A mineira Petra Costa é diretora premiada de documentários em que o centro da narrativa cinematográfica está não só no tema, mas também nas consequências desse tema sobre ela, a autora. Era essa a abordagem no personalíssimo e belo Elena (2012), investigação sobre os passos de sua irmã mais velha, jovem que havia se mudado para Nova York para tentar ser atriz e morreu de uma overdose de remédios, aos 20 anos.
É essa também a abordagem de Democracia em Vertigem, sua narrativa pessoal sobre os eventos que levaram das manifestações de 2013 até a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, em cartaz na Netflix.
– Acho que no Elena eu assumi uma perspectiva de que o pessoal era político. E agora eu tento mostrar que o político pode ser pessoal. Nós passamos por momentos de muita polarização política recente, e eu queria muito falar da relação do indivíduo com a própria democracia. É como eu digo em um ponto do filme: percebi em um determinado momento que eu e a democracia no Brasil tínhamos a mesma idade, e achei por um tempo que tanto eu quanto ela estávamos andando em terra firme. Gostei dessa perspectiva que foi ficando clara à medida que o filme ia sendo produzido – diz Petra, em entrevista concedida por telefone.
Embora tente estabelecer uma linha temporal que vai das manifestações de junho às eleições de 2018, Democracia em Vertigem, fiel ao estilo misto de documental e confessional de sua autora, não apresenta essa linha em traços retos. A narrativa avança e recua em busca de contextos, fazendo a conexão entre a fundação do PT e a ascensão de Lula nas greves do ABC com o período do partido na presidência, ou as correlações entre a ditadura e a atual ascensão da extrema-direita no Brasil.
Documentário entrelaça o político e o individual
Assim como em Elena, Petra usa sua própria voz, pouco empostada, suave, com certos tons quase infantis de inquietação e timidez, para narrar a história em primeira pessoa e se colocar como um elemento do mundo que está analisando, o que em vários momentos acrescenta um toque metalinguístico ao desenvolvimento da narrativa.
– Começamos filmando as manifestações, conversando com pessoas na rua, e foi ali que, para mim, surgiu toda uma realidade desconhecida, a dessa polarização que logo racharia o país – afirma.
Uma das interconexões entre o pessoal e o político demonstradas no filme de Petra Costa é o próprio histórico de relações de sua família com a democracia brasileira. A diretora é filha de militantes esquerdistas presos em 1968 durante o Congresso da UNE em Ibiúna. Mais adiante na ditadura, seus pais viveram anos na clandestinidade. Ao mesmo tempo, Petra é neta de um dos fundadores de uma das maiores empreiteiras do Brasil, a Andrade Gutierrez. Há laços de parentesco entre sua família e o ex-candidato à presidência Aécio Neves. O filme tenta equilibrar a narrativa do impeachment com esse universo pessoal Ao visitar Dilma para uma entrevista em Porto Alegre, Petra leva a mãe, Lian, mineira como a presidente.
A entrevista é quase esquecida, substituída pela conversa das duas militantes da mesma geração.
O filme, exibido originalmente na abertura do Festival de Sundance, em janeiro, é uma narrativa construída de um ponto de vista assumidamente pessoal. Embora agudo no retrato de vários personagens, resume em poucas frases várias crises do PT no governo, entre elas o Mensalão. Há críticas pontuais ao partido no filme, a principal delas a perda da ligação com sua base popular.
O grande diferencial de Democracia em Vertigem para outras obras recentes sobre o tema – inclusive O Processo, de Maria Augusta Ramos, lançado no ano passado – está no amplo acesso que a diretora teve aos pontos de vista de Dilma Rousseff e Lula. Muito do material mostrado, tanto captado por Petra quanto cedido por fotógrafos oficiais como Ricardo Stuckert, que trabalhou com Lula no Planalto, apresenta o caso de ângulos nunca vistos. A câmera flagra Dilma e sua equipe acompanhando pela TV a votação do Impeachment; viaja no carro da presidente; segue Lula tanto pelos corredores do Palácio do Alvorada durante sua despedida do prédio ao fim de seu segundo mandato quanto pelas salas lotadas do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em abril de 2018, onde o ex-presidente passou dois dias antes de se entregar à Polícia Federal para cumprir a ordem de prisão emitida pelo juiz Sergio Moro .
– Foi um acesso difícil. Primeiro, a gente escreveu cartas para o Lula e para a Dilma, e nenhum deles leu essas cartas. Depois, passamos semanas tentando uma entrevista com a Dilma. Todo dia me diziam: “É amanhã”, e depois virava “logo mais”. Aí conseguimos a primeira entrevista que foi tão rígida que nem usamos. Mas ali abrimos uma aproximação – conta.
Mas a maior dificuldade, segundo ela, foi mesmo concluir o filme:
– Foi difícil achar um ponto final de uma história ainda em andamento. Percebi que teria que ser a eleição de Bolsonaro. É como se ali começasse a “segunda temporada” dessa história.
Veja o trailer
> Democracia em vertigem
(Netflix, 121min)