Elaborada em caráter de emergência no mês de julho, só agora a Lei Aldir Blanc está chegando em quem necessita de seus recursos. Por meio do mecanismo legal, Estados e prefeituras do país receberam o repasse de R$ 3 bilhões, montante inédito para uma ação setor cultural brasileiro. No entanto, dezenas de cidades do Rio Grande do Sul não aproveitaram a oportunidade – e as que toparam agora encaram o desafio de distribuir os repasses até a virada do ano, às vezes sob severas críticas da comunidade cultural.
– No geral, o Estado do Rio Grande do Sul e as prefeituras têm realizado um bom trabalho em relação à Lei Aldir Blanc. Os problemas que têm chegado até nós são pontuais – avalia Airton Ortiz, presidente do Conselho Estadual de Cultura (CEC).
A maior parte dos editais e chamadas públicas referentes à lei já estão com inscrições encerradas. A última grande oportunidade para quem ainda deseja acessar o recurso são os editais em parceria com três entidades divulgadas na segunda-feira: Instituto Trocando Ideia, Fundação Marcopolo e Associação de Desenvolvimento Social do Norte do Rio Grande do Sul. As entidades devem publicar seus critérios de seleção em dezembro, totalizando R$ 26 milhões para pessoas físicas e jurídicas.
Desde a última quinzena de agosto, quando a regulamentação da lei foi publicada, a secretaria estadual e a maior parte das secretarias municipais de Cultura têm se dedicado quase exclusivamente ao mecanismo legal. O objetivo é dar conta em poucos meses da melhor aplicação para os R$ 154,9 milhões recebidos pelo Rio Grande do sul – R$ 82,9 milhões para os municípios; e R$ 72 milhões para o Estado. Se não for aplicado até a virada do ano, deverá voltar para Brasília.
– Estamos confiantes de que esses recursos ficarão integralmente no Estado – assegura Rafael Balle, da Secretaria Estadual da Cultura (Sedac).
Não é uma tarefa simples. A Lei Aldir Blanc é dividida em três incisos. O primeiro diz respeito à renda emergencial para trabalhadores. Já o segundo trata do subsídio a espaços culturais; e o terceiro são editais, prêmios e aquisição de bens e serviços. Para facilitar a divisão de tarefas, os Estados ficaram com responsabilidade sobre os incisos I e III, enquanto os municípios tomaram para si os incisos II e III.
Aí começam os problemas. Apesar de os municípios serem os únicos responsáveis por repassar recursos da lei às instituições culturais, nem todos estão preparados para operar um mecanismo como esse. Em muitas prefeituras, não há sequer um secretário dedicado exclusivamente à cultura, já que a pasta às vezes é dividida com o esporte. Por conta disso, alguns municípios não apresentaram um plano de ação em tempo hábil para o governo federal e acabaram sem receber o recurso.
No Rio Grande do Sul, 79 prefeituras não apresentaram o plano e duas tiveram o documento rejeitado pelos analistas – ainda há planos em complementação e análise. Ou seja, pelo menos 16,26% dos municípios gaúchos não receberão os recursos ofertados pela lei. O percentual está abaixo da média nacional, de 20,73% – Roraima lidera a lista dos sem plano, com 50,95% cidades sem cadastro, e o Amapá e o Distrito Federal foram os únicos com todos os municípios com o documento aprovado.
– Fizemos um trabalho muito próximo de cada município, mas a demora para a lei ser regulamentada foi um fator que dificultou para todos – avalia Evandro Soares, presidente do Conselho dos Dirigentes Municipais de Cultura (Codic) da Federação das Associações de Municípios do Estado (Famurs).
Somando a verba que não ficará nas 81 prefeituras, um montante de R$ 3,4 milhões pode ser devolvido aos cofres do governo federal. Antes disso, no entanto, há uma última chance para esse dinheiro ficar no Estado: o Piratini poderá usar o valor em projetos da Lei Aldir Blanc até o final do ano.
Além dos R$ 3,4 milhões que retornam dos municípios, o Estado também terá de redistribuir grande parte dos R$ 30 milhões que haviam sido originalmente dedicados ao inciso I, que prevê renda mensal ao trabalhador autônomo em três parcelas de R$ 600. A Sedac ainda não sabe quanto gastará com a renda mensal, mas, por enquanto, apenas 600 trabalhadores foram aprovados no cadastro, o que pode totalizar um gasto de até R$ 2 milhões. Ainda há recursos em aberto, então o gasto pode ser aumentado, mas a expectativa é que boa parte dos R$ 30 milhões seja realocada para outras ações.
– Separamos um valor para não faltar. Mas a maior parte dos trabalhadores da cultura que se enquadram no perfil para receber já está sendo contemplada pelo auxílio emergencial do governo. Não se pode receber os dois benefícios – explica Rafael Balle.
O saldo da renda mensal e também o dinheiro que voltará dos municípios serão replicados para os editais do governo do Estado. É uma boa notícia para quem ficou na lista dos suplentes, pois poderão ser beneficiados com o valor excedente.
O governo do Estado organizou os editais da Lei Aldir Blanc a partir da 5ª Conferência Estadual de Cultura, que reúne a comunidade cultural e a sociedade civil organizada. Apesar de muitos artistas ainda reclamarem dos prazos exíguos e dos entraves burocráticos, a participação popular colaborou para que os processos em nível estadual não recebessem grandes protestos de artistas e outros trabalhadores da cultura.
