Chegou o dia de conhecer os vencedores do 50º Festival de Cinema de Gramado. Na noite deste sábado (20), a partir das 21h, com transmissão ao vivo pelo Canal Brasil, pela TVE e pelo site do festival (neste link), serão entregues os Kikitos das três principais mostras competitivas, aquelas que, entre os dias 12 e 18, foram realizadas no horário nobre da programação no Palácio dos Festivais: longas brasileiros, curtas nacionais e filmes estrangeiros.
Também haverá a premiação do melhor documentário, Um Par para Chamar de Meu (SP), de Kelly Cristina Spinelli, ganhadora da disputa exibida com exclusividade pelo Canal Brasil. O roteiro inclui os troféus destinados à competição de longas-metragens gaúchos, da qual participaram 5 Casas (2020), de Bruno Gularte Barreto, Casa Vazia (2021), de Giovani Borba, Despedida (2021), de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, Campo Grande e o Céu (2022), de Bruna Giuliatti, Jhonatan Gomes e Sérgio Guidoux, e Dog Never Raised: Cachorro Inédito (2022), de Bruno de Oliveira.
Se eu fosse o júri, faria assim a divisão dos Kikitos entre os longas brasileiros, os curtas nacionais e os filmes estrangeiros:
Longas brasileiros
Exibido na penúltima noite de competição, Marte Um, de Gabriel Martins, despontou como favorito para conquistar vários Kikitos, deixando de mãos vazias muitos dos seis rivais — A Mãe, de Cristiano Burlan, O Clube dos Anjos, de Angelo Defanti, Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, O Pastor e o Guerrilheiro, de José Eduardo Belmonte, A Porta ao Lado, de Julia Rezende, e Tinnitus, de Gregorio Graziosi. Ao final da sessão de quarta-feira, o diretor mineiro e os quatro atores principais (Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião e Cícero Lucas) foram ovacionados. Uma longa fila se formou para cumprimentá-los. Boa parte dos espectadores — aí incluídos integrantes dos concorrentes _ ainda secava o rosto das lágrimas provocadas pela lindíssima cena final. Foi um funga-funga como há muito tempo eu não ouvia em uma sala de cinema.
Marte Um é o primeiro longa-metragem solo de Martins, 34 anos (em 2019, codirigiu com Maurílio Martins No Coração do Mundo, e seu currículo inclui o curta Nada, de 2017, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes). Ao apresentar o filme, em que atua como diretor, roteirista, coeditor e coprodutor, disse:
— Sou um homem negro e periférico. Como os produtores e os atores deste filme em que a gente pode contar sobre nossas experiências. Façamos um brinde ao futuro. Que o cinema negro e o cinema periférico possam prosperar.
Gramado foi palco da primeira exibição nacional do filme, que estreou internacionalmente no Festival de Sundance (EUA), em janeiro, e entra em cartaz nos cinemas brasileiros (incluindo salas de Porto Alegre) no dia 25 de agosto — a próxima quinta-feira. Portanto, terá a rara oportunidade de aproveitar o embalo de eventuais Kikitos para impulsionar sua carreira comercial.
Divulgado como "um filme sobre sonhos e estrelas", segundo a sinopse oficial, Marte Um começa em 28 de outubro de 2018. Enquanto um telejornal anuncia a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência e fogos de artifício e gritos de guerra ecoam nas ruas, um menino negro, Deivid (Cícero Lucas), mira o céu.
Estamos em Contagem, o terceiro município mais populoso (673,8 mil habitantes) de Minas Gerais, situado na região metropolitana de Belo Horizonte. Deivid, o Deivizinho, é filho de Wellington (Carlos Francisco, o Damiano de Bacurau) e de Tércia (Rejane Faria, a Néia da segunda temporada da série Segunda Chamada) e irmão caçula de Eunice, a Nina (Camilla Damião, egressa do teatro).
