Desde março de 2020, há uma frase repetida com resignação por quem vive de arte e cultura: “Fomos os primeiros a fechar e seremos os últimos a reabrir”. Um ano e meio de pandemia depois, a fila andou e o setor cultural retomou suas atividades — ainda que seja um passo tímido de cada vez, seguindo restrições e protocolos. Contudo, o período de paralisação foi nefasto e deixou sequelas. Estima-se que algumas experiências e implicações ainda devem ressoar nos anos pós-pandemia.
Sem contato direto com o público e com a necessidade de sobrevivência, artistas e profissionais da cultura viram na internet um subterfúgio: lives musicais, teatro online, museus promovendo ações virtuais, filmes estreando direto no streaming. Embora essas atividades digitais fossem paliativas — produtores anseiam pelo presencial —, especialistas e agentes culturais apontam que o ambiente virtual deve se estabelecer como opção e complemento. Os espectadores pensam igual: a pesquisa Hábitos Culturais II, promovida por Itaú Cultural/Datafolha e divulgada em julho, indicou que 80% dos entrevistados que assistiram a apresentações de teatro, música e dança no ambiente virtual pretendem seguir com a prática. O índice é o mesmo declarado para aulas e oficinas de arte.
As atividades remotas ampliaram o acesso e aumentaram o interesse do público pela cultura, segundo o estudo: 72% dos entrevistados informaram que a internet permitiu o acesso a atividades culturais que, de outra forma, não seriam experimentadas. Entre os jovens de 16 a 24 anos, a concordância com a afirmativa foi de 79%. Por outro lado, 62% preferem assistir a shows de forma presencial, e esse desejo se repete em apresentações de artes cênicas, exposições e museus.
Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, reflete que ampliar o alcance e ao mesmo tempo atender ao desejo pelo presencial constitui um desafio para os agentes culturais.
— A mensagem que fica da pandemia é que é possível desenvolver atividades artísticas no universo computacional, mas não se pode abrir mão da presença para criar vínculos entre as pessoas, que é o que a arte e a cultura fazem melhor. Entramos na era que chamo de “fisidigital”, ou seja, oferecer atividades nos dois ambientes com os diferenciais que eles nos permitem — afirma Saron.
Neste ano, o Instituto Ling passou a receber atividades musicais nesse formato híbrido. Contudo, a gerente do centro cultural, Carolina Rosado, frisa que o “fisidigital” tem uma complexidade operacional que não se viabiliza para alguns projetos, além de um custo mais alto:
— O formato híbrido tende a perdurar em projetos maiores, mas é preciso ter uma análise cuidadosa para ver quais atrações o suportariam e teriam público para viabilizá-lo. No Ling, alguns projetos ficarão 100% online, outros, 100% presenciais, e haverá alguns híbridos. Na nossa avaliação, o híbrido pode ter uma boa aderência em palestras e shows.
Além das atividades digitais, há políticas públicas que podem ser mantidas após o contexto de crise sanitária. Gabriel Medeiros Chati, coordenador do bacharelado em Produção e Política Cultural da Unipampa, cita a Lei Aldir Blanc, de 2020, e a Lei Paulo Gustavo (ainda não votada pelo Senado).
— Não deixam de ser marcos importantes, pois buscam implementar parâmetros no acesso e na distribuição dos recursos, que são pleitos históricos de boa parte da categoria artística. Se a gente pensar que boa parte do fomento tem um grau de burocracia muito alto, esses mecanismos constituem um avanço. E há a disponibilidade de recursos de modo direto — destaca Chati.
A nova realidade dos museus
Segundo levantamento da Unesco divulgado em maio de 2020, a pandemia fez com que 90% dos museus ao redor do mundo fechassem seus espaços. De um total de 85 mil instituições, 13% não seriam reabertas. Nos países africanos, apenas 5% dos museus desenvolveram conteúdos digitais.
Em meio à crise, houve inúmeras demissões em centros culturais globais. Nesse cenário, as instituições voltaram as atenções ao ambiente virtual. Fernanda Albuquerque, curadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da UFRGS, aponta que as instituições precisaram investir em outras formas de alcançar o público no período, por exemplo, disponibilizando obras digitalmente, organizando tours virtuais, marcando presença nas redes sociais.
— Lives, seminários online, atividades propostas a partir das obras do acervo, ações nas redes como quiz e pesquisas são algumas das ferramentas que museus usaram para buscar alcançar o público em isolamento — sublinha Fernanda.
