Diferentemente do expresso no título, The Flash (2023), que tem sessões de pré-estreia nesta quarta-feira (14) e entra em cartaz na quinta (15) nos cinemas, é menos um filme solo do super-herói mais veloz do mundo do que uma celebração do super-herói mais volátil do mundo: o Batman.
O Homem-Morcego não é mutante, mas está sempre mudando. Se, como mostra o fascinante Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (2023), qualquer um pode ser o Aracnídeo — Peter Parker, Miles Morales, um rapaz indiano, um jovem punk, um cara de 2099 —, o Batman pode ser qualquer um: vigilante violento, personagem cômico, herói perturbado, líder inspirador, detetive minucioso, espião internacional, mestre do combate corpo a corpo, gênio das engenhocas, símbolo de esperança, sociopata fascista...
Várias de suas facetas — incluindo suas encarnações cinematográficas ou televisivas — estão presentes em The Flash, que foi escrito pela britânica de ascendência taiwanesa Christina Hodson, roteirista de Arlequina: Aves de Rapina (2020), e pelo inglês Joby Harold, showrunner da série Obi-Wan Kenobi (2022). A direção coube ao argentino Andy Muschietti, egresso dos filmes de terror Mama (2013), It: A Coisa (2017) e It: Capítulo Dois (2019).
Apesar desse currículo, Muschietti jamais esquece que está filmando uma aventura de super-herói, repleta de cenas de ação embaladas por música pop e finalizadas com uma piada. Mais do que isso: o cineasta entende que está adaptando uma história em quadrinhos, onde o limite visual reside apenas na imaginação e no talento do autor. No cinema do gênero, que depende dos avanços tecnológicos e dos recursos orçamentários, há uma preocupação constante para que os efeitos visuais em computação gráfica (CGI) criem a ilusão do real, para evitar a perda de uma suposta verossimilhança em obras de nítida fantasia (a começar pelo uniforme dos personagens). Daí alguns truques recorrentes, como a ambientação noturna, que esconde melhor eventuais precariedades. O diretor de The Flash abre mão desse realismo de fachada, se expondo ao sol durante grande parte da trama, abraçando o exagerado e o farsesco e aproximando a tela cinematográfica das páginas de um gibi.
O risco é claro: em determinadas cenas, tudo parece falso em demasia. Mas a recompensa também é clara: de que outro modo seria possível conceber a sequência de abertura, na qual Flash — que, ironicamente, está sempre atrasado na sua identidade secreta, Barry Allen — precisa evitar que uma chuva de bebês digitais se espatife no chão quando um hospital começa a desabar? Não bastasse a iminente morte pela queda, as crianças ainda ficam expostas a perigos como gotas de ácido e lâminas de bisturis. Esse show de CGI é produzido em extremíssima câmera lenta, e no meio do caminho o personagem interpretado por Ezra Miller ainda encontra tempo para comer uns lanchinhos fundamentais para seu metabolismo acelerado.
Aliás, precisamos falar sobre Ezra. Premiado por Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011) e As Vantagens de Ser Invisível (2012), o ator estadunidense de 30 anos que se identifica como uma pessoa não-binária ganhou recentemente muita visibilidade — negativa. As polêmicas começaram em 2020, com um vídeo onde aparecia (aparentemente) sufocando uma mulher em um bar na Islândia. Em 2022, foi acusado de roubo em Vermont e foi preso duas vezes no Havaí, uma por conduta desordeira e outra assédio. Também há relatos de que estaria abrigando uma família em uma fazenda cheia de armas de fogo e de que teria desenvolvido um culto a si mesmo, um "Jesus Cristo reencarnado". Ainda no ano passado, declarou que havia começado um tratamento contínuo por estar "sofrendo problemas complexos de saúde mental". Por causa disso tudo, Ezra Miller ficou afastado da divulgação de The Flash até fazer sua primeira aparição pública na pré-estreia de segunda-feira (12) em Los Angeles, e chegou a ser dada como certa sua demissão pela DC e pela Warner.
