Intelectual do campo da História prestigiado pela classe artística, Gunter Axt foi o secretário da Cultura escolhido pelo novo perfeito de Porto Alegre, Sebastião Melo. Há três semanas no novo cargo, o historiador, escritor e gestor cultural de 51 anos ainda não consegue traçar projetos para o que será da pasta sob seu comando, mas já está a par dos grandes desafios que precisará enfrentar nós próximos anos.
Nesta entrevista, Axt, que é pesquisador associado à Universidade de São Paulo (USP), já foi curador do Fronteiras do Pensamento e tem no currículo diversos livros, entre os quais As Guerras dos Gaúchos (2008), compartilha quais são as questões mais emergenciais nas quais a secretaria está envolvida, fala sobre reformas estruturais e alternativas para driblar as limitações de pessoal e orçamento. Além disso, defende que a capital gaúcha precisa reencontrar sua identidade para voltar a avançar social e politicamente.
Como foi o diálogo com o ex-secretário Luciano Alabarse e sua equipe no processo de transição?
Fomos acolhidos com muita fidalguia e espírito cívico. Todas as nossas dúvidas e demandas têm sido respondidas com franqueza e dedicação. Tenho os melhores elogios a fazer a Luciano Alabarse e sua equipe. Isso é uma boa notícia para a cidade, pois facilita a nossa tarefa e vem ao encontro do bem-estar do cidadão.
Quais são as questões mais emergenciais da pasta?
A questão mais emergente é a Lei Aldir Blanc. Ainda há alguns pagamentos a fazer. Isso envolve questões burocráticas e jurídicas que demoram alguns dias. Mas os pagamentos já estão começando. Isso é muito importante, porque, para muitos, a lei é uma questão de sobrevivência. Isso só tem sido possível porque a equipe do Luciano Alabarse tem sido muito solícita e dedicada.
A Lei Aldir Blanc também deixa como legado um mapeamento da produção cultural na cidade, uma vez que cadastrou pessoas, entidades e grupos atuantes no setor. Vocês planejam usar de algum modo esse material?
Estamos tabulando os dados recolhidos. Estamos analisando os relatórios recebidos da gestão anterior, porque justamente foi possível mapear agentes culturais espalhados em vários pontos da cidade. Hoje temos muito mais clareza de com quem e como dialogar. Ainda não tenho esses dados tabulados, mas será possível identificar quais setores mais demandaram os recursos da lei, em quais áreas da cidade. São dados que estão aqui, agora é preciso analisá-los com calma. É sem dúvida um legado importante dessa lei. Será muito útil para as políticas de descentralização.
Além das questões emergenciais, já é possível falar de projetos a médio e a longo prazo?
É muito cedo para falar de projetos. Mas posso falar de outras urgências, além da Lei Aldir Blanc. Uma delas é reforma de Usina do Gasômetro, cujas obras estão sendo retomadas. Nós nos dedicamos intensamente nos últimos dias para a aprovação de um termo aditivo que permite a retomada das obras. Esse é um debate que também foi amadurecido na gestão anterior, mas precisava de alguns movimentos administrativos. É algo muito importante que conseguimos resolver em um tempo relativamente curto.
Por que a obra do Gasômetro andou devagar?
O que trancou a obra foi a quarta laje, que serve de teto para o Teatro Elis Regina e piso para o espaço de gastronomia. Depois que as obras se iniciaram, descobriram que essa laje precisava ser refeita. Nesse tempo, a empresa seguiu realizando obras em outros pontos do prédio.
Já há data prevista para a reabertura do Gasômetro?
O termo aditivo no qual estamos trabalhando complementa os recursos já destinados, no âmbito de uma parceria com a Corporação Andina de Fomento (CAF). A empresa responsável pelas obras informará o cronograma de trabalho tão logo o termo aditivo for assinado, o que pode acontecer a qualquer momento nos próximos dias. Em uma estimativa informal, as obras podem ser concluídas até o final deste ano ou o início de 2022. Mas seria leviano dar certeza de um prazo agora.
