Embora eu escreva bastante sobre filmes de terror, séries policiais, documentários que reconstituem crimes reais e dramas tristes, meu coração também tem lugar para romances como os de Casamento às Cegas, reality show da Netflix que terá os últimos dois episódios (o nono e o 10º) exibidos nesta quarta-feira (20).
Trata-se da primeira edição brasileira de um programa dos Estados Unidos, Love Is Blind, lançado no começo de 2020 e também disponível na plataforma de streaming. A proposta é irresistível: 15 mulheres e 15 homens têm pouco mais de um mês para achar sua alma gêmea e casar. O detalhe é que, como diz o título, o pedido precisa ser feito sem que eles se vejam. Nos capítulos iniciais, acompanhamos as conversas e os desabafos dos encontros às escuras. A sintonia pode ser imediata, mas também há participantes que não dão liga com ninguém, assim como alguns acabam atraindo vários pretendentes. Só depois de um pedir a mão da suposta cara-metade é que eles vão se conhecer pessoalmente. E aí, durante um período de convivência que inclui curtir uma espécie de lua de mel antecipada, dividir um apartamento e ser sabatinado por familiares e amigos dos noivos, cinco pares devem decidir se vão dizer sim na hora H (de "Haverá surpresas!").
Na comparação com o Casamento às Cegas estadunidense, o brasileiro largou em desvantagem. Não formou um casal tão querido quanto Cameron e Lauren, que tinha o charme extra de ser inter-racial — algo que era proibido em 16 dos 50 Estados de lá até 1967. Tampouco conta com um triângulo amoroso como o de Barnett, Jessica e Mark — quando o primeiro preteriu a segunda para ficar com Amber, a rejeitada Jessica topou ficar com o terceiro, 10 anos mais moço, porém, seguiu flertando com Barnett quando os casais estavam no México.
Mas o reality show nacional reverteu o placar quando os cinco casais deixaram a fase da idealização e partiram para uma suposta vida real.
Suposta porque, já sabemos desde antes do BBB, ninguém é 100% real quando é ciente de que seus diálogos e suas ações estão sendo filmadas. Eis um ponto curioso da dinâmica de programas como Casamento às Cegas: o concorrente não mostra seu rosto e seu corpo para a pessoa que está do outro lado na chamada Cabine do Amor, mas o tempo todo está projetando sua imagem — também para nós, os espectadores. Na verdade, mesmo longe das câmeras estamos sempre desempenhando papéis, fazendo nosso filme no trabalho, na sociedade, na vida afetiva. Não é à toa que a modernização da minissérie Cenas de um Casamento (1973), do gênio sueco Ingmar Bergman, em cartaz no HBO Max com o título estadunidense, Scenes from a Marriage, abre cada episódio mostrando bastidores da produção estrelada por Jessica Chastain e Oscar Isaac. É como se o diretor e roteirista israelense Hagai Levi quisesse reforçar o caráter de personagem assumido pelos integrantes de um relacionamento.
No Casamento às Cegas brasileiro, os participantes podem até não ter falas a decorar, mas é claro que a diretora Cassia Dian e os roteiristas Ralph Maizza e Priscilla Nicolielo Mengozzi adotam estratégias da dramaturgia. A começar pela escalação do elenco, no qual a razoável diversidade étnica não se fez refletir na diversidade física — que deveria ter muito mais ênfase em uma competição que propõe o amor às cegas, não acham? Repare nos apresentadores, a atriz e modelo Camila Queiroz e o ator Klebber Toledo, e nos casais cujas rotinas estamos acompanhando: todos se encaixam nos padrões de beleza, e corpos sarados e figurinos estilosos são maioria. Um dos raros gordinhos, o gaúcho Gustavo Mester, chegou a dar match (com Pamella Soupan), mas essa foi uma das pelo menos cinco duplas descartadas para a segunda fase do programa, por causa de um limite estabelecido — que não foi explicado ao público: a nós, parece que vingaram apenas Ana Prado e o iraniano Shayan, Carolina e Hudson, Luana e Lissio, Dayane e Rodrigo, a gaúcha Fernanda Terra e o insuportável Thiago. Outra ilusão, outra edição.
Seja como for, de fato esses cinco casais estão nos proporcionando DRs e depoimentos mais intensos e tocantes do que aqueles vistos no original estadunidense. Induzidos ou não, os "personagens" abordam temas de relevância social, como o machismo e o racismo. Incompatibilidades são realçadas — por exemplo, um dos noivos já disse que não se casará se a possível futura esposa não parar de fumar. Outra dupla estrela choques que vão desde os comezinhos e administráveis, como organização versus bagunça, aos mais sérios e nem sempre resolvíveis: um adota uma postura brincalhona para não se expor emocionalmente, o outro entra de peito aberto em uma relação, um vê o mundo apenas pelos próprios olhos, o outro sente-se invisibilizado.
Como num bom filme de suspense, faltando dois episódios ainda não dá para cravar quem se casará e quem vai recuar (se você decidiu assistir agora, vale cuidar para não esbarrar com spoilers nos sites de entretenimento e fofoca). Afinal, também como num bom filme de suspense, o reality show aposta na escalada de conflitos e em viradas na trama: o casal que parecia promissor de repente se vê abalado por uma indiscrição provavelmente ligada ao sexo — não sabemos o que foi dito por um dos parceiros aos demais colegas de elenco, mas a julgar pelo choro e pelos comentários em cena deve ter sido algo muito íntimo, uma atitude muito cafajeste.
Para além da já famosa briga entre Nanda e Thiago em que ele despeja um velho discurso machista (homem pode transar com várias, mas ai da mulher que tiver um passado assim), uma cena marcante de Casamento às Cegas remete à questão da representação citada anteriormente, das ficções que protagonizamos cotidianamente. É um momento que, de certa forma, justifica o duplo sentido do título desta coluna: acreditamos na velocidade dessas uniões que, em tese, foram calcadas em camadas mais profundas (a atração intelectual, por exemplo)? Acreditamos em um programa que, por motivos de tempo e de dramaticidade, edita bastante o conteúdo?
No sofá, o noivo vê a noiva entristecida e pergunta:
— Tudo bem?
— Tudo ótimo.
Ele insiste:
— O que foi?
— Hum?
— Que foi? Tá chorando?
— Não... Tô ótima.
Ele volta à carga:
— O que aconteceu? Fala.
— (silêncio)
— Fala. Fala comigo.
— Deve ser porque cinco minutos atrás tu falou pra sermos amigos. Só por isso. Mas na frente das câmeras tu faz isso (mostra-se carinhoso e atencioso, podemos supor). E eu tenho que ficar sendo a melhor atriz do mundo. Daí faz uma confusão nas minhas emoções. Só por isso, deve ser.
Ela se levanta, vai para o quarto e fecha a porta de correr. Um fim de cena perfeito, alguém nos bastidores deve ter pensado — antes ou depois de acontecer?