O português João Albuquerque é deputado no Parlamento Europeu desde 2022. No bloco, esse filiado ao Partido Socialista de Portugal integra a delegação para relações com o Brasil, e fez parte da missão que visitou o país em maio. Em passagem por Brasília e São Paulo, o grupo se reuniu com diversas autoridades brasileiras, como o vice-presidente Geraldo Alckmin e os ministros Marina Silva e Silvio Almeida. Debateu, além do avanço do acordo entre União Europeia e Mercosul, assuntos como guerra na Ucrânia e combate às fake news. Apesar de recentes reclamações do lado brasileiro, Albuquerque destaca que o mais importante, em sua visão, é o interesse das partes em concluir o acordo, reforçando que as duas regiões devem aumentar sua cooperação em aspectos políticos e sociais, e não apenas comerciais.
Como foi a visita da delegação para relações com o Brasil do Parlamento Europeu?
Tivemos dois momentos, primeiro visitamos Brasília, onde nos reunimos com várias autoridades brasileiras, do Congresso e do governo federal. Além do vice-presidente Geraldo Alckmin, da ministra Marina Silva, e do ministro Silvio Almeida, estivemos com o secretário do Ministério dos Povos Indígenas Eloy Terena, com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e com a comissão de relações exteriores da Câmara dos Deputados. Depois, fomos a São Paulo, onde tivemos reuniões com o governo estadual, representantes da Fiesp e da Fundação Getulio Vargas (FGV). Mesmo os membros da delegação europeia que estavam mais céticos tiveram alguma mudança com o que foi debatido, então a visita foi positiva.
Qual dos compromissos da delegação no Brasil você destacaria?
O encontro com a ministra Marina Silva pode ter sido o ponto mais importante, pois uma grande parte das preocupações existentes do lado europeu estão relacionadas a questões ambientais. Por isso, foi importante ouvir as posições de compromisso do Brasil com o combate às alterações climáticas, lembrando o trabalho feito nos governos anteriores de Lula e Dilma. Ficou claro que o Brasil quer preservar todos os seus biomas, não só a Amazônia. Foi um fator de segurança à parte europeia, assegurando que o governo brasileiro de fato pretende cumprir as metas de proteção. Do lado europeu, o que se verifica é que há uma forte maioria que deseja avançar com o acordo com o Mercosul o mais rápido possível. Esperamos que a presidência espanhola na União Europeia seja uma oportunidade para esse avanço, e que possamos dar esse passo até antes das eleições argentinas, no final deste ano.
Como avalia a repercussão negativa, no Brasil, das exigências adicionais feitas pelos europeus no acordo?
Em relação ao side letter, o documento adicional ao acordo, tivemos uma compreensão de quais eram os problemas que o Brasil identificava. Foi possível dirimir as diferenças, sobretudo em relação às sanções previstas que preocupavam os brasileiros. Entendo a avaliação que o governo brasileiro fez do documento e os motivos que levaram a causar sensibilidade em relação à abordagem e à forma como a side letter foi apresentada, mas nas diferentes interações que tivemos houve muita abertura para entendermos o que ainda causa, de certa maneira, o afastamento do Brasil do cumprimento da side letter, e uma disposição europeia de avançar nesse sentido. O mais importante é que ambas as partes estão muito interessadas em fazer o acordo avançar. Há uma parte comercial que ainda precisa ser definida, queremos que sejam baseadas em princípios de desenvolvimento sustentável, com cooperação econômica justa para os dois lados, mas é fundamental darmos destaque à cooperação política e social, tão ou mais importantes do que a comercial. O Brasil e o Mercosul enfrentam muitos desafios comuns à Europa, em questões de democracia, de combate às fake news, de funcionamento democrático, do sistema político, que é muito semelhante nos dois lados do oceano Atlântico.
O que pode ser obstáculo para a conclusão do acordo?
