Um dos mais respeitados especialistas em contas públicas do país, Felipe Salto passou por múltiplas experiências na área: foi "xerife" na Instituição Fiscal Independente (IFI), secretário da Fazenda de São Paulo e agora é sócio e economista-chefe da gestores de investimentos gaúcha Warren. Na semana seguinte ao anúncio do pacote de corte de gastos, esteve em Porto Alegre para um debate na Câmara Americana de Comércio (Amcham) e para reuniões com os sócios locais.
Por que considera o pacote insuficiente?
A meta fiscal para 2025 é déficit zero, mas tem margem de tolerância. A banda inferior é de déficit de 0,25% do PIB, o que dá R$ 31 bilhões. Então, se o governo entregar rombo de R$ 31 bilhões no ano que vem, terá cumprido a meta para fins legais. Só que nossa projeção é muito pior, é de déficit de 0,85% do PIB. Nessa conta, seria preciso mudar a meta para cumprir a banda inferior. Pela nossa conta, para chegar a déficit de R$ 31 bilhões, o governo terá de cortar R$ 46,9 bilhões. Já consideramos que o governo vai contingenciar ou bloquear R$ 16 bilhões. Então, faltariam R$ 30,9 bilhões.
Sem contar despesas fora da meta?
Nessa necessidade de R$ 46,9 bilhões, consideramos que boa parte dos precatórios serão pagos por fora da meta. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) mandou o governo Lula pagar todos os precatórios que o (ex-presidente) Bolsonaro caloteou. A PEC dos Precatórios, conhecida como PEC do Calote, foi declarada inconstitucional pelo STF porque não existe teto, precatório é decisão judicial, tem de pagar e ponto. Só que já havia uma bola de neve de R$ 92,4 bilhões, que o governo pagou em 2023. Então, o déficit em 2023 foi R$ 230,2 bilhões. Para 2024, projetamos R$ 54 bilhões. É melhora expressiva do ano passado para este. É preciso registrar, porque é mérito do (ministro da Fazenda, Fernando) Haddad. Ele conseguiu aprovar nove medidas no Congresso para aumentar a arrecadação, que resultaram em crescimento da receita de janeiro a outubro deste ano de quase 10% em termos reais, ante o mesmo período do ano anterior. Mas o problema fiscal não está resolvido, porque uma parte disso é uma vez só e não vai se repetir.
Conta gasto que ficou fora da meta fiscal?
Na PEC da Transição, foi negociado um espaço fiscal de R$ 145 bilhões no antigo teto de gastos. É compreensível. Imagina um governo de direita que, em pleno ano eleitoral, multiplicou o Bolsa Família por três. Aí, entra o governo da esquerda e diz que vai cortar. Nunca aconteceria. Consolidou o patamar de transferências sociais do governo anterior. Ainda tem os gastos tributários, que representam R$ 547 bilhões de renúncia fiscal. É o Simples Nacional, a Zona Franca de Manaus, o Regime Especial da Indústria Química e todos os subsídios para empresas.
Se para 2025 é preciso cortar R$ 46,9 bilhões, pode bloquear R$ 16 bilhões e faltariam R$ 31 bilhões, a conta não fecha?
O problema é que o pacote não alcança R$ 30 bilhões no ano que vem. Na nossa conta, são R$ 23 bilhões. Fizemos o cálculo para cada uma das medidas que o governo promete, mudanças no abono salarial, no BPC, nas emendas parlamentares, no salário mínimo.
O total é diferente por que o governo age de má-fé?
Não, é um problema de estimativa, envolve projeções de PIB, receita, vários indicadores. O governo tem um viés mais otimista. Nós chegamos a número menor.
Se chega perto, o que falta?
O arcabouço diz que tem de ser déficit zero no ano que vem. A projeção é de rombo de 0,85% do PIB, ou R$ 106 bilhões. Para zerar, teria de cortar muito mais do que R$ 46,9 bilhões, esse valor é para produzir déficit limitado a R$ 31 bilhões. E zerar não estabiliza a relação dívida/PIB. Nossa conta é que precisa de 1,5% do PIB de superávit.