Porto Alegre tinha, desde 1992, uma lei municipal de incentivo à cultura. Essa legislação nunca foi regulamentada e acabou sendo revogada pela gestão Nelson Marchezan. É um absurdo que a cidade que foi tão pioneira com essa ferramenta tenha ficado para trás. Vou me dedicar à retomada desse mecanismo.
Existe também o processo de restauro da Estátua do Laçador.
Sim, é um trabalho em parceira com o Sinduscon. A captação já foi realizada, portanto o projeto está pronto para começar. Apenas não começou porque a prefeitura precisa depositar sua contrapartida, mas já tomei providências e há um pedido de liberação de verba. Em breve as obras vão começar. A gente sabe que o Laçador é um ponto de referência para a cidade.
Com a reforma administrativa da prefeitura, a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc) poderá ser desvinculada da pasta da Cultura para compor a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade. Como o senhor encara essa mudança?
Fomos surpreendidos por essa desvinculação. O secretário da Cultura foi escolhido no último minuto do segundo tempo. Quando comecei a participar do processo de reforma administrativa, essa questão já estava em curso. A lei já foi aprovada, mas ainda não foi regulamentada. É possível que haja uma reversão ou um esquema de gestão compartilhada. Vou trabalhar para que alguma dessas duas opções se concretize. É o Epahc que formula políticas públicas, mas a pressão sobre os licenciamentos também é grande e é preciso que haja uma resposta estrutural para isso. Nesse sentido, a gestão compartilhada seria positiva. Imagino que isso seja possível, mas veremos agora como encaminhar esse processo.
Como estão as condições de trabalho na secretaria?
Essa é uma realidade que diz respeito à prefeitura como um todo. Foi muito expressivo o volume de aposentadorias e desligamentos de servidores nos últimos anos, e não houve uma reposição de mesmo tamanho. Hoje, a secretaria tem 120 servidores, se descontarmos o pessoal da Banda Municipal e nossos poucos cargos de comissão. Isso é muito pouco para manter todas as nossas estruturas. Estamos diante de um desafio de gestão. É preciso reconhecer nossas limitações de pessoal e de orçamento e encontrar um novo modelo de gestão.
Quando falo em descentralização da cultura, falo do diálogo com os movimentos sociais e comunitários, com ONGs da periferia. As pessoas não chamam isso de PPP porque às vezes envolve menos dinheiro, mas também é isso. As parcerias são o caminho.
Como dar conta de tantas tarefas sem ter recursos nem equipe ideais?
É preciso enfrentar o debate sobre o financiamento da cultura em Porto Alegre. Uma política contemporânea de gestão da cultura ergue-se a partir de um tripé, o orçamento e o fomento direto e indireto. Nosso orçamento vem sendo sistematicamente reduzido. Quando Sergius Gonzaga foi secretário (na gestão do prefeito José Fogaça), chegou a ter 1% do valor global do orçamento da prefeitura. Nós estamos herdando 0,34%. Um orçamento que já foi de R$ 100 milhões hoje está em cerca de R$ 30 milhões. Se descontarmos o custeio de pessoal, da Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre (Procempa), das emendas impositivas etc., o que nos sobra para investir na cultura da cidade é cerca de R$ 1,3 milhão anuais. É muito pouco diante do precisamos fazer. Precisamos discutir esse orçamento.
E sobre o fomento direto e o indireto?
Quanto ao fomento direto, Porto Alegre tem três fundos, o Fumcultura, o Fumproarte e o Fumpach. Esses fundos estão exauridos. O que a lei determina não vem sendo cumprido. É uma defasagem que precisa ser discutida. Quanto ao fomento indireto, a Capital tinha, desde 1992, uma lei municipal de incentivo à cultura. Essa legislação nunca foi regulamentada e acabou sendo revogada pela gestão do prefeito Nelson Marchezan. É um absurdo que a cidade que foi tão pioneira com essa ferramenta tenha ficado para trás. Vou me dedicar à retomada desse mecanismo.
Há outras alternativas?
