Texto adaptado pelo autor a partir de seu original publicado no livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, volume organizado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), da editora Letramento.
Vista do alto, apresentada num retrato em preto e branco revelado mais 60 anos atrás, a cidade do Rio de Janeiro parece não acusar tanto a passagem do tempo na sua comparação com a mesma visão à distância e em cores de hoje. É ao pousar a câmera no Morro do Cabuçu, para depois percorrer com seus personagens pontos referenciais da cidade, que Rio, 40 Graus (1955) ressalta tanto as transformações radicais quanto o que nada mudou naquela realidade impressa no celuloide. Ao permitir esse espelhamento, Rio, 40 Graus reforça sua importância como documento histórico e socioantropológico. É um dos pilares sobre os quais o cinema brasileiro ergueu-se como arte de expressão da identidade nacional.
As repúblicas paralelas impostas por traficantes e milícias sob a leniência do poder público e os estádios de futebol elitizados lançam ao espectador que assiste hoje a Rio, 40 Graus as diferenças mais evidentes entre o presente e o passado impressas no primeiro longa-metragem de Nelson Pereira do Santos, diretor que morreu neste sábado, aos 89 anos. Seguem evidentes as mazelas crônicas do país "belo e primitivo" observado pela turista estrangeira em uma sequência do filme: crianças pobres ainda batalham pela sobrevivência nas ruas, malandros continuam a refestelar-se na boa fé alheia, políticos reiteram a caricatura tragicômica que lhe é feita por Nelson, e o abismo social entre os que nada têm e os que têm em excesso mantém-se profundamente escandaloso.
Com Rio, 40 Graus, Nelson alcançou um degrau na compreensão da realidade brasileira ainda hoje perseguido pelos realizadores locais. Sua investida no tema foi desbravadora. Na esteira de uma filmografia até então basicamente calcada nas ingênuas chanchadas da Atlântida e nos solenes melodramas da Vera Cruz, o diretor inseriu no cinema nacional a gramática do neorrealismo que havia revitalizado a produção italiana nos escombros da II Guerra. Na contramão do artificialismo vigente nos estúdios brasileiros sob a inspiração de Hollywood, encarou as limitações técnicas e orçamentárias para filmar tudo em locações. Peitou o preconceito racial ao destacar atores negros em primeiro plano no seu elenco predominantemente amador.
Rio, 40 Graus representava tão bem camada de baixo da sociedade brasileira que provocou a ira do então chefe de polícia do Rio. Este determinou a censura do filme sob, entre outras alegações, promover a desagregação do país, destacar aspectos negativos da capital brasileira e servir aos interesses políticos dos comunistas. Acrescentou ainda como razão para a proibição o bizarro argumento de que o título da obra era enganoso, pois nunca a cidade havia registrado temperatura de 40 graus centígrados. O processo de liberação, ocorrido em meio às eleições que levaram Juscelino Kubitschek à presidência do Brasil, postergou a estreia do filme para março de 1956.
Antes disso, porém, a convite do crítico e jornalista Paulo Fontoura Gastal, presidente do Clube de Cinema de Porto Alegre, Rio 40 Graus teve na Capital sua primeira exibição pública, no Cinema Imperial, na Rua da Praia, com presença de Nelson e do ator Jece Valadão.
Movido por suas convicções humanistas e pela militância comunista, Nelson, paulista recém-chegado ao Rio, então capital do Brasil, escreveu o roteiro do filme propondo um recorte vertical da estrutura narrativa. Destacou a particularidade geográfica carioca que interliga morro e asfalto numa trilha entre a degradação social e o mirante paradisíaco que encanta o mundo. A jornada parte do Cabuçu, no começo do dia, em direção à praia de Copacabana, na Zona Zul. Circula pelo Pão de Açúcar e o Maracanã, entre outros locais, e retorna ao topo do morro ao anoitecer para o desfecho da trama, com uma roda de samba embalada por A Voz do Morro, tema do filme composto por Zé Keti.
Nelson estruturou esse passeio com um recurso narrativo pouco comum no Brasil à época: o do filme-coral. Diferentes personagens conduzem com suas andanças breves painéis temáticos. Um grupo de meninos desce para vender amendoim torrado em pontos turísticos; noivos planejam o casamento aspirando uma vida com mais conforto; uma jovem anuncia a gravidez ao namorado, o malandro bom de lábia e de capoeira arma seus expedientes para assistir a um jogo decisivo no Maracanã; um jogador reserva contestado pela torcida tem sua grande chance de redenção; e um suplente de deputado enrolado em maracutaia desembarca do avião cercado por bajuladores.
Negros, brancos e mulatos. Miseráveis, ricos e remediados. Cariocas, nordestinos e imigrantes. O caldeirão do DNA brasileiro está representado, em Rio, 40 Graus, nesse esquetes em torno da vida miúda, nos quais o realismo documental buscado por Nelson se materializa em um universo ficcional com dramaturgia enxuta e limitada pela falta de maior experiência do elenco.
Quando o cinema novo ganhou corpo, nos anos 1960, parte da crítica identificou em Rio, 40 Graus um possível embrião do movimento, por apresentar características formais e temáticas que viriam a ser nele determinantes, como um certificado de origem. Mas Nelson sempre deixou claro que Rio, 40 Graus foi regido pela partitura neorrealista que o influenciou no começo da carreira. E ao se colocar esse filme brasileiro num plano cronológico que abarque os mais significativos movimentos que contribuíram, desde 1955, para evolução do cinema como grande arte, identifica-se nele atributos de peculiar originalidade. Ao amarrar todos as pontas administrativas, operacionais e criativas para realizar Rio, 40 Graus, Nelson mostrou-se um "autor" bem antes de esse conceito ganhar corpo na França com a nouvelle vague.
Com êxito do filme, o diretor bancou Rio, Zona Norte (1957), segunda parte da inconclusa trilogia que ficou desfalcada de Rio, Zona Sul, e consolidou sua ascensão profissional. Nelson alcançaria um novo patamar em sua consagração adaptando Graciliano Ramos em Vidas Secas (1963), aí sim numa proximidade com os dogmas do cinema novo. Contato esse não muito incisivo, visto que Vidas Secas mais reforça o parentesco com a escola do cinema clássico que formou Nelson do que absorve o frescor e as transgressões lançadas pela nouvelle vague que tanto entusiasmaram a geração dos cinemanovistas brasileiros.