Após décadas de dedicação à proteção do meio ambiente como representante da sociedade civil, tendo atuado em organizações como Greenpeace, ActionAid e Instituto Clima e Sociedade (ICS), a economista com doutorado em Ciências Políticas Ana Toni aceitou o convite de Marina Silva para liderar a recriada Secretaria Nacional de Mudança do Clima. Vindo da área econômica, Ana defende mudanças no modelo de desenvolvimento tradicional para que a luta contra a crise climática seja mais efetiva, reforçando a importância de ter atenção específica com os socialmente mais vulneráveis, que são especialmente mais atingidos pelos eventos climáticos extremos cada vez mais intensos e frequentes, como o ciclone que atingiu o Rio Grande do Sul no último mês de junho.
Como tem sido os trabalhos nestes primeiros meses na secretaria, e quais são os principais desafios para os próximos anos?
Primeiro, quando cheguei, encontrei um Ministério do Meio Ambiente destruído, com muito descaso. O ministério mudou de nome, virou Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, a própria Secretaria Nacional de Mudança do Clima foi recriada, então esse primeiro momento foi uma fase de reconstrução. Agora, já fizemos também um planejamento estratégico para os próximos quatro anos, e queremos efetivar cinco legados: deixar uma governança climática robusta, com o comitê interministerial de mudanças do clima, o conselho nacional de mudanças do clima e a autoridade climática; deixar planos de mitigação e adaptação às mudanças do clima muito mais detalhados, não só com metas, mas com meios de implementação, prazos, para acompanharmos a política climática de uma forma transparente; incorporar de vez os oceanos e as zonas costeiras para dentro do debate climático; pensar políticas econômicas e sociais com outros ministérios, como o Ministério da Fazenda, do Planejamento, do Trabalho e outros; e desenvolver cada vez mais a nossa política internacional de combate à crise do clima, que envolvem as COPs, incluindo a COP 30, no Brasil, pois o tema do clima virou uma pauta fundamental também para a política externa brasileira, e a gente quer ter o Brasil cada vez mais como exportador de soluções climáticas e protagonista global dessa luta.
A luta contra a crise do clima também passa por uma mudança de entendimento do que é desenvolvimento, trocando o desenvolvimentismo e o crescimento desenfreado por um modelo de desenvolvimento sustentável?
Não tenho nenhuma dúvida. Vamos lembrar que a economia que nós temos hoje é de um modelo desenvolvido há 200 anos, baseado em algumas premissas que não se sustentam mais. Uma dessas premissas era termos recursos naturais infinitos, e a gente já sabe que os recursos são finitos; essa economia também foi inspirada em uma perspectiva de linear, e agora já sabemos que devemos pensar e construir uma economia circular; a economia que nós temos foi baseada em combustíveis fósseis, e a gente também já sabe que vai ter que migrar para energias renováveis; a nossa agricultura sempre foi uma agricultura expansionista, e agora sabemos que temos que fazer uma transição para agroflorestas, com agricultura familiar mais produtiva. Então, todas essas premissas do modelo de desenvolvimento que nós temos estão ultrapassadas, e a gente sabe que vai ter que fazer essa migração, só que estamos no momento dessa transição, e os poderes econômicos constituídos ainda são os poderes econômicos da chamada "velha economia". Vamos ter que trabalhar juntos não só com os novos atores, mas também com esses, que vão precisar migrar para essa economia nova. É um processo, que envolve escolhas difíceis, mas é inevitável.
Recentemente o Rio Grande do Sul passou por um ciclone excepcional que deixou mortos e muitos desabrigados, e cada vez mais convivemos com esse tipo de evento climático extremo, no Brasil e no mundo. Qual a importância do Brasil investir em um plano de adaptação climática eficiente o mais rápido possível, e quais medidas devem ser tomadas nessa direção?
Essa é uma prioridade máxima. A gente viu o último relatório do IPCC, que mostra que as consequências das mudanças climáticas estão vindo muito mais rápido e muito mais fortes do que se esperava. Já estamos vendo mais inundações, secas, ciclones e outros eventos climáticos extremos mais intensos, então trabalhar na adaptação das cidades e territórios é absolutamente fundamental. O governo federal está totalmente comprometido em renovar o plano nacional de adaptação, que é de 2016, e atualiza-lo levando em conta fatores prioritários como saúde, recursos hídricos, energia, moradia. Vocês no Rio Grande do Sul, por exemplo, têm sofrido muito com ciclones, estiagem, os mapas de cenários climáticos projetam grandes inundações na região a partir de 2030, e quem sofre com esses impactos são as pessoas, principalmente os socialmente mais vulneráveis. Muita gente ainda acha que os efeitos da crise do clima somente vão ser sentidos lá na frente, no futuro, mas vocês gaúchos são mais um exemplo de como esses efeitos já estão sendo sentidos hoje.
Como os mais vulneráveis acabam sendo mais atingidos, é preciso também relacionar a crise do clima com o combate à desigualdade social?
Certamente, ainda mais por estarmos em um governo que prioriza as questões sociais. Essa gestão abraçou o combate à crise do clima por toda a sua importância, e também porque essa crise é um acelerador de pobreza e desigualdade social. Então, temos que mudar o modelo de desenvolvimento assegurando que a gente inclua a todos, conseguindo proteger mais as pessoas. Um exemplo de vulnerabilidade que já vemos com frequência são as pessoas que moram em encostas, e sofrem cada vez mais com deslizamentos quando há chuvas de grande intensidade. Por isso, o tema da desigualdade tem que estar no centro das preocupações e dos projetos tanto de mitigação quanto de adaptação, pois nosso principal intuito com essas ações é salvar vidas e assegurar que as pessoas consigam viver protegidas, pois, por mais que a crise do clima impacte a todos, impacta ainda mais os mais vulneráveis. Combater a desigualdade e combater a crise do clima são dois lados da mesma moeda.