Foi o caso do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs).
— O fechamento durante a pandemia nos oportunizou o relacionamento com novos e potenciais públicos — diz Francisco Dalcol, diretor-curador do Margs.
Dalcol salienta que essa estratégia de ampliar as ações virtuais, que já fazia parte da identidade do museu na atuação nas redes sociais antes da covid-19, teve um ótimo feedback do público. Segundo ele, o Margs não retrocederá quanto aos avanços nos meios digitais. Contudo, entende que a internet não substitui o contato direto com a obra de arte nos museus e instituições artísticas:
— Muitos artistas e produções têm na plataforma digital seu meio e linguagem, e temos tido a chance de ver cada vez mais produções nessa direção. Mas, em lugar de substituição, gosto de pensar que internet tem como grande potência complementar, intensificar e desdobrar a experiência com a arte.
A virtualização também é uma tendência entre as instituições voltadas aos espetáculos, como o Theatro São Pedro. De acordo com o presidente da Fundação Theatro São Pedro, Antonio Hohlfeldt, a casa havia iniciado discussões antes da pandemia a respeito da crescente digitalização da programação, visando diversificar propostas e garantir a democratização do acesso.
Hohlfeldt lembra que foram realizadas consultas com empresas que trabalham com alternativas digitais para oferecer novas atrações para os frequentadores do teatro, com especial atenção aos jovens — realidade aumentada, labirintos em fuga, entre outros formatos. Ele pontua que desde 2018 os espetáculos do Musical Évora já podiam ser vistos no Instagram. O teatro também transmitiu lives e espetáculos gravados na pandemia.
De qualquer maneira, Hohlfeldt pondera que aquilo que era optativo se tornou necessário. Agora, os novos contratos para espetáculos devem apresentar alternativas aos grupos teatrais: só o espetáculo ao vivo, ao vivo com transmissão online, ao vivo com gravação para disponibilização posterior etc.
— Cada modelo tem regras e custos diferentes. Contratamos provisoriamente uma plataforma para vender ingressos (não haverá mais tíquete em papel) e pela qual também podemos transmitir espetáculos. A ideia é, gradativamente, retomarmos a programação presencial, mas sempre com possibilidade de transmissões ou gravações. Isso ficará – destaca Hohlfeldt.
Para os artistas, o teatro virtual se apresentou como alternativa. Camila Bauer, diretora do coletivo Projeto Gompa e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, tem trabalhado com projetos direcionados ao ambiente digital. Ela dirigiu montagens como A Vó da Menina (ao lado de Bruno Gularte Barreto), A Última Negra (com Silvana Rodrigues) e Derrota (com Liane Venturella).
Em Derrota, Camila destaca que na montagem há a possibilidade da Liane falar com cada espectador individualmente através do olho no olho mediado pela tela. É uma intimidade particular proporcionada pelo teatro virtual.
– É uma grande lupa que a lente coloca. Essa possibilidade de a pessoa estar assistindo de sua casa sozinha, muitas vezes, traz uma intimidade que está sendo bacana de explorar. Então, para mim, o virtual está sendo bonito – relata.
Camila frisa que o ambiente virtual não substitui o palco, mas se apresenta como outro terreno fértil de experimentação. Ela aponta que o trabalho online ainda é caseiro, com cada integrante se organizando em sua própria residência.
— As casas viram cenário, então tem uma precariedade. É mais o desejo de criar do que efetivamente montar uma estrutura de produção que dê conta — pondera a diretora.
Fundadora da Companhia de Solos & Bem Acompanhados, a atriz e diretora Deborah Finocchiaro trabalhou em alguns projetos no ambiente virtual, como Classe Cordial e Invisíveis — Histórias para Acordar. Ela crê que essa linguagem tem sido uma nova escola.
— Esse formato que tem me ensinado muito, pois como eu vivo disso, não há muito espaço para ficar questionando. Ou para sentir medo de errar. A ideia é trabalhar da melhor forma possível, potencializando as condições que temos — afirma Deborah.
O esgotamento das lives
Por mais que as lives musicais tenham representando um frescor no começo da pandemia, poucos meses depois elas saturaram. O formato chamou a atenção do público no fim de março de 2020 e teve seu pico no final do mês seguinte, segundo os dados da plataforma Google Trends, que monitora as palavras-chave mais buscadas na internet . Porém, as buscas no Google pela palavra "lives", no Brasil, em julho, já eram 70% menores. Se comparado com abril do ano passado, hoje o interesse é 92% menor.