O Núcleo de Cultura do MDB fez um estudo em que sugere a criação de um Cide setorial, que seria um remanejamento de impostos. Eles sugerem seis caminhos possíveis. Não é uma criação de imposto; é um remanejamento interno. São várias ferramentas para se pensar, pois alguma coisa de diferente precisa acontecer. Não podemos ter esses fundos de fomento direto defasados como estão agora.
Sobre os equipamentos culturais da cidade, como avalia a administração por parceria público-privada (PPP) e organização social (OS)?
As PPPs são o futuro da gestão pública. Não podemos continuar inchando o Estado e fazendo o cidadão pagar a conta. É preciso encontrar meios de parceria com a comunidade. Pretendo fazer isso em todas as instâncias. Quando falo em descentralização da cultura, falo do diálogo com os movimentos sociais e comunitários, com ONGs da periferia. As pessoas não chamam isso de PPP porque às vezes envolve menos dinheiro, mas também é isso. As parcerias são o caminho.
Neste ano não vamos ter Carnaval. É uma solicitação dos próprios carnavalescos. Sabemos que há uma necessidade de reequipar as quadras. Há também uma demanda por oficinas. E é crucial enfrentar, em algum momento, a revitalização do Porto Seco. As coisas não podem ficar como estão lá, em um estado de semiabandono.
O festival Porto Alegre em Cena passou por uma recente polêmica, uma vez que a empresa vencedora do edital para a sua realização foi fundada por um cargo comissionado indicado pelo ex-secretário. A seleção foi anulada por evidências de favorecimento. Como ficará o evento?
Estamos trabalhando para ter Porto Alegre em Cena, embora a gente não saiba até que ponto poderemos ter eventos presenciais. Quanto ao caso que foi objeto de discussão da imprensa, considero um caso resolvido. A organização social que foi criada já foi extinta, a solicitação de termo de uso para o prédio da Travessa do Paraíso (sede do evento) também foi encerrada. Precisamos pensar um novo modelo de gestão para o Em Cena, mas o importante é garantir que Porto Alegre não perca esse exemplo extraordinário que é uma marca da cidade conhecida no Brasil inteiro e respeitada internacionalmente.
O modelo de gestão não pode permanecer o mesmo e apenas mudar a empresa selecionada?
Alguns ajustes precisam ser feitos, mas ainda estamos discutindo isso. As pessoas que estão até hoje no Em Cena têm competência reconhecida, mas vamos abrir os editais para cadastramento de proponentes e captadores.
Para o Carnaval, há algum plano na sua gestão?
Neste ano não vamos ter Carnaval. É uma solicitação dos próprios carnavalescos. Nesse sentido, Porto Alegre acompanha as decisões de outras capitais, não há nada de peculiar nisso. O secretário-adjunto, Clóvis André da Silva, tem me ajudado muito nesse diálogo com carnavalescos e outros movimentos. Sabemos que há uma necessidade de reequipar as quadras. Há também uma demanda por oficinas. E é crucial enfrentar, em algum momento, a revitalização do Porto Seco. As coisas não podem ficar como estão lá, em um estado de semiabandono.
Já há nomes selecionados para as coordenações da pasta?
Na Coordenação do Livro, permanece o professor Sergius Gonzaga, que já foi secretário de Cultura e fez um trabalho excelente como coordenador. Ainda não posso garantir nada em relação às outras coordenações, pois estamos em processo de formação de equipe. A orientação é que sigamos o mesmo princípio que norteou a escolha do secretariado, ou seja, combinar qualificação e competência técnica com bom trânsito político. É um quebra-cabeças que está sendo montado.
O senhor defende que a cultura deve ser pensada de modo transversal. Como é isso na prática?