O mesmo não pode ser dito em relação às prefeituras. Algumas vêm sofrendo críticas das comunidades artísticas locais, que reclamam da falta de diálogo. Em Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, o grupo Fórum de Cultura escreveu um documento coletivo em que aponta que “o Grupo de Trabalho de Acompanhamento e Fiscalização da Lei (...) havia sido criado sem a devida paridade, com vagas para seis representantes do Executivo, dois do Legislativo (que abriu mão de participar) e apenas duas para a classe cultural, número que foi aumentado para quatro, posteriormente, por insistência de sua parte”.
O mesmo coletivo reclamou que 60% da verba disponibilizada em edital foi destinado ao setor tradicionalista, o que contraria o espírito democrático da lei. Rodrigo Silveira, secretário de Cultura de Cachoeirinha, admite que o grupo de trabalho foi criado com poucos membros da sociedade civil, mas assegura que essa foi uma maneira de não perder os prazos exigidos pela lei:
– Estamos vendo muitos municípios devolverem o dinheiro e outros perderem o prazo. Então tentamos montar um comitê com maioria de servidores, para ter mais agilidade nos processos.
Sobre a concentração de recursos entre os tradicionalistas, Silveira diz que o edital beneficiou projetos com capacidade de atingir o maior número de trabalhadores da cultura.
– Foram os projetos que beneficiam mais pessoal sem capacidade de se cadastrar diretamente na Lei Aldir Blanc, por dificuldade em relação à documentação – afirma Silveira.
A justificativa continua sem agradar alguns cidadãos de Cachoeirinha. Entre eles, está o músico Chico Bianchi. Ele havia inscrito no edital a gravação de um álbum, em um projeto que seria contemplado com R$ 17 mil. O projeto foi aprovado, mas Chico não quis buscar o dinheiro. Por discordar da forma como foi a implementação da lei na cidade, o músico abriu mão do recurso e não foi assinar o contrato.
– Participei de diversas lives solidárias para arrecadar alimentos para trabalhadores da cultura. Eu sei como está a situação de todos. E me revolta o fato de que o recurso não vai chegar em quem realmente precisa – afirma Chico.
Em Farroupilha, na Serra, seis artistas divulgaram um documento em que denunciam que parte dos recursos da lei está sendo destinada à decoração natalina da cidade. Trata-se de um edital voltado para artesãos que aponta que a contrapartida deve ser a entrega de 10 árvores de Natal, um presépio ou um Papai Noel. O edital explicita até o tamanho das peças – o presépio, por exemplo, deve ter “Maria medindo no mínimo 1m40cm; Jesus, 50cm de comprimento; José medindo 1m60cm e uma estrela de Belém, 60cm”.
O documento divulgado pelos artistas afirma que, “quando o município delimita e especifica o que cada artista deve produzir, há um cerceamento da liberdade criativa do mesmo”. Miguel Ângelo Silveira de Souza, secretário de Cultura de Farroupilha, discorda das críticas. Ele afirma que há também um edital voltado a produções audiovisuais, no qual os artesãos descontentes poderão propor cursos.
– Nós todos passamos por um ano de muito apreensão, e esta é uma época para recuperar a alegria das pessoas, por isso pensamos em uma decoração de Natal – explica Miguel Ângelo.
Em Porto Alegre, as primeiras parcelas para instituições culturais já começaram a ser distribuídas. No Lami, o terreiro Olorun & Ododua é um dos beneficiados. A mãe-de-santo Paula de Iansã afirma que a verba será fundamental para deixar as contas em dia:
– Neste ano, não consegui sequer pagar o IPTU, e estou com uma conta de luz em atraso. Antes da pandemia, minha renda era bem diferente da que estou tendo atualmente. Desde o final de março, muitos terreiros se reuniram para reunir alimentos e recursos para que começou a passar dificuldades. Mas foi ficando cada vez mais complicado para quem não tinha oura fonte de renda.
Paula afirma que, como contrapartida, deve oferecer cursos sobre a cultura afro-brasileira:
– Faço artesanatos que envolvem as práticas religiosas. Quem aprender a fazer guias e colares poderá fazer disso um ofício.
Da mesma foram que os terreiros, muitas entidades tradicionalistas também se organizaram para receber os benefícios da Lei. É o caso CTG Porteira da Restinga, liderado há 20 anos por Tarciso Falconi da Cunha. O espaço estava com contas de luz e de água em atraso. Além de ser o único CTG do bairro, o Porteira também recebe a comunidade para vários tipos de eventos, desde ensaio de escola de samba até reuniões do Fórum de Segurança e do Centro da Juventude, promovidas pelo poder público.
– Foi muito importante o apoio do MTG e da Primeira Região Tradicionalista para nos ajudar nos detalhes necessários para o sucesso das homologações – diz Tarciso.
O patrão lamenta que outras instituições da comunidade não conseguiram pleitear os recursos por não estarem organizadas ou não terem a documentação em dia.
– A burocracia é um problema, mas não sei se é possível evitá-la. Como é dinheiro público, tudo precisa estar correto. Infelizmente, muitas instituições não conseguem se manter em dia, porque não há alguém dedicado exclusivamente a elas. A gente corre para fazer pela instituição e por nossa família ao mesmo tempo, então muitas vezes não consegue dar conta de tudo – afirma Tarciso.