Três pontos do litoral gaúcho são considerados, hoje, as zonas mais dramáticas para o processo de erosão na costa — avanço do mar sobre a faixa de areia — do Rio Grande do Sul. São os chamados hotspots erosivos. Dois deles, o balneário Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar, e o Farol da Conceição, em São José do Norte, vêm sendo acompanhados há mais de 30 anos por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Já o ponto mais recente identificado por quem estuda a situação dessa região do Estado fica no Balneário Mostardense, em Mostardas, no Litoral Médio.
O hotspot erosivo é uma área onde é identificado um intenso recuo da linha de costa em relação às áreas adjacentes e que não apresenta reposição da areia retirada do sistema.
Entre 1984 e 2020, apontam os pesquisadores, a faixa de praia no Farol da Conceição reduziu 150m - 1,3 vezes o tamanho do prédio mais alto de Porto Alegre, o Santa Cruz, inaugurado na década de 1960, com 107 metros. O fenômeno causou a queda da estrutura, em 1993. Seis anos depois, uma tempestade destruiu a antiga casa do faroleiro.
Segundo o oceanólogo Lauro Calliari, do Núcleo de Oceanografia Geológica da Furg, que estuda o litoral gaúcho desde a década de 1980, a erosão costeira é um fenômeno que atinge costas no mundo inteiro, sobretudo em praias arenosas expostas a episódios de alta energia de ondas, como a costa gaúcha. Este fenômeno pode estar associado a uma lenta subida do nível médio do mar, resultante do aquecimento global, do possível aumento na frequência e na intensidade das tempestades costeiras, entre outros fatores. Por isso, o monitoramento precisa ser permanente.
— O Farol da Conceição é o ponto com maior taxa de erosão do Estado, mas fica numa região sem moradores. Por isso, o primeiro ponto mais preocupante é o balneário Hermenegildo (com taxa de erosão anual entre 2m e 3m), porque tem urbanização e erosão costeira — explica Calliari.
No Conceição, onde o recuo das dunas tem sido entre 3m e 5m ao ano, a erosão é considerada natural por não ter a influência do homem. Situação diferente do balneário de Santa Vitória do Palmar, onde a urbanização sobre as dunas frontais intensificou o processo erosivo e fixou uma linha de costa, que não é estática, causando problemas socioambientais, como a perda de imóveis.
No caso do Farol da Conceição, uma das explicações para o avanço do mar sobre a faixa da costa é a concentração de energia de ondas neste local devido à morfologia submarina (bancos fixos que são resultado de antigas formações geológicas). A areia retirada das dunas é transportada tanto para fora da costa quanto ao longo dela, não retornando ao sistema.
Para acompanhar a movimentação do mar no litoral gaúcho, os pesquisadores utilizam ondógrafos, que medem a altura de onda, equipamentos topográficos e sensoriamento remoto, usando imagens de satélite e aerofotogrametria por drones, além de observações visuais. Nas tempestades, é comum a costa do Rio Grande do Sul apresentar ondas superiores a 5m, chegando a mais de 10m em eventos extremos.
Marcas no Farol da Conceição
Formado em Geografia, Rodrigo Simões, orientando de Calliari no doutorado em Oceanografia, lembra que, em outubro de 2016, durante um ciclone extratropical, as ondas alcançaram a altura máxima de até 14m na região. Este único evento elevou o nível do mar com alta energia de ondas, erodindo a costa inteira do Estado.
No Conceição, as marcas do avanço do Oceano Atlântico estão por toda parte. Além do desaparecimento da construção de alvenaria e da casa do faroleiro, a faixa de areia continua sendo engolida pelo mar. O primeiro farol foi construído em 1929, a 200m da linha da água. O novo, erguido na década de 1990 em estrutura metálica, já está com cerca de dois metros da base de concreto exposta.