A aprovação recente de algumas medidas legislativas pela União Europeia alguma maneira foi vista com certa apreensão pela parte brasileira. A diretiva de due dilligence (devida diligência, que estabelece dever de verificação das empresas em sustentabilidade e direitos humanos) foi um tópico mencionado, e também a questão do CBAM, o Carbon Border Adjustment Mechanism, e as medidas que um país como o Brasil teria de adotar para se adequar a essas regras, como à diretiva que aprovamos relacionada ao desmatamento. Brasil e Mercosul sentiram necessidade de pensar como teria impacto para o acordo, e como podemos avançar apesar dessas medidas legislativas. Mesmo assim, o acordo já prevê que isso possa ocorrer. Apesar da data de elaboração (há mais de 20 anos), tem preocupação significativa com direitos sociais e desenvolvimento sustentável. Há divergências, mas espaço para superar problemas e avançar para o acordo final. A visita da presidente Urusula von der Leyen ao Brasil e a outros países do Mercosul pode significar um importante passo à frente.
Qual é a importância do acordo no contexto da possível aproximação dos países do Mercosul a outros parceiros potenciais, como a China, e em relação a assuntos além das relações comerciais, como a Guerra na Ucrânia?
A esfera política do Brasil e da América do Sul é próxima à da Europa e do mundo ocidental, não só do ponto de vista político da organização democrática, que é fundamental - e que a China não tem, por exemplo -, mas também do ponto de vista do desenvolvimento social e econômico. Não queremos um modelo com lógica extrativista, queremos recuperação de ecossistemas e da biodiversidade, por isso todos esses passos trazem mais pontos em comum do que os que existem com a China. Nas reuniões que tivemos no Brasil, fizemos questão de acentuar o que está em risco na Ucrânia, dar uma versão quase gráfica (explícita) dos problemas da guerra e do que representa para a Europa. Tivemos a oportunidade de ouvir do representante da União Europeia em Brasília e de outros embaixadores, apesar de declarações públicas que causaram mais celeuma, Brasil sempre acompanhou a Europa e os Estados Unidos em todas as resoluções nas Nações Unidas e votou sempre de igual modo. Então, nos momentos determinantes, o Brasil sempre esteve no lado certo, com os países que condenam a invasão. É isso o que se espera do Brasil, até pela importância que tem dado às Nações Unidas, pelas reformas que tem tentado introduzir na própria ONU, de conseguir um assento no Conselho de Segurança, procurar privilegiar o multilateralismo, espera-se que as ações do presidente Lula e de sua política externa sejam nesse sentido. Não podemos ser hipócritas e achar que não pode haver relação com a China, porque a Europa tem relação comercial, até de grande dependência. O Mercosul é um mercado com quase a mesma dimensão da Europa, com um poderio econômico brutal, e além disso, com proximidade política e social.
O combate a fake news é um desafio comum entre Europa e América do Sul. Como esse tema foi abordado?
Essa é uma área em que podemos cooperar ainda mais. A União Europeia tem trabalho exaustivo na regulação. A aprovação do DSA (Digital Services Act) e do DMA (Digital Markets Act), os principais passos que o bloco deu nessas duas dimensões, tornaram-se benchmark (referência) para todos os países democráticos. Agora, discutimos um pacote chamado European Media Freedom Act, sobre as garantias de liberdade de imprensa, à proteção dos jornalistas, e à proteção da liberdade editorial. Essas questões colocam em risco o funcionamento do nosso sistema democrático, e ameaçam princípios basilares que já dávamos como garantidos, seja no funcionamento das instituições, ou na nossa segurança, como são as fake news relacionadas a vacinas, que põem em risco nossa convivência em sociedade.
Durante a aprovação da DSA e da DMA, houve pressão das big techs, como no Brasil?
Foi avassaladora, e continua a ser. Há sempre tentativa de ficar à margem de todas as regulações, e obviamente tentar influenciar ou contornar as regras. Nesse aspecto, a Europa deu uma resposta cabal, há pouco tempo, aplicando multa em um processo relativo à Meta, do Facebook, que mostra como estamos sendo implacáveis. E é importante que se mantenha essa lógica. O objetivo é sempre a proteção do consumidor, que somos nós. Não se trata de ataque, apenas de necessidade de proteger os cidadãos. O caso da Meta foi em razão do compartilhamento indevido de dados dos cidadãos europeus com os Estados Unidos e empresas norte-americanas, o que para nós é absolutamente inaceitável. Essa visão tem de ser unificada e partilhada, seja qual for a entidade em questão. É fundamental mantermos essa frente internacional unida na proteção dos interesses das pessoas.
* Colaborou Mathias Boni