Sete décadas da produção cinematográfica brasileira estão bem representadas no Globoplay. Desde Rio 40 Graus (1955) a Bacurau (2019), a plataforma de streaming disponibilizou recentemente 50 títulos. A coleção inclui obras marcantes do Cinema Novo e os filmes que concorreram no Oscar. Os censurados, como Macunaíma (1969) e Cabra Marcado para Morrer (1984), e os campeões de bilheteria, de Dona Flor e seus Dois Maridos (1976) a Tropa de Elite 2 (2010). Tem Glauber Rocha e Héctor Babenco, os irmãos Bruno e Fábio Barreto, o gaúcho Jorge Furtado e a turma do Nordeste, tem até terror com Zé do Caixão e documentários do mestre Eduardo Coutinho.
Com uma ou outra exceção — por exemplo, Flores Raras (2013), sobre o romance da poetisa estadunidense Elizabeth Bishop (interpretada por Miranda Otto) com a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires) na Petrópolis dos anos 1950 e 1960 —, os filmes escolhidos fazem jus ao adjetivo clássico. Ou, pelo menos, foram premiados em festivais, tornaram-se sucesso de público, conquistaram a crítica.
O Globoplay compartimentou a homenagem ao cinema nacional em uma ordem mais ou menos cronológica. Sob a aba Os Precursores, estão Rio 40 Graus e Rio, Zona Norte (1957), ambos dirigidos por Nelson Pereira dos Santos (1928-2018). O primeiro, semidocumental, acompanha um domingo escaldante na vida de cinco garotos de uma favela que tentam vender amendoim em Copacabana, no Pão de Açúcar e no Maracanã. O segundo é sobre as agruras de um sambista carioca vivido por Grande Otelo.
Nelson também é destaque na seleção Cinema Novo, com Vidas Secas (1963), um dos títulos brasileiros mais aclamados mundialmente. Baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos, narra a saga de uma família de retirantes pelo sertão nordestino, em 1941 (outras duas adaptações de Graciliano podem ser vistas: São Bernardo, realizada em 1972 por Leon Hirszman, e Memórias do Cárcere, mais uma assinada por Nelson, em 1984). A cena da morte da cadela Baleia causou polêmica no Festival de Cannes: por conta do realismo, houve quem achasse que o cão tinha sido mesmo sacrificado (a celeuma rendeu um curta muito interessante, Como Se Morre no Cinema, dirigido por Luelane Corrêa e premiado com quatro Kikitos no Festival de Gramado de 2002).
Como Cinema Novo é sinônimo de Glauber Rocha (1939-1981), estão lá duas obras-primas do baiano: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), nas quais faz crítica política e social ao mesmo tempo em que rompe com a estética hegemônica de Hollywood. Não há lugar para mocinhos, por exemplo.
Mas o cinema nacional daqueles tempos tinha uma típica vilã: a censura imposta pela ditadura. Na aba Os Censurados, a plataforma joga luz sobre À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964), de José Mojica Marins (1936-2020), o Zé do Caixão, que "atentava contra a moral e os bons costumes", Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), que sofreu dez cortes — a maioria referente a nus, a palavrões e ao texto "Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são", e Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014), documentário sobre o assassinato de um líder camponês da Paraíba, em 1962, que teve as filmagens interrompidas em 1964, após o golpe militar — parte da equipe de produção chegou a ser presa sob a alegação de "comunismo".
Coutinho é um dos cineastas recorrentes na coleção, com outros três filmes: Santo Forte (1999), sobre a religiosidade popular em uma favela no Rio; Edifício Master (2002), no qual o diretor visita moradores de um antigo e tradicional prédio de Copacabana; e Jogo de Cena (2007), que testa os limites entre documentário e ficção — mulheres anônimas e atrizes como Fernanda Torres, Marília Pêra e Andréa Beltrão compartilham e interpretam histórias reais. Há mais duas obras documentais na seleção: o clássico curta-metragem Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, 62 anos, ganhador do Festival de Berlim, e Ônibus 174 (2002), de José Padilha, 53 anos, sobre o sequestro de um coletivo carioca em 12 de junho de 2000.
O paulistano Luís Sérgio Person (1936-1976) comparece duas vezes: São Paulo Sociedade Anônima (1965), drama sobre as angústias existenciais e coletivas diante da industrialização das grandes cidades e, por consequência, de suas gentes, e O Caso dos Irmãos Naves (1967), que reconstitui um episódio de prisão e tortura que levou à confissão de um crime não cometido em 1937, durante o Estado Novo, no interior de Minas Gerais.
Argentino que adotou o Brasil como país, Héctor Babenco (1946-2016) é onipresente. Dirigiu cinco dos 50 filmes — desde O Rei da Noite (1975) a Carandiru (2005), passando por Lúcio Flávio: O Passageiro da Agonia (1977), Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981) e O Beijo da Mulher-Aranha (1985), que concorreu aos Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado e valeu a William Hurt a estatueta de ator.