Essa família, batizada com o mesmo sobrenome do diretor (que evoca sonoramente Marte), vai tendo suas personalidades e seus conflitos apresentados sem pressa, mas com foco. Deivizinho é um craque do futebol de várzea, mas sonha em ser astrofísico, como o estadunidense Neil DeGrasse Tyson, e participar de uma missão — referida no título — que em 2030 pretende iniciar a colonização do planeta vermelho.
Wellington, porteiro em um condomínio de classe alta, se orgulha de estar há quatro anos sem beber e sonha com o ingresso do filho no seu time de coração, o Cruzeiro. O pai vê essa chance crescer quando um ídolo cruzeirense, o ex-jogador argentino Juan Pablo Sorín (vivido por ele próprio), se muda para o edifício onde trabalha.
O sonho de Nina é alugar um apartamento para ir morar com a namorada, Joana (Ana Hilário). A cena na qual as duas se conhecem, em uma boate, é uma das mais bonitas e sensuais do cinema brasileiro em 2022, assim como a cena em que os pais descobrem a sexualidade da filha é uma das mais delicadas e engraçadas da temporada.
Faxineira em casas como a do anão humorista Tokinho (no papel dele mesmo), Tércia, por sua vez, não sonha: tem pesadelos e sofre de insônia desde que foi vítima de uma pegadinha de mau gosto em uma lanchonete.
À medida que as jornadas convergem e os personagens divergem, o que começara em tom de comédia dramática passa a roçar na tragédia — a ponto de o pai, a certa altura, dizer: "A gente se fodeu, família!".
Mas Marte Um, vale repetir, é um filme sobre sonhos e estrelas. Um filme sobre esperança e otimismo, um filme que alumia a alma. Brilhou na noite de Gramado graças à simbiose entre Gabriel Martins, os atores e a equipe técnica.
Uma das opções mais felizes do diretor foi a de filmar planos longos e evitar ao máximo os cortes — no Palácio dos Festivais, ele me disse que, durante a produção, várias vezes orientou o diretor de fotografia Leonardo Feliciano a assumir o risco de não fazer contraplanos (ou seja, mostrar por outro ângulo um diálogo, por exemplo). Essa decisão demonstra a confiança e o carinho de Martins para com o elenco. E, combinada à autenticidade do design de produção assinado por Rimenna Procópio e dos figurinos elaborados por Marina Sandim, ajuda a tornar Marte Um um filme tão imersivo e tão naturalista: parece que estamos juntos aos personagens, parece que esses personagens são gente de verdade.
Uma família de verdade. Que vai brigar e ter perrengues, mas que se ama e se cuida. Talvez a cena que melhor simbolize isso seja a da cadeira, protagonizada por Wellington e Nina. Enquanto escrevo, me arrepio e fico com os olhos marejados por lembrar daquele abraço pelas costas. Anote na agenda: 25 de agosto, quinta que vem, é dia de ir ao cinema para ver Marte Um — o provável campeão do Festival de Gramado.
Eu votaria assim:
Melhor filme: Marte Um
Direção: Gabriel Martins (Marte Um)
Ator: Carlos Francisco (Marte Um)
Atriz: Rejane Faria (Marte Um) ou Letícia Colin (A Porta ao Lado)
Ator coadjuvante: César Mello (O Pastor e o Guerrilheiro)
Atriz coadjuvante: Camilla Damião (Marte Um)
Roteiro: Gabriel Martins (Marte Um)
Fotografia: Leonardo Feliciano (Marte Um) ou Pedro von Krüger (Noites Alienígenas)
Montagem: Gabriel Martins e Thiago Ricarte (Marte Um)
Direção de arte: Rimenna Procópio (Marte Um)
Desenho de som: Ricardo Zollner e André Bellentani (A Mãe)
Trilha musical: Ricardo Zollner (A Mãe)
Prêmio Especial do Júri: Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, por trazer à tona a abdução da juventude de Rio Branco, no Acre, pelo crime organizado, ao mesmo tempo em que reforça a importância da descentralização da cultura, tanto para as comunidades periféricas quanto para o resto do país, cujo imaginário tem muito a crescer com as histórias da região amazônica.
