Entre sonhos e paixões, com uma pitada de realismo mágico, Veneza estreia nesta quinta-feira (17). O segundo longa-metragem de Miguel Falabella teve sua première no Festival de Cinema de Gramado de 2019 e saiu do evento com dois kikitos: melhor direção de arte (Tulé Peake) e melhor atriz coadjuvante (Carol Castro).
Assim como Polaroides Urbanas (2008), sua primeira incursão na direção de um longa, Falabella volta a adaptar um espetáculo com o qual trabalhou anteriormente. Veneza é uma recriação da montagem do dramaturgo argentino Jorge Accame que o diretor levou ao teatro com nomes como Arlete Salles e Laura Cardoso no elenco.
— Sempre acreditei nas dimensões cinematográficas dessa fábula. Para mim, Veneza é uma fábula — definiu Falabella em coletiva de imprensa por videochamada.
Com locações em Montevidéu e Veneza, o segundo filme de Falabella apresenta elementos de romance e drama, mas com ênfase no onírico. Aliás, o tom de fábula lírica é bastante realçado pelo belo trabalho de direção de fotografia (Gustavo Hadba), além de seus belos planos longos e coloridos.
A narrativa tem como base um prostíbulo comandado por Gringa, interpretada pela premiada atriz espanhola Carmen Maura (Volver). Cega e doente, seu desejo final é ir até Veneza reencontrar um amor do passado e pedir perdão por tê-lo abandonado. Porém, dada a precariedade dos moradores do bordel (embora seja instalado em um casarão), a tarefa é impossível.
Entre os habitantes da casa, há Rita (Dira Paes), uma personagem centrada e terna, mas de muita sensualidade. Como Gringa a acolheu quando era mais nova, ela sente a responsabilidade de ajudá-la. Rita tem uma relação que seria um prato cheio para a psicanálise com Tonho (Eduardo Moscovis), que oscila do fraterno à luxúria. Criado naquele ambiente, ele seria uma espécie de força bruta da casa.
No bordel ainda trabalham a sonhadora Madalena (Carol Castro), que pretende fugir para São Paulo com o jovem crossdresser Julio (Caio Manhente), e a cínica porém muitas vezes realista Jerusa (Danielle Winits). Toda essa trupe se une com o objetivo de levar Gringa até Veneza. Ou quem sabe trazer a cidade italiana até a matriarca do bordel.
Veneza vai entrelaçando sonho e realidade em sua narrativa. É um filme que promove o realismo mágico com aquele sabor latino-americano (o espanhol é a segunda língua do longa), traz o erotismo e a comédia, que o inclina para a neochanchada, e aborda questões como o conceito de família e aceitação LGBTQ+.
Contudo, Veneza é questionável em determinados pontos, que necessitam ser vistos com olhar crítico. Por exemplo, há um momento em que são oferecidos favores sexuais das mulheres do bordel como pagamento para que o sonho de Gringa seja realizado. Não há nem debate com as profissionais: viram barganha sem mais nem menos, caracterizando-as como mero produto. Se por um lado Tonho é afetuoso, ele também costuma ser agressivo com as mulheres de sua família e as explora sexualmente, sem nenhum questionamento. A misoginia do personagem é naturalizada no roteiro.
Na coletiva virtual, cujas perguntas eram enviadas por um chat e com mediação, esses pontos não foram abordados. Por outro lado, Falabella destacou a importância do filme chegar em um momento complicado por conta da pandemia, em que um dos motes da trama é a permissão para sonhar.
— É uma necessidade imperiosa desses tempos: nós todos temos que criar ilhas de sensibilidade no meio da barbárie. Essa é a nossa missão — disse o diretor. — Chega num momento apostando na capacidade do sonho.
Emoção na coletiva
Na coletiva de imprensa, o ator Eduardo Moscovis se emocionou ao desabafar sobre as dificuldades que a classe artística enfrenta em meio à pandemia.
— Estamos sendo tão massacrados. É tão doído. A briga que a gente está agora de resistência é dolorosa. A gente que é artista tem compreensão da dificuldade para sobreviver, para concretizar nossas obras e crenças artísticas — lamentou.
Com olhos marejados, o ator acrescentou:
— Diferente do que uma extrema de ódio acredita, não temos uma vida boa. Não aproveitamos Veneza como turistas, filmamos bastante em três dias. Não temos dinheiro sobrando, nem roubamos de ninguém. Somos muito honrados. A gente faz (trabalho) para levar o sopro de possibilidades, esperança e beleza numa obra de reflexão. Falar de Veneza é muito potente, me sinto fragilizado, mexido.
Quem também se emocionou na coletiva foi Carol Castro ao falar sobre as filmagens de Veneza, que ocorreram em 2017. Naquele período, ela recém havia dado à luz a sua filha Nina.
— Não estava nem me vendo como mulher, e sim como mãe. Foi um renascimento. Não estou falando só da estética, mas de sentir mesmo. Ela (Madalena) me trouxe o frescor do sonhar, foi muito mágico — relatou.