O catalão Jordi Cañas foi eleito eurodeputado em 2019, participando do partido espanhol Ciudadanos e da coalização liberal Renew Europe. Como membro da comissão de comércio exterior do bloco, também se tornou relator do acordo entre Mercosul e União Europeia no parlamento europeu.
Com o objetivo de fortalecer cada vez mais as relações entre as duas regiões, Cañas esteve por alguns dias da última semana em Porto Alegre, participando do evento Europa e América Latina: Cooperação e Futuro, realizado na última sexta-feira (27) no Instituto Ling, promovido pela Rede Liberal da América Latina (Relial) em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre, o Instituto de Estudos Empresariais (IEE) e a Fundação Friedrich Naumann, e que também contou com a participação do embaixador alemão no Brasil, Heiko Thoms.
À coluna, Cañas falou sobre o futuro das relações comerciais entre América Latina e Europa, sobre o estado atual do acordo entre as duas regiões, e ainda sobre o impacto das últimas crises no cenário do comércio internacional. Confira a entrevista abaixo:
Qual é a importância de participar de eventos na América Latina para fomentar a relação da região com a União Europeia?
Jordi Cañas - A aproximação entre Europa e América Latina é muito importante para o futuro das duas regiões. Porto Alegre foi um lugar muito bem escolhido para realizar esse debate, por sua posição estratégica e importância dentro do Mercosul, e esperamos estreitar essa relação das regiões cada vez mais. O evento foi muito proveitoso, os debates foram muito estimulantes intelectualmente, e com ideias muito claras. Creio que os que compartilham o espaço liberal devem expor as suas diferentes perspectivas, para enriquecermos nosso discurso e mensagem política.
Fica deste seminário o sentimento da necessidade de aumentar as nossas alternativas de cooperação comercial, que desejamos alcançar através do reforço das relações entre as regiões, e também de comunicar adequadamente aos cidadãos esse sentimento e as reflexões que surgem de eventos como esse. Foi um seminário muito interessante, com painéis muito completos, com acadêmicos, políticos e outros representantes da sociedade civil, e os trabalhos na cidade foram de fato muito produtivos.
Questões ambientais, como o desmatamento da Amazônia, ainda são entraves significativos para a ratificação do acordo entre Mercosul e União Europeia?
Cañas - O desmatamento da Amazônia é sim um entrave para esse avanço. Há uma parte relevante da opinião pública na Europa que relaciona, principalmente a partir dos discursos de Emmanuel Macron, o acordo entre União Europeia e Mercosul ao desmatamento da Amazônia. Sabemos que o desmatamento da Amazônia não é responsabilidade só do Brasil, também é dos outros países amazônicos, mas o Brasil é de fato o país que possui a maior área da floresta, com indicadores ambientais preocupantes.
Por isso, nesse momento, estamos há quase dois anos em um impasse esperando compromissos adicionais em respeito ao meio ambiente e ao desmatamento. Já no final de 2020, o Comissário de Comércio da União Europeia, Valdis Dombrovskis, declarou que antes da ratificação esperava-se mais compromissos significativos em matéria de meio ambiente, e foi proposta a criação de um anexo ao acordo referente ao tema, mas que ainda não teve uma formalização além de conversas iniciais, então se criou esse impasse.
O certo é que há dúvidas quanto o compromisso do governo brasileiro com o meio ambiente, mas eu não gosto de confundir os países com os seus governos. O Brasil é um país signatário do Acordo de Paris, e também de outros acordos internacionais contra o desmatamento e pela preservação da natureza. Contudo, nesse momento é necessário que se produza uma imagem de compromisso público com o meio ambiente para que o cenário se torne mais favorável ao início da ratificação do acordo. Esse compromisso é do governo brasileiro, assim como de todo o conjunto de países do Mercosul e também do conjunto de países europeus.
