O documentário Alvorada estreia nesta quinta-feira (27) simultaneamente nos cinemas e nas plataformas de streaming (Now, Oi e Vivo Play). Dirigido por Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?) e Lô Politi (Jonas), o filme relata intimamente o dia a dia da então presidente Dilma Rousseff no Palácio do Alvorada, durante o processo de impeachment, em 2016.
Além de Alvorada, outras produções já retrataram o período sob diferentes ângulos — casos de O Processo (2018), de Maria Ramos, e Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa. Desta vez, o recorte está no cotidiano do então palácio residencial da presidente, em meio à turbulência enfrentada na ocasião. Além de Dilma, aparecem os funcionários da casa, os cozinheiros, os profissionais da limpeza, as reuniões, os assessores, entre outros. O documentário expõe a melancolia que, aos poucos, se abate sobre o local.
Embora o longa tenha tido seu lançamento postergado para anos depois do impeachment, as diretoras garantem que Alvorada não poderia chegar em melhor hora. Em entrevista a GZH, elas falam sobre o projeto e como foi a relação com Dilma naquele período.
Qual foi o ponto de partida para Alvorada?
Anna Muylaert - Isso foi um impulso da Lô. Ela Já tinha trabalhado nas campanhas da Dilma e conhecia todo mundo. Já tinha acesso. Ela me chamou para dirigir junto, só que recusei no primeiro momento. Mas queria colaborar de alguma jeito. Fiz um recorte, apresentei essa ideia para ela, de fazer a partir do Alvorada, filmando o golpe a partir de funcionários menores também. Ela gostou da ideia, escrevi um texto e a gente levou para a Dilma, que aprovou. Deixou a gente entrar. Ao longo do processo, acabei entrando junto.
Lô Politi - Acho que já tinha um mês desde que havia sido realizada aquela sessão do Congresso que afastou a Dilma. Estávamos um pouco agoniadas. Eu tinha esse acesso a ela, e sentia um pouco de culpa por não utilizá-lo para perguntar se não seria legal documentar aquele momento. Havia toda uma narrativa machista e misógina, com matéria falando que ela estava tomando remédio ou sendo maluca.
Como Dilma recebeu a ideia do documentário?
Anna Muylaert - Ela recebeu bem, aceitou de cara. Acho que em parte porque a Dilma precisava de aliados em sua narrativa. Naquele momento, havia muita gente que não achava que era golpe. Era importante para ela construir narrativas que favorecessem o que ela considerava a verdade. Acho que esse é o principal motivo. E também porque ela tinha uma confiança na Lô, com quem já havia trabalhado em campanha, e uma confiança em mim porque ela adora Que Horas Ela Volta?.
Lô Politi - Tínhamos certeza de que a Dilma não ia topar, pois estava tudo muito tenso. Ter uma câmera dentro de casa naquele momento ia ser muito difícil. E ela topou, foi uma surpresa. Topou corajosamente. Acho que inocentemente também, pois não tinha a noção do que significa ter uma câmera atrás de você o dia inteiro durante meses (Alvorada foi rodado durante dois meses e meio). Ela foi se incomodando, se afastando, mas deixou que a gente continuasse lá.
Há um momento, em Alvorada, em que Dilma comenta que estava sentindo as câmeras excessivamente invasivas. Ela lidava bem com a presença de vocês?
Anna Muylaert - Acho que, ao deixar a gente entrar no Palácio por motivos políticos, ela não calculou o que seria isso na prática. A nossa equipe foi com sede ao pote, com uma fome, por exemplo, de filmar encontros políticos, e a Dilma não queria que se filmasse nada que pudesse comprometer ninguém. Nas primeiras semanas, começou a ser criada uma fricção entre ela e o documentário. Chegou ao ponto de fazermos uma DR, que foi filmada. Pergunto o que ela estava achando na nossa câmera, e a Dilma começa a colocar o seu limite. De fato, ela abriu a porta da casa, mas impôs muitos limites. Acho que deixar discussão também é pertinente à personalidade dela, já que ela não é personalista, não gosta de ser uma personagem. A principal razão pela qual a Dilma deixou a gente entrar é pela narrativa do golpe, não para ser exposta. Acho que isso diz muito sobre ela.
Lô Politi - Por mais que alguns momentos parecessem um incômodo para ela, Dilma manteve a palavra e deixou a gente lá. Fomo entrando pelas beiradas, explorando outras possibilidades. Filmando o Palácio como protagonista.
Há um momento de desabafo em que a Dilma afirma que ela precisa ser forte. Como vocês sentiram a presidente naqueles dias?
Anna Muylaert - Nos dias em que estive em Brasília, sempre senti ela muito forte e centrada. Dilma encarava a situação num âmbito político, nacional e social. Nenhuma vez se vitimou ou levou algum daqueles ataques para o pessoal. Embora nós, cineastas, tenhamos entendido o caráter misógino do golpe. Claro que era um golpe político, mas pelo fato da presidente ser mulher, facilitou.
