Aquele gaúcho folclórico, de bota lustrada, bombacha arrumadinha, lenço no pescoço e chapéu: pode esquecer. Ambientado na fronteira com o Uruguai e tendo o pampa com cenário, o filme Casa Vazia procura retratar o gaúcho da vida real, que pode vestir bombacha e calçar chinelos. O primeiro longa-metragem do diretor Giovani Borba foi selecionado para participar da mostra Goes to Cannes Marché du Film, do Festival de Cannes, sendo exibido nesta sexta-feira (9).
A 9ª edição do evento apresentará uma seleção de 25 produções audiovisuais de Europa, Ásia e América Latina escolhidas a partir de cinco festivais ao redor do mundo. Ainda em processo de finalização, o longa foi selecionado após participar do mercado de filmes do Festival Internacional de Cinema de Santiago (Sanfic 2020). O filme será exibido em sessão fechada para profissionais do mercado de cinema: curadores de festivais, distribuidores, agentes de venda etc.
Giovani não foi à França, participando a distância do processo. A expectativa é que Casa Vazia parta para outros eventos a partir dessa exibição e, se possível, seja lançado em 2022.
— Fiquei muito feliz com a seleção. É um espaço muito privilegiado, é o maior festival de cinema do mundo. Apesar do filme ainda não estar concorrendo ou sendo propriamente exibido no festival, ganhar este espaço antes mesmo da estreia já é muito bacana para a futura carreira de Casa Vazia — destaca o diretor, que também assina o roteiro.
Aos 36 anos, Giovani tem em seu currículo o documentário de média-metragem Banca Forte e o curta Entre os Dias, além de projetos institucionais. Natural de Pelotas, ele vive em Porto Alegre. Giovani cresceu tendo contato com cinema, desde a infância: seu pai era projecionista, levando cinema para as ruas, os salões paroquiais, os ginásios e demais eventos no interior do Estado.
O estalo para seu primeiro longa veio de um sonho: não seria de bom tom entregar spoiler, mas Giovani sonhava repetidas vezes com a cena final do filme. A partir dessa inquietação, começou a elaborar um personagem solitário, abandonado pela família.
Rodado entre Santana do Livramento e Rivera, no Uruguai, a intenção de Giovani era levar essa história para o campo, especificadamente o Pampa gaúcho, por onde tanto circulou na infância. Casa Vazia tem como protagonista Raúl (Hugo Noguera), um peão pobre e simples, costumeiramente calado. Sua família, esposa e dois filhos, recém o deixou. Ele tenta arranjar trabalho, mas sua mão-de-obra tradicional não parece se ter espaço em nenhuma vaga com o campo tomado pela tecnologia. É um homem de outro tempo.
Sem se encaixar em nenhum lugar, Raúl se junta a outros peões para roubar gado. Por outro lado, seu cunhado o recruta para ser segurança de uma estância, até por conta desses roubos que andam ocorrendo na região. Logo, Raúl se vê no meio de dois polos antagonistas. Além do drama sobre a solidão, Casa Vazia também ganha ares de western pampeano.
Com inspiração na Trilogia do Gaúcho a Pé, de Cyro Martins, Giovani procurou tratar do gaúcho sem nenhuma idealização, evitando os clichês. O diretor procura criar a moldura de um sujeito que precisa lidar com a transformação do campo e do mundo e, sobretudo, com a solidão.
— Eu queria falar do gaúcho, mas de um gaúcho contemporâneo. Que não é aquele que a gente está acostumado a ser representado. É possível vê-lo usando bombacha, alpargata e camiseta do Barcelona. Isso é sinal dos tempos, é a globalização (risos). As referências de mundo se misturam — destaca o cineasta.
Casa Vazia conta com atores experientes do cenário gaúcho, como Araci Esteves, Nelson Diniz, Roberto Oliveira e Liane Venturella (que também trabalhou na preparação de elenco), mas boa parte do casting é formada por não-atores, o que inclui o próprio protagonista. Hugo Noguera nunca havia atuado antes: ele é peão de verdade.
— É bastante arriscada a decisão de botar um não-ator para carregar o seu filme, mas também muito desafiadora. Você vai sentindo, vendo se o cara tem condições, vai conversando — descreve Giovani.
De qualquer maneira, Hugo trouxe naturalidade e entregou a introspeção que o personagem pedia. O diretor percebeu que ele era o encaixe ideal para o protagonista durante um gracejo. Enquanto o conhecia, Giovani pediu para tirar uma foto do peão com uma bicicleta, o que ele não tinha em casa. Mas isso não foi empecilho.
— Ele pegou a bicicletinha da filha, que tinha uns três anos, montou e saiu empurrando com a perna de um jeito ridículo, como se fosse um palhaço (risos). Pensei na hora: sim, ele pode fazer este filme. Hugo não tem vergonha de nada, tem a cara de pau necessária. Ele é um artista que está na fronteira e foi descoberto. Uma figura muito querida — relata.
Para seu próximo longa que está em fase de roteiro, Giovani deve voltar à temática regional gaúcha, mas, desta vez, histórica. Sem revelar muitos detalhes, ele adianta:
— Quero criar uma história fictícia e absurda dentro da Revolução Farroupilha. Acho que vou irritar um pouco os folcloristas (risos).