Luciane e Régis não usam mais relógio. Ambos mostraram os pulsos livres, como sinal de uma mudança de vida: das regras rígidas do escritório em Porto Alegre à liberdade de empreender em Capão da Canoa, no Litoral Norte. Marido e mulher decidiram abandonar as carreiras e elevar os dons do chefs da cozinha caseiros para o nível profissional no Restaurante La Campaña. Fundado em 2018, ele é inspirado em um dos pratos mais apreciados pelos uruguaios, as baguetes com queijo e entrecot.
– Eu chegava na casa dos amigos e me oferecia para cozinhar. E todo mundo adorava. O prazer de vê-los satisfeitos não tem igual. É o que tenho aqui - conta o chef.
A história do casal seguia um rumo tradicional. Luciane de Souza Gonzaga, 50 anos, era contadora de uma grande companhia privada havia duas décadas. Régis Severo, 48, estava prestes a completar 25 anos em uma imobiliária, na qual alcançou o posto de gerente. A falta de tranquilidade na capital gaúcha, no entanto, os levou a pedir demissão. A seguir, foram viver na praia.
- Aqui, o nosso filho pode sair tranquilo na rua, não tem aquela preocupação da Capital, aquela violência - complementa, dizendo que o nome do restaurante, em espanhol, é uma homenagem ao local em que estava no dia em que decidiu fundar seu próprio negócio: as campanhas uruguaias.
Nascido em Dom Pedrito, na região da Campanha – outra referência para o nome do restaurante - ele se diz curioso pela culinária desde a infância. De tanto incomodar mexendo nas panelas da avó, ganhou um presente inusitado para quem tinha seis anos de idade: uma panela com duas alças, do diâmetro de uma pequena leiteira, e com poucos centímetros de profundidade. O primeiro prato, relembra, foi cebola frita, “bem fritinha, até soltar os açúcares”, reforça, metódico.
Régis virou um chef profissional em cursos de especialização, e a partir daí deixou de cozinhar apenas para amigos e parentes.
- Tive que fazer um esforço para emagrecer, por causa das comidas dele, que a gente come sem parar – afirma o filho, Tales Severo, 16 anos, que auxilia no empreendimento.
O espaço iluminado por luzinhas penduradas na porta de entrada funciona no centro comercial Paseo Kolman, na região central da cidade. Se diferencia pelas baguetes recheadas com carnes nobres, como entrecot, filé e camarão. Mas o que chama atenção no cardápio, para os clientes que visitam o lugar pela primeira vez, são os pratos exóticos: jacaré, rã e escargot.
- A gente é bem aberto, fiquei curiosa – contou a bancária Alice Corrêa, 29 anos, ao lado do namorado, ao observar a rã com limão e outras especiarias.
Os alimentos incomuns são buscados no aeroporto Salgado Filho, encomendas que chegam de São Paulo e do Pantanal sul-matogrossense. O jacaré, incluído no menu como uma experiência, teve o estoque esgotado em poucos dias, e o peixe-sapo é negociado pelo empresário – também conhecido como tamboril, ou peixe-pescador, o filé é muito apreciado na França, segundo o cozinheiro, e já foi o prato principal de concursos de chefs, na televisão.
A rã e o escargot foram preparados pela primeira vez no último sábado (16). Grelhado com óleo e manteiga, o anfíbio ganha ervas finas e vinho branco. Tem textura de carne de frango, porém, o paladar é distinto, quase como um peixe – a experiência da reportagem de GZH é amadora, de quem nunca havia provado a iguaria. Dentes de alho finalizam a montagem, que pode ser complementada com molho chimichurri e maionese caseira.
O escargot, fora do caracol, é gratinado no forno com conhaque e queijo gorgonzola. Servido sobre baguetes fatiadas, assemelha-se a um fruto do mar, como o marisco, mas na boca gera sensação de se estar mordendo um cogumelo.
Os demais pratos podem ser conferidos no instagram do restaurante.
Luciane exerce outro papel no empreendimento, além da contabilidade: faz questão de estar ao lado do marido na explicação dos pratos, e parece carregar na memória um livro de receitas, ao citar os banquetes já proporcionados. Além do prazer por trabalhar com o público, ela comemora o tempo que passa ao lado da família.
- A gente nunca se desgruda – complementa.
De jeitão orgulhoso, o "dono" das panelas sai da cozinha e caminha até as mesas para questionar se o preparo estava conforme o esperado. Com a panela da avó na mão, remete novamente à satisfação do que acabara de ouvir do cliente, e abraça esposa e filho. A alquimia dos temperos e o carinho entre os familiares parecem se misturar. O chef se vira, aponta para o copo de chope quase vazio e alerta um dos seus garçons, em tom mais formal, sem deixar de ser cordial:
- Tá faltando chope aqui – arrancando outro sorriso de quem escreveu a reportagem.