A Associação Amigos do Theatro São Pedro (AATSP) virou alvo de operação policial na quarta-feira (11). Responsável por um dos teatros mais importantes do Estado, a entidade é investigada por um possível desvio de recursos. Caso a suspeita seja confirmada, teria ocorrido um descumprimento da função original da AATSP. Mas há quem possa se perguntar: o que faz uma associação de amigos?
As associações de amigos são descritas como entidades privadas sem fins lucrativos, cuja finalidade única é auxiliar na manutenção dos espaços culturais. No Estado, muitas instituições públicas contam com alguma associação de apoio — caso do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ) e do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS).
— O papel das AA é contribuir para a desburocratização, eficiência e dar estabilidade às políticas públicas estruturadas para a cultura, evitando que a cada governo políticas sejam descontinuadas. Pode ser também um modelo eficiente para captação de recursos externos e complementares, além de dar mais efetividade a processos de planejamento e ações da política estabelecida pelo órgão público concedente — assinala Leandro Valiatti, professor de Economia da Universidade Federal do RS (UFRGS) e especialista em economia da cultura.
Em 1990, entrou em vigor a lei estadual Nº 9.186, que permitiu às instituições culturais cederem diretamente às associações de amigos os seus espaços para serem explorados.
— A lei faz essa autorização e traz alguns requisitos que devem ser cumpridos. Um deles seria a apresentação de prestação de contas. A ideia é reverter os valores arrecadados para a manutenção do espaço cultural — diz Max Möller, agente setorial da Procuradoria-Geral do Estado do RS, que atua na Secretaria Estadual da Cultura (Sedac).
A lei especifica que as áreas cedidas em instituições estaduais de cultura podem ser utilizadas para atividades como restaurante, livraria, lojas de roupas ou artes, serviços culturais (por exemplo, cinemas) e turismo, entre outras.
A lei ainda prevê que as associações podem retirar até 30% do valor arrecadado para a sua própria administração e manutenção. No entanto, a maior parte do montante é para ser investida no espaço público. Outro dever das associações concessionárias é apresentar balancetes à Secretaria de Cultura. Caso essa obrigação seja descumprida, o contrato poderá ser rescindido.
Em artigo publicado nesta quinta-feira (12), a secretária da Cultura do Rio Grande do Sul, Beatriz Araújo, lembra que, em 2016, passou a vigorar a lei n° 13.019, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. A lei regulamenta o regime jurídico de parcerias entre a administração pública e as Organizações da Sociedade Civil (OSCs).
"Com isso, atualmente temos um regramento que oferece segurança jurídica às associações de amigos e aos administradores públicos. O arcabouço legal possibilita a execução de projetos de interesse mútuo, com finalidade pública, oferecendo à gestão de teatros, centros culturais, museus e bibliotecas, entre outros espaços de promoção e difusão da cultura, maior efetividade nas entregas à sociedade, valendo-se de suporte financeiro oriundo de várias fontes, incluindo o próprio poder público nesse rol de possibilidades", atesta Beatriz.
Desacertos
Uma das funções de Möller na Sedac é trabalhar na renovação e na melhoria da prestação de contas do Theatro São Pedro. A AATSP e a Fundação Theatro São Pedro (FTSP), entidade pública que administra o local, tiveram impasses na renovação de contrato.
O negócio que motivou a Operação Bastidores surgiu há quase duas décadas, quando as entidades firmaram um termo de cessão de uso permitindo que a AATSP explorasse e administrasse as dependências do teatro e eventos de caráter fechado.
A parceria acabou sendo rompida neste ano, de forma unilateral. A fundação não renovou o termo sob a alegação de que a associação não aceitou novas cláusulas que seriam, inclusive, exigências de órgãos de controle. A associação, por sua vez, se disse prejudicada com o teor do que estava sendo proposto.
— Houve um momento em que o Estado passou a não alcançar os valores que o TSP necessitava para funcionar. Então, a associação vai lá e assume algumas funções. A associação, que tinha um número expressivo de sócios e receita, passou a custear coisas que eram, em tese, da instituição. O que era ótimo: a sociedade está tomando conta de um espaço público — relata Möller.
Porém, as relações entre fundação e associação foram estremecidas ao serem separadas as atribuições novamente. Em maio, a fundação assumiu toda a administração de bens móveis e imóveis vinculados à instituição, incluindo-se o prédio do Theatro São Pedro e o do Multipalco Eva Sopher.
