Ex-diretor do Banco Central (BC), Tony Volpon hoje é professor adjunto da Universidade de Georgetown, em Washington. Mas passou pelo BC em um período ainda mais conturbado do que o atual. Assumiu em fevereiro de 2015, quando o então presidente, Alexandre Tombini, levava a Selic de 7,25% para 14,75% ao ano. O que veio depois foi uma severa recessão, que não teve origem, segundo Volpon, só na elevação do juro. O profissional que viu um choque de juro por dentro diz que repetir esse encadeamento não é risco real e imediato, mas está no "mapeamento das possibilidades".
Tivemos um choque de juro?
Sim, pelo tamanho do movimento em relação à base, são 3 pontos percentuais sobre 11%, quase 30% de aumento. Embora o mercado precificasse (via juros futuros) 14% a 15%, mas era não com essa velocidade anunciada pelo BC. Então, certamente é um choque. O que ninguém esperava, nem economistas nem o mercado, era esse foward guidance (antecipação dos próximos passos). Não se esperava dessa maneira, nem por duas reuniões. O mais comum é anunciar o que será feito na próxima. Na minha avaliação, também é uma tentativa de aliviar a barra do (Gabriel) Galípolo (futuro presidente do BC). As próximas duas reuniões com ele na presidência já vão estar decididas, não terá muito a discutir. Então, além de dar choque em uma situação de aguda volatilidade, tira esse problema da mesa.
Por que um choque desse tamanho não segurou o dólar?
Tem um contexto internacional se mexendo também, não depende só do que o BC faz. O mercado olha para a relação dívida/PIB (a proporção entre os dois valores) e vê que pode estar caminhando para um ponto percebido com insustentável. Já existem projeções em que essa relação pode chegar a 100%.
O que pode acontecer?
Há duas maneiras de resolver. Ou faz o ajuste fiscal, reduzindo a dívida, ou o numerador dessa equação, ou admite mais inflação, que engorda o denominador (o PIB, no caso). A opção via inflação ocorreu na pandemia. Houve uma explosão de gastos seguido de surto inflacionário em 2021 e 2022. A inflação subiu muito e ficou acima do juro que o título do governo estava pagando. Os detentores dos títulos de renda fixa perderam dinheiro, mas isso ajudou a reduzir o endividamento.
Há risco de ocorrer de novo?
O governo ficou meses discutindo um pacote que enfim daria sustentação ao arcabouço fiscal e o que se viu foi que a montanha pariu um rato. O conjunto de medidas não resolve e ainda deve ser diluído pelo Congresso. O governo está mais ou menos dizendo 'bom, vai para a opção B, que é a inflação'. O mercado vê essa probabilidade e quer se antecipar à perda, exigindo um prêmio. Aí os juros de mercado sobem. A curva nominal chega a 2026 com 15% de juro futuro. Mas esse juro só será realizado e pago se a Selic subir. Se o BC decidir cortar o juro, não vão receber essa taxa. Se não quiserem assumir esse risco, podem vender os títulos do governo e comprar dólar. Para evitar que isso ocorra, o BC tem de ratificar essa precificação, levando a Selic para 14,25%. Ratifica o prêmio, ajuda a segurar o dinheiro dentro do sistema financeiro nacional e evita fuga de capitais. Isso não significa que o câmbio não vai desvalorizar. Mas diminui a probabilidade de ter grande saída de capitais, que poderia levar o dólar para R$ 7 ou R$ 8.
Isso é possível?
É só colocar um irresponsável no BC. Foi uma boa decisão. O BC meio que se rendeu à realidade, de que tem de pagar um prêmio alto para manter os detentor da dívida brasileira em reais, ao menos até que uma solução ocorra para a questão fiscal. Esse movimento do BC não tem a ver com combater a inflação em primeiro lugar. Entra em situação de excepcionalidade da política monetária em que o mandato principal não é mais cumprir a meta de inflação. Isso vira secundário. O principal é garantir a estabilidade financeira. Se de um dia para o outro houvesse demanda de saída de dólares, criaria muita volatilidade. Para que isso não aconteça, tem de praticar esse juro alto.