A participação brasileira no Oscar mereceu uma aba própria, na qual foram inseridos outros quatro títulos. O Quatrilho (1995), de Fábio Barreto (1957-2019), e O que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, 66 anos, concorreram à estatueta de filme internacional, assim como Central do Brasil (1998), de Walter Salles, 65, que também disputou a categoria de melhor atriz (Fernanda Montenegro) — além de ter recebido o Urso de Ouro no Festival de Berlim, onde Fernanda foi igualmente premiada. Completa a lista Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, 65, indicado aos Oscar de direção, roteiro adaptado, fotografia e montagem.
Prestígio internacional não é o que falta ao cinema brasileiro. Sete dos 50 longas participaram da competição oficial em Cannes (a propósito: é claro que, como em qualquer lista, há lacunas na relação exibida pelo Globoplay — leia mais ao fim do texto —, mas uma ausência sentida é a de nosso único vencedor da Palma de Ouro no festival francês: O Pagador de Promessas, lançado em 1962 por Anselmo Duarte). Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman (1937-1987), que conjuga o movimento grevista aos dramas de uma família, mereceu o Grande Prêmio do Júri em Veneza. Tropa de Elite (2007), de José Padilha, ganhou o Urso de Ouro em Berlim.
Esse polêmico filme sobre a guerra do tráfico no Rio é um dos campeões de bilheteria destacados pelo Globoplay — atraiu 2.4 milhões de espectadores. Sua continuação, Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010), também dirigida por Padilha, fez sucesso maior ainda: foram 11,1 milhões. Está em quarto lugar no ranking brasileiro, um posto acima de Dona Flor e seus Dois Maridos (10,7 milhões), de Bruno Barreto.
Na coleção disponibilizada pela plataforma de streaming, há mais dois filmes que ultrapassaram os 4 milhões de ingressos vendidos: o já citado Lúcio Flávio (5,4 milhões) e 2 Filhos de Francisco (5,3 milhões), cinebiografia dos primeiros passos da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano, assinada em 2005 por Breno Silveira, 57 anos. De Pernas pro Ar 2 (2012) chegou perto: a comédia de Roberto Santucci, 53, estrelada por Ingrid Guimarães juntou 4,8 milhões.
Na aba A Retomada, O Homem que Copiava (2003), do gaúcho Jorge Furtado, é o fruto estranho (mas igualmente gostoso!) em meio a sabores do Nordeste. O cardápio conta com O Auto da Compadecida (2000), do pernambucano Guel Arraes, 67 anos; Amarelo Manga (2002), de outro pernambucano, Cláudio Assis, 62; Deus É Brasileiro (2003), do alagoano Cacá Diegues, 81; Cidade Baixa (2005), do baiano Sérgio Machado, 52; e O Céu de Suely (2006), do cearense Karim Aïnouz, 55.
Aïnouz também dirige um dos três filmes mais recentes escolhidos pelo Globoplay. Cada uma a seu modo, as obras abordam questões fundamentais para entender o Brasil. No melodrama tropical A Vida Invisível (2019), o cearense reflete no Rio de Janeiro dos anos 1950 sobre o cotidiano de opressão enfrentado pelas mulheres ainda hoje. No faroeste cangaceiro Bacurau (2019), os pernambucanos Kleber Mendonça Filho, 52, e Juliano Dornelles, 41, fervem um caldeirão que inclui temas como a falência do Estado, a subserviência à política, à economia e à cultura dos EUA, o resgate dos elementos regionais, a banalização da violência e da morte e a ameaça do fascismo e do racismo. Na comédia dramática Que Horas Ela Volta? (2015), a paulista Anna Muylaert, 57 anos, mostra a relação e os conflitos entre patrões e domésticas, as contradições e as interdições — nem sempre explícitas — praticadas por uma elite que diz tratar empregadas como se fossem "da família".
Laureado nos festivais de Berlim, de Sundance (EUA) e de São Paulo, Que Horas Ela Volta? provoca uma reflexão sobre a própria seleção do Globoplay. É o único dirigido por uma mulher entre os 50 filmes reunidos. Vou repetir: é o único dirigido por uma mulher entre os 50 filmes reunidos. Por que não homenagear Laís Bodanzky, autora de Bicho de Sete Cabeças (2000), Chega de Saudade (2007) e Como Nossos Pais (2017)? Ou então Tata Amaral, de Um Céu de Estrelas (1996), Através da Janela (2000) e Hoje (2011)? Não dava para incluir Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati, considerado um símbolo da Retomada? Cadê Ana Luiza Azevedo, das ficções Antes que o Mundo Acabe (2009) e Aos Olhos de Ernesto (2019), e Petra Costa, dos documentários Elena (2012) e Democracia em Vertigem (2019)? O multipremiado A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral, não merecia essa visibilidade? E que tal trocar De Pernas pro Ar 2 por uma comédia que fez mais do que o dobro de espectadores — 11,6 milhões —, Minha Mãe É uma Peça 3 (2019), de Susana Garcia?