Além do confirmado desaparecimento da faixa de areia, outros sinais da natureza indicam a existência da erosão acentuada na região: a perda das dunas frontais, o surgimento de camadas de turfas (fundo de antigos pântanos milenares que reaparecem no formato de blocos na beira da praia) e a concentração de minerais pesados contendo titânio e que deixam a areia mais escura no trecho. Situação semelhante ocorre nos arredores dos balneários Hermenegildo e Mostardense.
De acordo com Calliari, o desenvolvimento do litoral gaúcho nos próximos anos precisa ter ainda mais cuidados. Ele alerta que com a pavimentação da BR-101, entre Capivari do Sul e São José do Norte, a zona costeira da região média do litoral gaúcho, hoje em início de urbanização, deverá crescer rapidamente em número de moradores. Por enquanto, a taxa de erosão anual nos setores mais críticos do Litoral Médio está entre 3m e 5m, porém existem longos segmentos onde o comportamento da linha de costa é estável.
Mas o próprio pesquisador, que mora em Rio Grande, sustenta que é possível ocorrer um avanço ainda maior do mar nas próximas décadas.
— Nestas áreas críticas, se as pessoas desejam ter as casas por mais tempo, deverão construir os imóveis considerando uma faixa de recuo de urbanização de acordo com as taxas de erosão locais. Por exemplo: se um determinado local da costa apresenta uma taxa de recuo de 3m ao ano, para garantir a permanência com segurança de uma determinada construção por cem anos, um recuo de pelo menos 300m das dunas frontais deve ser respeitado para a realização dessas construções. Evidentemente, isso carece de planejamento e estudos locais mais detalhados para determinar as características específicas de cada local — indica Calliari.
Entre Quintão e Torres, no Litoral Norte, processos erosivos em razão de tempestades costeiras já são capazes de destruir os calçadões das praias e causar alagamentos na área urbanizada mais próxima da faixa de areia. Porém, estes fenômenos não são considerados hotspots erosivos. Calliari sugere estabelecer uma faixa de recuo em todo o litoral gaúcho, de acordo com as características de cada ponto e usando como indicadores a previsão de subida do nível do mar, a altura de ondas na costa e o transporte de areia pelo vento. No que já está estabelecido no Litoral Norte, pontua o professor, é preciso fazer um manejo. Já nos litorais central e sul, vale evitar a ocupação próxima das dunas frontais das áreas menos desenvolvidas.
Por meio de nota, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) informou que “todos os municípios litorâneos precisam dispor de um Plano de Manejo de Conflitos entre Urbanização e Dunas, o qual deve ser aprovado pela Fepam e estabelece, entre outras coisas, medidas de uso do solo, tanto permitindo ocupação, como exigindo preservação. Este Plano deve ser seguido pelo município para permitir uso na faixa de praia e também para seus Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano. Informa, ainda, que o Estado do Rio Grande do Sul possui um zoneamento do litoral norte, que está sendo atualizado”.
Um novo Hermenegildo
Dois fenômenos naturais ameaçam a existência dos imóveis mais próximos da faixa de areia no Balneário Mostardense, em Mostardas, no litoral central gaúcho: a movimentação das dunas costeiras e o avanço do mar sobre a faixa de areia. O resultado destas situações começa a ser visualizado pelos próprios moradores e veranistas. As primeiras casas estão sendo engolidas pelas dunas. E depois delas será a vez do mar avançar sobre as construções.
Acompanhando o processo de degradação desta comunidade litorânea desde 2015, o geógrafo Rodrigo Simões apresenta indícios de que o Mostardense é um novo hotspot erosivo do litoral gaúcho. No local, o mar vem avançando entre 3m e 4m ao ano. Simões faz doutorado em Oceanografia na Furg e o seu trabalho busca a comprovação desta questão.