Obs.: há ainda o troféu da crítica e o prêmio do júri popular, ambos também entregues nas competições de curtas nacionais e filmes estrangeiros.
Curtas nacionais
Praticamente todos os 14 curtas selecionados davam visibilidade e voz para personagens periféricos, excluídos, marginalizados. Três títulos se destacaram. O Pato (PB), de Antônio Galdino, aposta em imagens alegóricas (como a de uma galinha sendo depenada e esquartejada) e detalhes reveladores, sem jamais recorrer a palavras — a não ser as da música que encerra o filme —, para retratar o cotidiano de uma mãe (Norma Góes) e sua filha pequena no interior da Paraíba. Pouco a pouco, de forma arrebatadora, vamos apreendendo o contexto de violência doméstica e entendendo a força dos versos da canção.
Deus Não Deixa (RJ), de Marçal Vianna, é um documentário sobre Miguel, sujeito dividido entre se aceitar e ser aceito. Tempos atrás, ele se apresentava como Mika Sapequinha; depois, raspou os cabelos, abandonou as roupas femininas e decidiu abraçar Jesus Cristo. Mas a que preço?
Fantasma Neon (RJ), de Leonardo Martinelli, aborda a precarização do trabalho ao mostrar a rotina dos entregadores de aplicativo — particularmente, os que usam bicicleta. O filme mistura atores e não atores, ficção e depoimentos reais, e assume riscos: é uma surpresa, por exemplo, quando um grupo de trabalhadores realiza um vibrante número de dança.
Eu votaria assim:
Melhor filme: O Pato (PB)
Direção: Antônio Galdino (O Pato)
Ator: Luis Miguel Bispo (Deus Não Deixa) e Manoel Amorim, a Maria do Bairro (Benzedeira)— ambos os curtas são documentais, mas seus personagens são, disparado, os mais interessantes. Mereceriam dividir o prêmio
Atriz: Norma Góes (O Pato)
Roteiro: Fernando Domingos (O Pato)
Fotografia: João Carlos Beltrão (O Pato)
Montagem: Frank Sá e Fernando Pompeu Neto (Deus Não Deixa)
Direção de arte: Geóstenys Melo (O Pato)
Desenho de som: Ely Marques (O Pato)
Trilha musical: Ayssa Yamaguti Norek, Carol Maia, José Miguel Brasil e Leonardo Martinelli (Fantasma Neon)
Prêmio Especial do Júri: Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli, pela abordagem criativa de um tema urgente — o da precarização do trabalho.
Filmes estrangeiros
Tirando o pavoroso O Último Animal, rodado no Rio pelo português Leonel Vieira, todos têm méritos. Até Cuando Oscurece, segunda parte de uma trilogia do argentino Néstor Mazzini, prejudicada pela própria sinopse, que contou demais da trama.
Meus preferidos são Inmersión, do chileno Nicolas Postiglione, um tenso suspense ambientado a bordo do iate no qual o pai (Alfredo Castro) que está levando as duas filhas para conhecer a casa da família à beira de um lago ignora o pedido de socorro de três jovens pescadores; e 9, dos uruguaios Martín Barrenechea e Nicolás Branca, um filme de futebol que não é exatamente sobre futebol — é sobre o conflito entre os sonhos de um pai e os desejos de um filho.
Eu votaria assim:
Melhor filme: Inmersión
Direção: Nicolas Postiglione (Inmersión)
Ator: Alfredo Castro (Inmersión)
Atriz: Anajosé Aldrete (El Camino de Sol)
Roteiro: Martín Barrenechea e Nicolás Branca (9)
Fotografia: Matías Lasarte (9)
Prêmio Especial do Júri: La Pampa, de Dorian Fernández-Moris, por denunciar a violência contra jovens mulheres nas regiões da Amazônia peruana controladas pela máfia da mineração do ouro.