Para o vice-presidente da Opus Entretenimento, Lucas Giacomolli, as transmissões virtuais devem se estabelecer mais no meio corporativo do que no entretenimento ao vivo. Ele cita palestras, reuniões e encontros, entre outros eventos que possam ocorrer de forma simultânea.
— Na Opus, a gente acredita que nada substitui um show ao vivo. Apresentação física ser substituída por uma apresentação online não está no nosso radar — diz Giacomolli.
Meses após as lives atingirem o seu pico, os shows ao vivo passaram a ser liberados no país, ainda que com restrições. Empresários do ramo estimam que as regras tendem a se afrouxar cada vez mais. Rodrigo Machado, sócio-diretor da Opinião Produtora, não acredita que no verão de 2022 ainda exista algum protocolo de segurança.
— Penso que, depois de atingirmos um nível satisfatório de vacinação, voltaremos ao normal. Não podemos considerar o que estamos vivendo agora é normal — destaca.
O bar Opinião foi reaberto em agosto, inicialmente para um público sentado de até 200 pessoas. Já o Auditório Araújo Vianna retomará as atividades em outubro, com shows nacionais. As atrações internacionais que a produtora está trabalhando ficaram para 2022.
No próximo mês também já há programação na agenda do Teatro do Bourbon Country, espaço administrado pela Opus. Giacomolli acredita que tudo volte a ser como era antes da pandemia:
— Vamos olhar para a frente. Antes, avançávamos e parávamos de novo. Agora, acho que a gente não retrocede mais.
Entretanto, a retomada de eventos pode apresentar discrepâncias no setor de música ao vivo. É no que crê Daniela Ribas, doutora em Sociologia e diretora da Sonar Cultural Consultoria. Com as restrições, o poder de enfrentamento dessa crise dos pequenos produtores e das grandes empresas foi radicalmente diferente. Por isso, ela aponta que poderá haver um período de concentração de capital na área do entretenimento ao vivo:
— O pequeno produtor musical não tem a estrutura necessária para enfrentar a crise da mesma maneira que a Live Nation, por exemplo. Os shows vão começar a voltar, as pessoas estão ávidas para ir, só que quem vai capitalizar essa demanda reprimida serão os grandes agentes.
Daniela chama atenção também para a importância dos produtores independentes, que muitas vezes se arriscam em trazer novos talentos.
— A renovação da cena musical precisa dos independentes. Se há concentração de grandes espetáculos, isso sufoca os pequenos e tem implicação não só econômica, mas também cultural — alerta.
A Abstratti Produtora trabalha há 18 anos com foco nos shows internacionais. A empresa está com as atividades suspensas desde março de 2020. O primeiro show marcado na agenda é do Sonata Arctica, para 5 de abril do ano que vem. Outro evento previsto é We Are One Tour com Millencolin, Satanic Surfers e 88 Fingers Louie, na Fenac, em Novo Hamburgo, no dia 23 de março de... 2023.
— É um festival com três bandas de fora, melhor ficar lá para a frente — resume Ricardo Finocchiaro, sócio-proprietário da Abstratti.
Sobre a demanda represada, ele é cético. Lembra de ver colegas do setor de eventos tendo de trocar de profissão na pandemia, sem perspectiva de retorno.
— Não vejo as pessoas com dinheiro no bolso. Há muita gente quebrada, trabalhando por um salário menor ou em condições piores. Não consigo ver o pessoal com grana para consumir muitos shows, ainda mais internacionais. Tem muita turnê atrasada que vai se somar, gerando uma avalanche de apresentações. O público terá de escolher, e sem recursos — reflete.
Finocchiaro também chama atenção para a crise financeira. Preços inflacionados, passagem aérea cara, gasolina a R$ 7 e o dólar alto influenciam os shows internacionais. Ele afirma que o preço dos ingressos deverá subir.
— O valor acaba repassado para o cliente. Não vamos ter como voltar para o pré-pandemia nesse aspecto dos ingressos — lamenta.
A reorganização do cinema
De 2020 para cá, vários cinemas não resistiram à pandemia e fecharam as portas. Em Porto Alegre, Guion Center, as salas da rede Arcoplex no Boulevard Assis Brasil e no Rua da Praia Shopping, além do Espaço Itaú; em Rio Grande, o Cine Dunas; em Santo Ângelo, o tradicional Cine Cisne. Os exibidores que resistem precisam enfrentar a covid-19, um público desconfiado e as plataformas de streaming com cada vez mais oferta.