Usando técnicas como aerofotogrametria por drones, que proporcionam modelos 3D da praia, dados obtidos por sensoriamento remoto (imagens de satélite), geoindicadores, dados meteo-oceanográficos e dados granulométricos, o pesquisador mostra a movimentação costeira nas últimas décadas.
— O Balneário Mostardense pode ser como o Hermenegildo no futuro, com problemas socioambientais decorrentes da associação de ocupação costeira não planejada em uma área de hotspot erosivo. O processo de ocupação do Balneário Hermenegildo começou a se intensificar a partir da década de 1940, quando esses conceitos ainda não eram bem conhecidos. No momento atual, com a grande gama de ferramentas e conhecimentos adquiridos sobre esses processos costeiros nas últimas décadas, o poder público e a sociedade civil deveriam aplicá-los para evitar tal situação. Se um plano de manejo alinhado aos conceitos da geomorfologia costeira não for implementado no local, mais casas serão destruídas — garante o pesquisador.
Basta percorrer o balneário para ver a atual situação. Na casa de veraneio da família de Thaila Antunes, 28 anos, as dunas invadiram um dos quartos do imóvel em 10 de janeiro deste ano, destruindo a parede, a janela, parte do forro e os móveis. Por sorte, não havia ninguém na casa. A família mora na área central de Mostardas. Há cinco anos, quando compraram o imóvel, recorda Thaila, as dunas estavam em frente à casa.
— Pretendemos ficar aqui só mais neste verão. Não tem mais como continuar — lamenta Thaila que, junto à família, tem permanecido mais tempo na área da cozinha, nos fundos do imóvel.
Vizinho de Thaila, Alexsandro Saraiva, 44 anos, veraneia na casa da família há 35 anos. Ele recorda que, nos anos de 1980, havia a Avenida Beira-Mar na frente e por onde entravam de carro. Hoje, não existem a avenida e o muro frontal da casa, só aparecendo um metro do alto do poste de energia elétrica.
Para tentar conter a areia, que está a menos de 2m de uma das paredes da casa e destruiu um dos pilares da área ao redor do imóvel, Saraiva plantou onze-horas sobre as dunas e permanecerá morando no local também durante o inverno.
— Vimos o avanço das dunas e do mar. Para que a areia não invada a casa, a gente vai tirando ela aos poucos — conta.
No verão de 2003, lembram Calliari e Simões, a movimentação das dunas frontais na praia de Tramandaí após episódios contínuos de fortes ventos Nordeste resultou no solapamento e desmoronamento da parede de uma casa, causando a morte de adultos e crianças que dormiam no local.
Mapeamento após ação judicial
Segundo o prefeito de Mostardas, Moisés Pedone, desde 2009 tramita na 9ª Vara Federal de Porto Alegre uma ação civil pública contra o município, que busca mapear as áreas de proteção permanente (APPs) de Mostardas. Entre os problemas apontados pelo Ministério Público Federal estão as residências construídas em terrenos próximos aos balneários, definidos como de preservação. O objetivo do MPF, autor do processo, é evitar que o modelo de ocupação em Mostardas siga os exemplos de outros municípios do Litoral Norte, considerados predatórios ao meio ambiente.
Um dos primeiros resultados da ação judicial foi o mapeamento da zona costeira, feito pelo Núcleo de Estudos de Monitoramento Ambiental (Nema) a partir de um convênio com o Executivo municipal. A sentença final do processo deveria ter ocorrido em março de 2020, mas foi adiada devido à pandemia.
— Enquanto não tivermos a sentença definitiva, que está próxima de sair, o município está impedido de gerir os quatro balneários de água salgada e a Lagoa do Bacopari. Não temos o poder como gestão para atuar forte neste balneários, por enquanto. O que temos feito é o monitoramento sobre a questão das dunas. Sou leigo, mas é possível ver que elas estão próximas das casas. Assumimos vários compromissos com a Justiça. É um processo bem complexo que envolve, por exemplo, não deixar ampliar algumas áreas do município — resume Pedone.