Por quanto tempo?
Uma taxa desse tamanho é insustentável ao longo do tempo. Se mantida ano após ano, acaba aumentando a dívida (que tem boa parte indexada à Selic) e vai piorar o fiscal. Isso é verdade, mas só está acontecendo porque não se vê uma trajetória sustentável dos gastos publicos. É um remédio amargo, mas precisa ter curta duração. A política monetária está comprando tempo para vir alguma solução. Quanto, é impossível prever. Depende da conjuntura internacional, do que Brasília vai fazer, das perspectivas para as eleições de 2026. Talvez, no próximo ano, se não houver ajuste fiscal duradouro, não haverá nível de juro suficiente para garantir estabilidade financeira, poderia ocorrer a tão temida dominância fiscal. Aí sim, acabou o jogo. Pode colocar a Selic em 20% que não vai resolver nada.
Você viveu uma situação parecida em sua passagem pelo BC?
Não vejo como choque de juro na época, foi um processo. Quando o juro sobe, ninguém é seu amigo. Há uma mitologia de que o setor financeiro gosta de juro alto, mas não faz sentido. O setor de investimentos tem sido dizimado pelo juro alto, há várias gestoras fechando. Por que uma pessoa vai dar dinheiro para um gestor se coloca no CDB e ganha o juro que está sendo praticado hoje? Não é bom para a economia real, nem para empresários.
A alta de juro foi determinante para a recessão que se seguiu?
A recessão começou ainda em 2014. Há várias controvérsias sobre o que causou a maior recessão da história recente brasileira. Sempre defendi a tese de que foi o excesso de estímulo dado à economia desde 2011. Também houve restrições de oferta, aceleração da inflação e não se conseguia enxugar o excesso de de demanda. As empresas seguraram o nível de emprego pensando na eleiçao de Aécio (Neves, adversário de Dilma em 2014), com Armínio (Fraga, ex-presidente do BC) na Fazenda. Quando Dilma ganha raspando, o desemprego dispara, aí vem a recessão. O que há de diferente hoje, mais positivo, é que não há grande atraso de tarifas públicas. Dilma segurou preços da eletricidade, dos combustíveis, com custo fiscal alto. Foi preciso fazer um tarifaço, que levou a inflação para acima de 10%. Aí forçou o BC a partir para um juro de 14,25%. O que há de comum entre os dois períodos é a grande incerteza fiscal. O BC está, de certa maneira, jogando a bola de volta para a classe política, sinalizando 'ou vocês fazem algo ou vou praticar uma taxa de juro extorsiva'.
Há risco de que o choque atual resulte em recessão?
Se não houver processo agudo de crise, em que US$ 20 bilhões tentem sair de um dia para o outro, esse juro vai estrangular muitas empresas, terá efeito negativo com certeza. Mas a economia tem certo ritmo, e a elevação da taxa tem certa defasagem. Depende do que fizerem com o fiscal. Haddad tem dito que pode voltar e pedir mais medidas. Isso vai acontecer ou não? Também depende do cenário político, das eleições de 2026. Parte da queda do dólar dias atrás decorreu da percepção de que Lula não será candidato, por problemas de saúde. Não estou fazendo previsões, só mapeando possibilidades. E é possível que chegue um momento, com esse juro e a perspectiva de seis anos adicionais, em que se desate uma recessão.
Trocar governo faz diferença, com o Congresso cobrando liberação de emendas para aprovar cortes?
O problema fiscal brasileiro não é só do Executivo, o Congresso é coadjuvante. Não é só culpa do Lula, embora ele tenha muita culpa. É um problema da classe política. O Judiciário também tem responsabilidade, com seus supersalários. Os três poderes têm responsabilidade por esse buraco que foi cavado e pela falta de perspectiva de solução. Mas o Brasil tem regime presidencial, a direção tem de vir do Executivo. Quem tem de dar a direção é o presidente da República.