A crise do meio ambiente é um desafio que afeta a todos, e por isso todos nós temos que cumprir nossos compromissos contra o desmatamento e contra as emissões, e temos que nos cobrar para cumprir essas metas, podendo utilizar esse acordo como instrumento para alcançar também esses objetivos. As relações de comércio não são apenas intercâmbios de produtos e serviços, também podem ter como objetivo reforçar compromissos ambientais, de direitos humanos e trabalhistas entre as partes envolvidas, e com esse acordo podemos conseguir também isso.
Nesse contexto, tu projetas o início deste processo de ratificação em um futuro próximo?
Cañas - Por essa razão que falamos, o acordo está hoje no congelador, na Comissão Europeia, porque não há maioria suficiente no conselho para iniciar a sua ratificação, principalmente pelas posições da França e da Alemanha que, por questões de política interna, parecem ainda hoje não estarem dispostos a iniciar esse processo.
Mas certo também é que alguns elementos que freavam esse avanço, como as próprias eleições francesas e alemãs, já passaram, e acho que agora nos próximos meses poderemos resolver mais algumas incógnitas dessa equação. Por isso, me parece que no próximo ano e meio, que teremos na presidência do conselho da União Europeia o mandato semestral tcheco, depois o sueco, depois o espanhol, temos uma janela de oportunidade única para iniciarmos esse processo de ratificação.
Não vai ser fácil, mas é sim possível. Estou convencido que ainda nesta legislatura do parlamento europeu (as próximas eleições são em maio de 2024) poderemos ratificar esse que na minha opinião é o acordo mais importante que a União Europeia já assinou em nível de associação política e cooperação comercial.
A guerra que ocorre atualmente no continente europeu aumenta a necessidade da União Europeia de estreitar relações com outros países e regiões?
Cañas - Sem dúvidas, a guerra na Ucrânia é mais uma razão para a Europa buscar reforçar sua relação comercial com outras regiões do planeta, incluindo a América Latina. A guerra e suas consequências, como os embargos, assim como a crise da covid-19 também já tinha feito, mostrando a dependência de importação da China de diversos itens e suprimentos básicos, expõe algumas debilidades do comércio internacional em suprir nossas necessidades como sociedade.
A mensagem que fica dessas crises é que precisamos de mais comércio, e por mais comércio eu digo que precisamos aumentar as alternativas de mercados e aumentar as alternativas de cadeias de suprimentos, porque um dos problemas que enfrentamos atualmente no comércio internacional é justamente a falta de alternativas. Quando há, por exemplo, uma grande dependência de grãos da Ucrânia, e por um problema nesse país a importação deixa de vir no mesmo ritmo, ou de vir totalmente, automaticamente acontece um efeito dominó que afeta diversos outros países, podendo desencadear problemas sociais imprevisíveis.
Temos que aproveitar esse contexto para entender que o problema não é o comércio internacional, mas o comércio internacional dependente de um só país. A dificuldade da União Europeia com o gás natural se dá em razão da dependência do gás natural exportado pela Rússia, quando já deveríamos estar importando mais gás do Qatar, da Nigéria e dos Estados Unidos, ou mesmo mais avançados no processo de transição energética. Precisamos de mais alternativas e mais mercados para não sermos mais dependentes, e sim independentes.
Como a América Latina pode se beneficiar dessa conjuntura?
Cañas - Penso que os países da América Latina, principalmente Brasil e Argentina, têm a oportunidade de se tornar fornecedores de grãos e alimentos, entre outros, ainda mais destacados no cenário mundial. Também é preciso saber agregar valor à cadeia de produção, não podem simplesmente ser só espaços de commodities básicas, e nem desprezar as questões ambientais e de direitos humanos para isso.
Mas esse é um momento de aumento de demanda, e que vai continuar crescendo nos próximos tempos, em razão da guerra e das dificuldades de importação de grãos da Ucrânia e da Rússia, como já falamos, além de outros produtos. Então, os governos da América Latina têm agora uma grande oportunidade para aproveitar essas lacunas que estão aparecendo no mercado internacional, e essa oportunidade pode se consolidar e começar a trazer benefícios através da assinatura e ratificação de acordos comerciais internacionais que coloquem esses países em posições favoráveis, como o próprio acordo entre o Mercosul e a União Europeia.
* Colaborou Mathias Boni