"Seguindo a legislação vigente, em especial a Lei 9.186, de 27 de dezembro de 1990 e suas posteriores modificações, e atendendo às orientações reiteradamente expressas pela Contadoria-Geral do Estado (Cage), Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e Tribunal de Contas do Estado (TCE), foram esgotadas todas as tentativas para que se alcançasse a renovação do vínculo com a assinatura de um novo Termo de Cessão de Uso", cita a nota divulgada na época.
— Grande parte dos problemas em relação à associação se dava por um modelo de contrato de uma cessão de uso que trazia muito poucos elementos, não trazia a complexidade de obrigações que um contrato que essas relações demandam — diz Möller. —Apresentamos esse contrato em janeiro e aguardamos até maio para que fosse aderido esse modelo de contrato. O objetivo era eliminar qualquer dúvida de transparência em relação aos dois entes.
Voluntários
Cada associação tem suas especificidades e valores para admitir novos integrantes. O trabalho na gestão é voluntário, embora possam contratar funcionários (dentro da receita para manutenção própria prevista na lei). Márcio Carvalho, presidente da Associação dos Amigos do Museu de Arte Contemporânea do RS (AAMACRS), destaca que uma associação, por natureza, é um trabalho voluntário em função de uma causa coletiva:
— É a essência da cidadania: as pessoas doarem um pouco de seu tempo para a sociedade em benefício das coisas que a sociedade provê.
Márcio ressalta que nem todo mundo que se envolve com associações ou entidades tem experiência profissional em administração, o que acaba propiciando um voluntariado amador.
— Uma das prerrogativas desde o início é ter um voluntariado profissional, em especial do controle de dinheiro. Porque dinheiro de uma associação, mesmo privada, não é dos gestores, mas sim do propósito que a associação tem com a sociedade — aponta.
Para a AAMACRS, o objetivo é apoiar e prover recursos para ações do MACRS, de acordo com as diretrizes determinadas pelo seu diretor e pelo seu conselho consultivo. Entre as ações, Márcio cita um leilão no Palácio Piratini em outubro de 2019, cuja receita foi voltada ao custeio das ações da nova sede do Quarto Distrito e reforma de sede na CCMQ.
Há casos em que a associação é mais antiga que a fundação do espaço, como a Associação dos Amigos da Casa de Cultura Mario Quintana (AACCMQ). Foi criada em 1984, cinco anos antes da inauguração da casa, para poder angariar os recursos que vinham da área pública e da área privada para o espaço.
— É uma entidade sem fins lucrativos, proponente de projetos para angariar os recursos dentro das leis de incentivo à cultura, tanto estadual quanto federal, para que o recurso entre e seja aplicado 100% no projeto ou na obra — explica o tesoureiro da associação, José Eduardo da Silva Vital.
Outra origem de recursos são os espaços comerciais da CCMQ (livraria, restaurante e loja), que a associação também administra. Entre os próximos projetos da entidade estão a finalização da obra do Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) até o final do ano.
— A associação é criadora e proponente do projeto, controlando a execução. Ano que vem, com as novas restrições, novos projetos vão ser criados — aponta o tesoureiro.
Vital está na associação há 28 anos. Sobre esse tempo de voluntariado, ele define:
— É uma doação de seu tempo e seu carinho pela casa.
Além de museus
As associações de amigos do setor cultural não se resumem a centros ou museus. Um exemplo era a Associação dos Amigos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), que hoje está desativada.
Em atividade está a Associação Lígia Averbuck. Fundada em 1987, a entidade tem como objetivo apoiar o Instituto Estadual do Livro (IEL). A associação é composta por voluntários ligados ao setor (escritores, editores e colaboradores).
— Nosso objetivo maior é dar visibilidade ao escritor por meio de encontros, mesas redondas, palestras, oficinas. Realizamos várias ações culturais, com escritores e escolas, além de jantares beneficentes para apoiar o IEL — descreve a presidente da associação, Cleonice Bourscheid.
Neste ano, as atividades da associação se reduziram a eventos digitais. A entidade mantém uma barraca digital na Feira do Livro de Porto Alegre para vender obras do acervo do IEL. Toda a renda será revertida para o instituto.
— Esperamos retornar com oficinas e palestras em 2021, bem como parcerias com a Escola da Ospa e a Casa da Música, trazendo alunos das escolas públicas ao IEL — pontua Cleonice.