vacas, mas têm consciência da limitação que pode chegar com a idade ou se a saúde falhar.
– O que mais dói é pensar que vamos morrer com esse conhecimento todo que a gente tem – suspira Feil.