Lô Politi - Ela não lidou com aquilo como uma violência pessoal contra ela. Estava muito preocupada em ir até o fim, em construir essa narrativa até o final. Se manteve no eixo que ninguém mais se manteve, todo mundo ao redor dela foi caindo. Quando se despede das pessoas, elas estão aos prantos. E a Dilma firme e sorridente. No dia seguinte ao veredito do Senado, ela foi andar de bicicleta, inteira. Uma força impressionante.
E vocês, como se sentiram naquele processo?
Anna Muylaert -De um lado, eu sentia o privilégio por estar vendo a história com os próprios olhos. Não é sempre que se tem essa oportunidade. De outro, era muito angustiante. Tinha momentos assim que eram inexplicáveis. Teve um dia em que fui até a capela do Palácio, cheguei lá, e a Lô estava por ali também. Era meio desesperador.
Lô Politi - Me sentia péssima. A energia estava complicada no país. Parecia que o Palácio da Alvorada concentrava tudo, essa energia densa e pesada. Se concentrava tudo na Dilma. Um lugar carregado de angústia e melancolia. Parecia que você conseguia rasgar o ar com uma faca, tamanho o peso. E ela se mantinha firme.
No documentário, vemos um outro lado do Palácio: cozinheiros, assessores, funcionários, as pessoas almoçando. Vocês sempre tiveram a intenção de trazer esse outro ângulo?
Anna Muylaert - Desde o início era essa a ideia. O Alvorada tem uma espécie de poder. Acho que filmá-lo, de uma certa maneira, é registrar todos os seus andares. A ideia era trazer como o golpe chega em cada andar.
Lô Politi - São aqueles que vão continuar lá. Pode o mundo acabar ou mudar o presidente, mas essas pessoas estarão ali cumprindo a rotina delas. Isso de uma certa maneira é um paradoxo, que reforça um pouco o sentimento melancólico que o filme tem. Dilma está isolada, um pouco solitária. Mas a vida continua. Quem está resistindo ali é ela. Não é que a gente quis mostrar, é que foi assim, e acho que ficou muito claro no filme.
O final do documentário registra as funcionárias da limpeza se revezando para sentar na cadeira presidencial e posar para fotos. Para vocês, que simbolismos essa cena pode trazer?
Anna Muylaert - Naquele momento, a Dilma já havia saído. E essas meninas estavam tirando fotos por ali. Acho que tem vários simbolismos: desde a disputa pela cadeira, se você fizer um encolhimento do Alvorada, ele vira a cadeira do presidente. O fato de terminar com mulheres tirando foto, não homens, também tem um simbolismo. Outras mulheres virão. Como também tem o simbolismo de que o poder não aceita vácuo.
Lô Politi - Há vários fatores que contribuem para a melancolia do filme. Um deles é que já sabemos como será o final. Vemos toda aquela movimentação sabendo que aquilo vai acabar numa tragédia. Esse final é o ápice da melancolia. Por sorte, as mulheres que sentaram ali naquela cadeira tiveram alguma representação durante algum período de tempo, em que a Dilma foi presidente. Aproveitou-se daquele momento, e talvez não tenha mais tão cedo, pela maneira que o Brasil está caminhando.
Sendo um filme que retrata acontecimentos de 2016, como Alvorada dialoga com o momento atual?
Anna Muylaert - Queríamos lançá-lo logo de cara, mas não foi possível. Parecia em um momento que o filme tinha ficado frio. Hoje, em 2021, diria que o documentário está quente. As pessoas estão loucas para rever a história, entender o que aconteceu. Mas, por exemplo, em 2019 era outro momento. Parecia que seria mais um filme do golpe. Hoje, as pessoas estão mais interessadas.
Lô Politi - Não podia ser mais favorável: o filme está despertando muito mais interesse do que a gente imaginou que teria um tempo atrás. Agora, mesmo as pessoas que apoiaram esse golpe estão revendo aquele momento. Até comparando com o presidente que temos hoje, estão olhando de outra maneira para Dilma e todo mundo que veio antes. As pessoas estão precisando rever esse momento. Filmamos a semente de tudo que aconteceu depois. Agora estamos no ápice disso. Ou talvez ainda piore um tanto antes de melhorar. Hoje em dia, as pessoas têm necessidade de dissecar o que foi aquilo para entender como chegamos até aqui. Se o filme puder contribuir para as pessoas entenderem como a gente chegou até aqui, vai ter valido a pena.
O que Dilma achou do documentário?
Anna Muylaert -Ela assistiu a uma outra versão, próxima dessa. Ela não comentou muito, falou "está ok". E que "o final está muito bonito".
Lô Politi - O que para a gente está ótimo. Só pediu para tirar duas cenas de funcionários do Palácio que ainda estão lá. Eram cenas que não tinham a menor importância para a narrativa. Ela não falou nem um "a".