Não vejo a secretaria como uma usina promotora de eventos. Não somos produtores. Essa função cabe ao mercado. Somos formuladores de políticas que vão ajudar a comunidade cultural. E aí há muitas interfaces possíveis. Hoje, um dos principais componentes da renda da cidade de Paris é o turismo cultural, por exemplo. Há uma política cultural por trás disso. Começou nos anos 1950, com André Malraux pensando um conjunto de iniciativas que incluía despoluição visual da cidade, uma política de mapeamento de bens culturais, prédios e acervos, formação e redistribuição de acervos em museus. Veja a importância da administração pública nesse processo. E esse é apenas um exemplo.
A Usina do Gasômetro também pode ser um atrativo turístico para a Capital. O Mercado Público idem, mas costuma fechar aos domingos, o que diminui a circulação de visitantes de final de semana.
Um das grandes preocupações da gestão do Melo e da minha gestão na secretaria são o Centro Histórico e o Quarto Distrito. O centro precisa passar por um redespertar da sua vocação. Gosto dessa coisa do Sebastião sair com um alicate dentro do carro, parar ao lado do poste e retirar os cartazes pendurados ali. Aquilo representa poluição visual. Acho bom que o prefeito esteja atento a esses pequenos detalhes. Isso também mobiliza o secretariado para os detalhes e gera um efeito cascata, que é cultural. Acho isso muito positivo. Por que um supermercado pode ficar aberto, mas o Mercado Público não? É preciso enfrentar esses debates.
Não vejo a secretaria como uma usina promotora de eventos. Essa função cabe ao mercado. Somos formuladores de políticas que vão ajudar a comunidade cultural. E aí há muitas interfaces possíveis. Hoje, um dos principais componentes da renda da cidade de Paris é o turismo cultural, por exemplo. Há uma política cultural por trás disso.
Para Porto Alegre, que outras interfaces são possíveis?
No desenvolvimento social, por exemplo, por que não invertemos a equação? Em vez de trabalharmos lá na ponta enxugando gelo com políticas raciais e para a população LGBT+, que são de fato importantes, por que não idealizamos algo na base? Ou seja, a cultura atuando junto ao desenvolvimento social por meio de oficinas, festivais... As interfaces são tantas, na economia, por exemplo, uma das grandes oportunidades de futuro para a cidade é desenvolver aqui um polo audiovisual.
Há potencial para a cidade se tornar um polo audiovisual?
O que a Islândia ou a Nova Zelândia produziam de audiovisual alguns anos atrás? Muito pouco. No entanto, produzem para a Netflix séries de grande qualidade. Por que nós não podemos? A secretaria quer participar desse diálogo.
A cultura também deve ser encarada no seu potencial gerador de riqueza?
A cultura é a alavanca fundamental para o desenvolvimento da economia criativa. Não tenho a menor dúvida de que tudo o que é investido com eficácia na cultura retorna em dobro à prefeitura em forma de impostos. Estamos gerando renda, riqueza. Se houver recurso e equipe, estaremos ajudando os jovens de periferia a se qualificarem para emprego, estaremos ajudando na luta contra violência, contra o desemprego e contra a exclusão social. A cultura tem enorme possibilidade de diálogo transversal com outras áreas do governo.
Porto Alegre precisa reencontrar sua identidade, porque já foi uma locomotiva industrial e hoje é basicamente prestadora de serviços. Nós queremos ficar na prestação de serviços ou dialogar com o mundo por meio de ideias de ponta, inovação e criatividade?
A Capital pode encontrar novas vocações por meio da cultura?
Porto Alegre é uma cidade de camadas. Há uma camada açoriana, depois germânica, modernista e americana. Isso tudo é permeado por uma proximidade do mundo platino e com o legado afro e indígena. A cidade precisa reencontrar sua identidade, porque já foi uma locomotiva industrial e hoje é basicamente prestadora de serviços. Nós queremos ficar na prestação de serviços ou dialogar com o mundo por meio de ideias de ponta, inovação e criatividade? Porto Alegre não é uma cidade derrotada. É uma metrópole com grandes conquistas. Um exemplo disso é o polo médico que a cidade possui, reconhecido no Exterior. Se temos um polo médico desse calibre, por que não podemos ter um polo audiovisual, de tecnologia? Temos de enfrentar esses debates sem medo de ser feliz.