Que tipo de oportunidades a realização da COP no Brasil trará para as políticas ambientais do país?
Vale lembrar que a luta internacional pela proteção do meio ambiente teve um marco muito significativo no Brasil com a Eco 92, e a COP-30 vai ser outro marco, 33 anos depois. Temos condições de chegar na COP mostrando que podemos ser exportadores de soluções climáticas, mas para isso precisamos de uma série de ações. Primeiro, precisamos acabar com esse nível de desmatamento que temos hoje, que é uma vergonha. Segundo, precisamos chegar na COP com os planos de mitigação e adaptação muito bem definidos para mostrar que temos planejamento de transformar a economia brasileira em uma economia de baixo carbono, com produtos brasileiros feitos a partir de energia limpa. Uma dessas soluções que o Brasil pode ser exportador é o próprio hidrogênio verde, que o mundo inteiro está interessado na capacidade brasileira de produção. Por isso, temos que aprimorar cada vez mais os níveis de energias renováveis na nossa matriz elétrica e na nossa produção como um todo, atraindo também indústrias e empresas do mundo inteiro para produzi produtos verdes no nosso território, gerando ainda mais empregos aqui, o que também é fundamental.
Como a reforma tributária pode ser importante para o combate à crise climática no Brasil?
Vai ser absolutamente estratégica. A gente tem que olhar para uma gama de instrumentos econômicos para essa mudança, e a reforma tributária é um deles. Precisamos fazer com que esse novo modelo de economia tenha as mesmas condições de competição, o que não acontece hoje em dia. A maioria das atividades relacionadas a petróleo, gás, a agricultura, recebem benefícios, subsídios, facilitações do governo, que podem ser mudados. A reforma tributária vai ser fundamental para dar segurança jurídica para as mudanças que a gente precisa na área ambiental, para ajudar as políticas e ações mais sustentáveis a competir da mesma forma com o resto das atividades mais tradicionais da economia.
Como você enxerga os entraves relacionados às questões ambientais para o desfecho do acordo entre Mercosul e União Europeia?
Por um lado eu entendo essas novas exigências, porque no último governo federal os níveis de desmatamento subiram muito no Brasil, e muito me envergonha que europeus precisem fazer essas imposições. Contudo, o interesse principal de combater o desmatamento é nosso, brasileiro, e agora ninguém precisa impor isso. A proteção do meio ambiente é uma das principais bandeiras do atual governo, porque esse é um interesse nacional prioritário. O acordo entre o Mercosul e a União Europeia é uma prioridade também para o país, queremos que saia, mas a gente não precisa que ninguém imponha condições para protegermos o meio ambiente, o governo brasileiro já está demonstrando isso, com um presidente compromissado com esse tema e com uma ministra do meio ambiente internacionalmente reconhecida por ser comprometida com essa luta, então não precisamos do acordo para ditar essa prioridade.
Além do combate ao desmatamento, que é a principal fonte de emissão de gases de efeito estufa no Brasil, o que mais podemos fazer para melhorar esse índice?
Atualmente, cerca de metade das emissões brasileiras são provenientes do desmatamento, então esse combate é absolutamente prioritário, mas temos ainda os outros cerca de 50% para combater também, então temos muito o que fazer. Uma das áreas para agirmos é na agricultura e na pecuária. Na pecuária, já há a possibilidade de uma pecuária intensiva versus a extensiva, e na agricultura precisamos investir cada vez mais em agroflorestas, na agricultura de baixo carbono, pois já temos tecnologia para fazer isso. Na área de energia, o grande vilão hoje são os combustíveis fósseis, principalmente relacionados a transporte, então temos que incentivar cada vez mais o uso de biocombustíveis, que para o Brasil é uma solução viável, e também investir nas frotas de veículos elétricos. Cada um desses elementos vai contribuir para essa luta.
Após alguns anos desativado, como está agora o Fundo Amazônia? É possível também expandir esse mecanismo?
O Fundo Amazônia é um mecanismo maravilhoso desenvolvido pelo Brasil, transparente, que funcionava perfeitamente e ganhou diversos prêmios internacionais, e que já ajudou muito a combater o desmatamento. Só que ele foi congelado por praticamente quatro anos. Felizmente, voltamos com tudo agora, com os antigos contribuidores, Noruega e Alemanha, prometendo mais recursos, e também já com promessas de novas contribuições de Estados Unidos, Reino Unido, União Europeia. Como esse mecanismo ficou parado muito tempo, os projetos a que se destinavam os recursos estão sendo revistos, mas o COFA (Conselho do Fundo Amazônia) já se reuniu após essa retomada, e já começou a financiar novos projetos. O Fundo Amazônia já tem uma previsão de até 20% que pode ir para a proteção de outros biomas, o que é um começo, mas não é o suficiente para protegermos de forma adequada, então talvez precisemos sim criar também um fundo caatinga, um fundo cerrado, um fundo pampa, para termos uma proteção com a mesma eficácia do Fundo Amazônia.
* Colaborou Mathias Boni