José Valcir da Costa, 55 anos, observou atento o primeiro veículo passar. Quando o segundo carro parou perto da praia, com mais três pessoas, saiu correndo de casa em direção ao topo das dunas. O pescador temia que o cercado construído por ele, com cordas coloridas trançadas sobre toras de madeira, fosse violado. Seu Zé, como é conhecido na comunidade de Valverde, em Balneário Gaivota (SC), é o protetor de um ninho de tartarugas-de-couro localizado na praia.
— Ninguém vai chegar perto. Isso é um presente para nós todos — garantiu o gaúcho de Cambará do Sul.
Monitorada desde 12 de janeiro, a tartaruga-de-couro que havia depositado ovos em Arroio do Sal cumpriu o cronograma esperado: no final da noite de sábado (23), ela retornou à costa e fez nova desova no início da madrugada de domingo (24). Estimativas dos biólogos do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) apontavam que o animal cavaria outro ninho cerca de 11 dias após o primeiro evento. Pontual no prazo, ela foi encontrada por Seu Zé — morador de Santa Catarina há 15 anos — e por vizinhos em Balneário Gaivota no mesmo horário em que chegara à praia gaúcha 11 dias antes, perto das 23h.
— Peguei as cordas, finquei uns paus e protegi. Passa muita moto aqui nas dunas, as gurizada faz rally. E tem os curiosos. Isso é coisa mais linda. Ela parece uma patrola, enorme — definiu, sobre o animal de 1,5 metro de comprimento.
Uma família de Caxias do Sul, que se isolou na comunidade desde o início da pandemia, filmou o momento em que ao menos 20 ovos eram depositados na toca. Os ambientalistas reforçam que luzes devem ser evitadas por quem observa um animal em um momento de desova. O recomendado é deixá-lo seguir o curso natural, mesmo que pareça vagaroso e que esteja sem forças.
Outras imagens mostram o animal desorientado, mexendo as nadadeiras em círculo na faixa de areia. Os rastros ainda eram visíveis na tarde desta segunda-feira (25). Na sequência, a tartaruga subiu as dunas para fazer o ninho.
A desova desse tipo de réptil é rara no Rio Grande do Sul: foi documentada uma única vez no Estado, em 1995. Via de regra, essa espécie é encontrada no Espírito Santo.
Confira a entrevista do pescador que protege o ninho, na Rádio Gaúcha:
Raio de 50 quilômetros
Não havia como prever a área exata em que a tartaruga sairia da água para depositar seus ovos. Por isso, um raio de 50 quilômetros para norte e para sul foi traçado pelo Ceclimar. E no fim o animal se deslocou até o limite apontado pelo biólogo Maurício Tavares: a 50 quilômetros ao norte de Arroio do Sal, entre Balneário Gaivota e Passo de Torres (cidade catarinense na divisa do RS com SC).
Tavares temia não ter o registro desse retorno ou que o réptil sofresse com o assédio de curiosos. Nesta segunda-feira (25), comemorou o êxito do monitoramento.
— Temos certeza absoluta de que é a mesma tartaruga, pelas características das imagens e do trajeto da desova — justificou o pesquisador do Ceclimar.
De acordo com a bióloga do Departamento de Meio Ambiente de Balneário Gaivota, Adelsa Fernandes, a tartaruga ficou desnorteada com a quantidade de pessoas que começaram a filmá-la. A secretária foi acionada no domingo por um bombeiro militar que recebeu vídeos que mostravam o réptil.
— Encontramos o ninho pelo rastro, e pelas marcas deu pra entender que ela ficou andando em círculos, devido às luzes de quem estava a sua volta. Depois, subiu a duna, fez o ninho e desceu retinho para o mar — explica.
Há 11 anos no órgão de defesa do ambiente, Adelsa sorri ao ser questionada sobre o que representa o evento para ela.
— Uma experiência que eu nunca havia tido na vida — define.
Conservação e acompanhamento
Passo de Torres e Balneário Gaivota trabalharão em conjunto na conservação de locais de desova. Secretário do Meio Ambiente de Passo de Torres, Roger Maciel relembra que em 2019 uma tartaruga gigante foi encontrada morta à beira-mar. Na época, o fato gerou comoção de veranistas e ambientalistas.
— Agora, encontrar essa, também gigante, depositando ovos é um fato raro e que nos deixa muito felizes — complementa.
No sábado, uma homenagem foi realizada em Arroio do Sal, com a construção de uma escultura de 10 metros quadrados. Os guarda-vidas da guarita 40, onde rastros indicam a passagem do animal, esculpiram a areia de forma voluntária. Orientações de especialistas do Ceclimar foram seguidas para manter a ilustração fidedigna. O feito inspirou crianças do entorno, que imitaram os socorristas em obras de menor proporção.
Assim como no caso do ninho de Arroio do Sal, a temperatura da areia será aferida em Balneário Gaivota para garantir a segurança dos filhotes “catarinenses”. Termômetros especiais foram adquiridos pelo Ceclimar, e devem ser entregues nos próximos dias ao órgão que estuda a costa gaúcha — a divisa entre os Estados não será uma barreira, informam os envolvidos de ambos os lados. Até portão com cadeado e telas devem ser instalados nos próximos dias para garantir a proteção do local.
As tartarugas levam entre 60 e 90 para dias para nascer, prazo influenciado pelas condições climáticas. Próximo do fim desse prazo, técnicos deverão acompanhar o ninho, à espera do nascimento dos filhotes. Eles eclodem dos ovos e se deslocam diretamente para o mar, devido à luz refletida na água.
O réptil dessa espécie pode retornar para construir de três e 10 pontos de incubação. Para não perder nenhuma dessas ninhadas, os veranistas gaúchos e catarinenses estão sendo orientados a avisar aos guarda-vidas caso notem rastros no chão. Semelhantes aos pneus de um trator, os vincos são feitos pelas nadadeiras. Caso encontre uma tartaruga, a pessoa não deve fazer contato, pois pode fazer com que ela perca a referência e desista da desova.