Sentado às margens do canal que liga o Rio Tramandaí ao mar, próximo da ponte Giuseppe Garibaldi, em Imbé, o comerciante aposentado Anacleto Faé, 64 anos, limpa as sardinhas pescadas minutos antes. Mesmo concentrado na tarefa, fica atento a uma movimentação quase silenciosa.
Garças-brancas-pequenas, e também as grandes, biguás e savacus circulam na volta de Faé à espera de um mimo que possa forrar os estômagos insaciáveis: pedacinhos de peixes jogados pelo aposentado. Algumas das aves, sem temer a aproximação, comem direto da mão dele.
Em outro ponto do canal, pescadores artesanais aguardam as indicações dos botos para lançarem as tarrafas. Os animais cercam as tainhas e os linguados, mostrando o cardume aos amigos na faixa de areia. Imóveis, os pescadores ficam à espera da hora exata de tarrafear. As cenas de convívio harmônico entre animais e seres humanos são comuns, diariamente, na barra entre Imbé e Tramandaí.
Em 2019, um estudo na região realizado pelo mestre em biologia animal Yuri de Camargo apontou a existência de 32 espécies de aves, sendo seis delas migratórias do sul da América. Além disso, a área é um dos poucos ambientes no mundo onde existe ainda a pesca colaborativa entre pescadores e botos.
Ou seja, pode ser considerado um santuário urbano, como ressalta Ignacio Moreno, professor de zoologia do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) do Campus Litoral Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que acompanha a interação entre as aves e os pescadores e coordena o projeto Botos da Barra, ligado ao Ceclimar, cujo objetivo é promover estudos aprofundados sobre a técnica única e divulgar o conhecimento à população em geral.
Na barra entre Tramandaí e Imbé, até o mais sábio pescador prefere tirar o peixe contando com o auxílio que ultrapassa décadas e faz do canal um lugar especial também para os pesquisadores. Mesmo sem falar, a família de botos que costuma entrar na barra duas vezes ao dia indica onde está a pesca garantida ao apontar o rosto ou a nadadeira na direção dos cardumes.
Ao contrário dos botos, as aves são mais “preguiçosas”, como relatam os pescadores. Caminham e voam no trecho, mas só estão ali para garantirem a própria alimentação sem grande esforço. Basta estarem próximas de quem retira os peixes da água.
Pescador há oito anos, Rodrigo Otávio da Silva, 40 anos, morador de Imbé, já acostumou-se a ficar cercado por elas enquanto retira tainhas e camarões das águas. Mas, apesar da amizade com as aves, ressalta que é preciso manter o olhar atento porque algumas surrupiam o pescado direto do balde.
— Elas são bem espertinhas. Se você demora a dar um peixe, sempre surge uma que vai direto no balde e atrai outras. Viram uma gangue. Mas é bonito de ver todas juntas — comenta, entre risos.
— Com os botos, é diferente. É como se estivessem trabalhando enquanto se alimentam, porque ajudam quem precisa pescar. Colaboram com a gente — completa.
Para Anacleto Faé, morador de Serafina Corrêa e que há 15 anos veraneia na praia de Santa Terezinha, as aves são boas amigas. Enquanto aproveita o tempo para pescar na barra ao lado do filho Gabriel, 16 anos, costuma observar a movimentação delas. Garças, apesar de serem mais graciosas e imponentes ao se movimentarem, não são ágeis como os biguás, garante Faé.
— Os biguás mergulham muito rápido. Quando jogo o peixe na direção da água, muitas vezes ele nem caiu e já está no bico do biguá. Sem contar que ele mergulha em alta velocidade — conta, impressionado com a habilidade da ave.
De acordo com professor do Ceclimar, o que ocorre na barra entre Tramandaí e Imbé é positivo, uma reciclagem natural do ambiente.
— Pela questão sanitária, uma peixaria ou comércio de peixes precisa descartar os resíduos. Na barra, os pescadores têm por tradição limpar os peixes antes da venda ou de levarem para casa. Eles retiram as vísceras e os escamam. A prática foi aprendida pelas aves, que se alimentam dos restos no local e acabam deixando as margens limpas. É como um ciclo se fechando entre os usuários — explica.
Tanto as aves quanto os mamíferos, ressalta Moreno, tem alto poder de aprendizado. Identificados pelos pescadores mais experientes, a partir das marcas em suas nadadeiras dorsais, os botos são chamados pelos nomes. Geraldona, uma fêmea que frequenta Tramandaí desde o início da década de 1990, é das mais antigas e costuma ensinar os filhotes a se alimentarem na região.
A nadadeira dorsal dela foi cortada por uma linha de pesca e não tem ponta — com o passar dos anos, os ferimentos causados por enfrentamentos com outros animais e por redes de pesca, por exemplo, deformam as nadadeiras, tornando-as diferentes entre os animais.
O santuário entre Tramandaí e Imbé, alerta Moreno, corre riscos ambientais por conta de situações que ainda impactam negativamente a área, como o lançamento de químicos nas lavouras da região, o crescimento urbano desordenado e os dejetos das duas cidades despejados diretamente nas lagoas, que acabam atingindo diretamente a barra.