As novelas são um patrimônio cultural do Brasil. Há décadas envolvem os telespectadores com tramas, personagens, fantasias e semelhanças com a realidade. Movem um público digno de final de Copa do Mundo quando o último capítulo é exibido. Agora, as redes sociais viraram praticamente uma extensão dos folhetins, a nova sala de discussões sobre as histórias.
Mesmo com as produções ainda com as gravações paralisadas devido ao coronavírus, as novelas seguem na boca do povo. Para tapar os buracos na programação, o jeito foi colocar no ar histórias antigas. E as reprises estão dando o que falar: Fina Estampa (2011), na faixa das 21h da Globo, e Êta Mundo Bom (2016), no Vale a Pena Ver de Novo, na mesma emissora, registraram aumento na audiência desde que começaram as restrições da pandemia.
Tudo isso porque as novelas mexem com a memória afetiva do público e, durante o isolamento social, saíram do campo do saudosismo para virar opção de entretenimento – mesmo que todo mundo já saiba o final das histórias. Pensando nisso, GaúchaZH lançou um desafio nas redes sociais: qual novela marcou a sua vida?
Somente no Instagram, 370 respostas foram enviadas e 87 novelas diferentes foram citadas pelos leitores, passando por títulos de diferentes épocas. Com direito a empates, as mais citadas foram:
- Avenida Brasil (2012) e O Clone (2001) – 29 vezes
- Laços de Família (2000) e A Viagem (1994) – 21 vezes
- O Rei do Gado (1996) – 19 vezes
- Roque Santeiro (1985) – 16 vezes
- Caminho das Índias (2009) – 15 vezes
Chamou a atenção que, em algumas respostas, os leitores citaram personagens ao invés do nome das novelas, como “a novela do Félix” (se referindo ao personagem de Mateus Solano em Amor à Vida) e “empreguetes” (citando as protagonistas de Cheias de Charme).
Avenida Brasil e O Clone: o que elas têm que outras não tem?
Um dos fenômenos da dramaturgia nacional se chama Avenida Brasil (2012). A história escrita por João Emanuel Carneiro retratou a época de ascensão da classe C, proporcionada por um período de vigor na economia. O Brasil como ele é foi retratado na tela, com diversidade de rostos e situações financeiras, confusões familiares e a simplicidade de um povo trabalhador e esperançoso.
É totalmente justo que a novela ainda esteja na cabeça dos telespectadores – ainda mais por refletir um momento que possa trazer boas lembranças para as pessoas. Além disso, foi recentemente reprisada na TV aberta.
— A gente está em um momento de resgate. Voltar ao passado, ter memórias boas, traz um certo acolhimento, um certo conforto. E as novelas fazem muito isso. Assistindo, tu te descolas um pouco dessa situação atual e acaba relembrando um tempo em que a pandemia não existia — analisa Paula Puhl, doutora em Comunicação e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Exibida na Globo 10 anos antes de Avenida Brasil, O Clone (2001) pode ser revista atualmente no canal Viva, paraíso das reprises de novelas. A trama de Glória Perez é líder de audiência na TV por assinatura em seus horários de exibição.
Cultura árabe, clonagem humana e dependência química deram o tom da história, que misturou tradição e modernidade para relatar a história de amor de um dos casais mais lembrados da dramaturgia brasileira: Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício).
— Impressionante o poder que as novelas têm. O impacto que causam diretamente na vida das pessoas. Essa então, que roda pelo mundo até hoje, nem se fala. Sinto orgulho de ter feito parte desse projeto tão inovador na época — disse Giovana em entrevista recente ao site Gshow.
Um dos sucessos de O Clone foram as expressões árabes faladas pelos personagens e que entraram no vocabulário dos telespectadores. Quem não se lembra da famosa frase “Arder no mármore do inferno”? Ou da expressão “Inshalá”? Fora os bordões “Cada mergulho é um flash” e “Não é brinquedo, não!”. A novela também ficou famosa pelo figurino árabe, com suas túnicas, lenços, véus e jóias, que encheram as vitrines do comércio popular na época. Houve também uma grande procura por aulas de dança do ventre.
— Essas reprises até podem fazer com que algumas modas antigas retornem agora, nunca se sabe — reflete Paula Puhl, que é professora da disciplina de Moda, Identidade e Mercado, ressaltando a relevância das novelas ao lançarem novas tendência para o público.
Reconexão com a fé
Remake de uma novela exibida na TV Tupi nos anos 1970, A Viagem (1994) aparece em segundo lugar na lista das tramas citadas pelos internautas nas redes de GaúchaZH. Foi o primeiro folhetim que abordou o espiritismo e fez sucesso na TV. A autora Ivani Ribeiro usou a doutrina codificada por Allan Kardec para compor sua história e seus personagens. Livros como Nosso Lar e A Vida Continua, psicografados pelo médium brasileiro Chico Xavier, também foram a base para a trama.
Com Antônio Fagundes, Cristiane Torloni e Guilherme Fontes no elenco, A Viagem quebrou paradigmas ao falar de vida após a morte, reencarnação, espíritos obsessores e suicídio. Trouxe ideias reflexivas sobre fé, coragem e caridade. Além disso, abriu as portas para a temática espírita nas novelas. A partir dos anos 2000, o assunto apareceu em outras tramas, entre elas Alma Gêmea (2005), Além do Tempo (2015) e Espelho da Vida (2018) – também citadas pelos leitores de GZH no Instagram.
Nesse momento de incertezas e mudança de hábitos pela pandemia, é interessante notar como histórias que falam de esperança e causam alento têm espaço no imaginário do público.
— Tenho a percepção de que as pessoas não estão buscando assuntos muito sérios e tristes, mas sim produtos culturais que tirem um pouco elas dessa situação de preocupação do número de pessoas infectadas. É um escape — acredita Paula.
Interesse por política
Roque Santeiro (1985), lembrada até hoje pela censura na ditadura militar, é uma história que fala de política e corrupção no Brasil de forma satírica e vem gerando bastante identificação com os dias atuais, onde há um maior interesse e engajamento da população com o tema.
Viúva Porcina, uma das figuras mais lembradas da novela, voltou às manchetes dos jornais nos últimos meses por conta de Regina Duarte, atriz que deu vida à personagem. A artista decidiu seguir carreira na política em 2020, porém durou pouco mais de dois meses no comando da Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro.
Sem querer, a novela da vida real gerou comparações com a ficção e, apesar de ter sido exibida há 35 anos, Roque Santeiro apareceu na quarta posição entre as mais citadas pelos leitores e internautas.