A quarentena acelerou o crescimento do streaming: um relatório da Motion Pictures Association estima aumento de 26% na assinatura de plataformas na pandemia. A porcentagem corresponde a 232 milhões de novas contas. De acordo com a pesquisa, as assinaturas globais chegaram a 1,1 bilhão em 2020. O aumento na receita foi de 34%, e a arrecadação alcança US$ 14,3 bilhões.
A suspensão das atividades dos exibidores propiciou uma mudança mundial na chamada janela de exibição — tempo que o filme é exibido em outra plataforma após passar pelas salas de cinema. Até a pandemia, um longa-metragem lançado nas salas brasileiras só poderia chegar ao streaming três meses depois. Porém, revirou-se tudo: houve filmes que estrearam direto no streaming, como Mulan e Soul, ou que foram lançados em ambos os formatos simultaneamente — Cruella, Mulher-Maravilha 1984, entre outros.
Essa decisão dos estúdios foi fortemente criticada pelos exibidores. O diretor do Filme B, empresa de referência no mercado cinematográfico, Paulo Sérgio Almeida, avalia que a antecipação do filmes para o streaming foi uma saída de emergência dos estúdios e distribuidores. Porém, ressalta:
—Lançado o filme no streaming, no dia seguinte a obra cai na pirataria. Com isso, a distribuição perde, o produtor perde, os talentos perdem e nós perdemos empregos. Esses lançamentos simultâneos são uma tragédia. Já estão fazendo até pirataria do próprio streaming, como acontecia com o “gatonet”.
Para o ano que vem, a tendência é que os estúdios recuem da decisão dos lançamentos simultâneos. Na semana passada, a Disney anunciou que irá lançar todos os seus filmes primeiro nos cinemas em 2022. A Warner também voltou atrás em agosto, após firmar um acordo com a rede AMC, estipulando uma nova janela de 45 dias de exclusividade dos filmes para a tela grande.
— Acho que os estúdios estão revendo essa postura porque eles perceberam que os filmes que estão entrando primeiro no cinema têm um desempenho financeiro melhor. Fora a questão da pirataria — analisa Ricardo Difini, diretor da GNC Cinemas e presidente da Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Feneec).
Outra tendência que a pandemia trouxe ao setor foi a verticalização: a Disney lançou seu próprio canal de streaming, o Disney+; A Warner surgiu com HBO Max; no Brasil, a distribuidora especializada em filmes de arte Imovision lançou a plataforma Reserva Imovision.
Jean Thomas Bernardini, proprietário da Imovision, lembra que houve um boom de vendas de DVDs relançados pela distribuidora no começo da pandemia – mídia que havia sido abandonada pela empresa. Ao mesmo tempo, surgiu a ideia de ter seu próprio serviço de streaming:
— Nossa plataforma está crescendo. Em ritmo um pouco mais lento do que a gente esperava, mas seguro.
Felipe Lopes, diretor da distribuidora Vitrine Filmes, aponta para uma tendência de formação de conglomerados de mídia e de empresas de tecnologia que atuam também no audiovisual. Consequentemente, o cenário que se avizinha nas salas de cinema é menos diverso.
— As fusões e aquisições são uma tendência que ultrapassam o nosso setor. É um sintoma do capitalismo contemporâneo. Acredito que no pós-pandemia veremos uma situação de maior concentração do circuito com títulos de grandes estúdios e dificuldade na programação de obras independentes e também para o cinema brasileiro — diz Lopes.
Pelo lado dos realizadores, o cinema gaúcho segue resistindo como pode — viabilizando-se via Lei de Incentivo à Cultura, fundos municipais, patrocínios diretos, editais públicos do Estado e municípios, como indica o cineasta Zeca Brito, diretor do Instituto Estadual de Cinema (Iecine). Ele destaca que a Lei Aldir Blanc viabilizou produções como O Cavalo de Santo, que conquistou o prêmio de melhor filme da mostra de curtas gaúchos no Festival de Cinema de Gramado deste ano. Brito adianta que o Estado deve investir no setor no início de 2022:
— Prevemos um edital de R$ 12 milhões que pretende retomar a cadeia produtiva e reascender a chama de uma indústria viva, que gera empregos e é responsável por uma parcela importante da economia gaúcha.