Bem, méritos não faltam no seu desempenho em The Flash. Miller consegue ser ora engraçado, ora dramático, ora herói de ação. E faz isso em dose dupla, distinguindo muito bem as suas duas personalidades. Que não são as que você pode estar pensando, Barry Allen e Flash, mas Barry Allen e Barry Allen: de um lado, o sujeito que acabou se tornando um super-herói pela combinação de um acidente eletroquímico com a obstinação de inocentar o pai, que está preso, e encontrar o verdadeiro assassino da mãe; do outro, o jovem que não virou órfão nem ganhou superpoderes.
Esse encontro acontece por que o protagonista decide usar sua supervelocidade para viajar no tempo e mudar os eventos do passado. Seu objetivo é impedir o assassinato de sua mãe (papel da espanhola Maribel Verdú), mas, como toda ficção científica alerta, ocorre um efeito borboleta, alterando drasticamente o futuro — na verdade, as linhas temporais como um todo. Agora, o Barry com poderes e o Barry sem poderes precisam encontrar um meio de deter o general Zod (Michael Shannon), que, como visto no filme O Homem de Aço (2013), quer destruir a Terra para fazer Krypton reviver.
A solução seria reunir a Liga da Justiça. O problema é que, nessa realidade, a nave com o menino Kal-El nunca pousou no Kansas, nem se tem notícias de uma princesa amazona, por exemplo. (E, numa boa piada metalinguística, quem interpretou Marty McFly na clássica comédia dos anos 1980 De Volta para o Futuro foi o ator Eric Stoltz, e não Michael J. Fox, que, por sua vez, estrelou Footloose.) Não existe Flash, não existe Superman, não existe Mulher-Maravilha, não existe nenhum dos chamados meta-humanos.
Mas o Batman existe.
Mas o Batman existe!
Essa escolha narrativa é um tremendo reconhecimento do tamanho que o Cavaleiro das Trevas adquiriu na cultura pop ao longo de seus quase 85 anos de vida, a serem completados em 2024. Só que o Homem-Morcego que os dois Barrys reencontram não é aquele brucutu encarnado por Ben Affleck desde Batman Vs Superman (2016) e que aparece no começo de The Flash. Em outra jogada metalinguística, o Bruce Wayne da vez é Michael Keaton, o ator de Batman (1989) e Batman: O Retorno (1992), filmes relembrados também no traje todo preto, na cenografia da Batcaverna e na trilha sonora, que recupera o icônico tema composto por Danny Elfman.
O PRÓXIMO PARÁGRAFO TERÁ SPOILERS.
O recurso não é novo: Homem-Aranha: sem Volta para Casa (2021) juntou Tom Holland a Tobey Maguire (o Aracnídeo da trilogia de Sam Raimi) a Andrew Garfield (dos filmes de Mark Webb). Mas The Flash mergulha mais fundo no multiverso da DC — há homenagens ao Batman vivido por Adam West na série de TV dos anos 1960 e ao Superman interpretado por Christopher Reeve entre 1978 e 1987 — e vai além (ALERTA DE SPOILER LOGO ADIANTE): oferece a nostalgia do que nunca se viu. É SPOILER, mas já havia sido antecipado pelo próprio diretor Andy Muschietti: há uma ceninha que resgata um projeto cancelado no final da década de 1990, Superman Lives, no qual, sob direção de Tim Burton, Nicolas Cage seria o Homem de Aço.
Keaton, mais de 30 anos depois, enfim está à vontade na pele de Bruce e debaixo do uniforme, graças aos evidente avanços no trabalho dos figurinistas. Sua atuação abrange muitas das personas do Batman: o herói amargurado (e agora aposentado), o artista dos duelos corporais, o gênio da tecnologia, o líder altruísta, o exímio cientista — é ele que, numa conversa com os Barrys sobre paradoxos temporais e loops casuais, vai explicar sobre as intersecções inevitáveis e o tal de fulcro. Também é o Homem-Morcego, ele também um órfão que passou a vida combatendo o crime na vã esperança de que isso fosse trazer seus pais de volta, que vai fazer o Barry oficial refletir sobre como não somos feitos só de acertos, mas de erros também: "As cicatrizes que temos fazem de nós quem somos". Seu Cavaleiro das Trevas se permite até ser zombeteiro, vide as alfinetadas no Superman. E cabe a Batman a última piada do filme, quando Barry Allen se vê diante de um homem e um segredo.