Há possibilidade de o Congresso melhorar o pacote?
Uma coisa é aprovar regras do arcabouço, para controlar receita, dívida, gasto. Não tem custo político em aprovar regras. Quando se discute gastos de Bolsa Família, BPC, salário mínimo, o cenário muda. Aonde o Congresso vai apertar as válvulas que o Haddad já apertou? A chance maior é o Congresso soltar. Ninguém dá o que não tem, e quem votou no Lula sabia que votou num governo que, a meu ver, é responsável fiscalmente, mas não terá no fiscalismo sua bandeira principal.
Se o pacote não é suficiente, quais são os riscos?
Um ajuste de R$ 71,9 bilhões em dois anos não dá nem para o cheiro. E o valor não chega a R$ 71,9 bilhões pela nossa conta. Nos dois anos, dá R$ 45 bilhões ou R$ 46 bilhões. E os R$ 71 bilhões já não eram suficiente para zerar o déficit, nem para estabilizar a dívida/PIB. Então para chegar a 1,5% do PIB de superávit, em dois ou três anos, precisa de esforço anual médio de R$ 70 bilhões. Isso é ajuste fiscal. Então, por que o mercado não gosta? Por que o mercado não gosta do PT? Uma parte, de fato, é por isso. Mas uma parte é porque faz conta e vê um pacote na direção correta, mas o volume de recursos não é suficiente. É louvável que um governo de esquerda consiga mexer em feridas abertas, que são programas sociais ineficientes ou com critérios de elegibilidade que ficaram para trás.
Sem medidas adicionais, pode haver estrangulamento do orçamento em 2027, como alertou a IFI?
É muito provável, nossa conta é parecida. O teto de gastos do novo arcabouço fiscal dura até 2026, mas a partir de 2027, vai ter mudança nas regras de gastos obrigatórios para além dessas que já foram anunciadas? Vai mexer no piso constitucional da saúde, vinculado a evolução da receita, que vai continuar subindo? Se sim, o arcabouço ganharia sobrevida. Caso contrário, ou será preciso rever a regra ou vai descumprir. Se descumprir, tem implicações. Não pode romper o limite de gastos. Romper o limite de gastos é crime de responsabilidade fiscal. O que pode é romper a meta de primário. Nesse caso, o limite de gastos fica mais baixo (no ano seguinte). Em vez de ser 70% do aumento da receita passada, passa a ser 50%. O que o governo fez e pouca gente reconheceu no pacote fiscal foi a criação de dois novos gatilhos. Um é que, se houver déficit, limita os gastos tributários. Não pode renovar nem criar novos. O segundo restringe reajustes para o funcionalismo. O governo está apertando as regras. Por isso, não é justificado esse dólar acima de R$ 6.
Tem chance de baixar?
O real deve ganhar valor, porque o balanço de pagamentos está em condição muito boa, a balança comercial tende a fechar este ano em mais de US$ 85 bilhões, o déficit em transações correntes é coberto por investimentos e o pacote fiscal é positivo. Então, não pode fazer nenhuma barbeiragem adicional e precisa de mais medidas. O Haddad teve de negociar a reforma da renda, é compreensível. Às vezes fico irritado com os colegas do mercado. Pensam que existe um receituário, aplica e pronto. Não pensam que, do outro lado, tem Arthur Lira, o deputado do baixo clero que quer liberação de emenda. Então, é difícil para o governo. Por enquanto, o Haddad está vencendo. O mercado está deglutindo as medidas, e acho que vai melhorar a percepção, muito ruim no início, sobretudo se o governo jogar para frente a reforma do Imposto de Renda. Sou a favor. Acho que tem de aumentar a progressividade do regime tributário, porque o andar de cima no Brasil paga nada de imposto.
Com isenção para salários de até 5 mil, acima da renda média do trabalho no Brasil, de R$ 3,2 mil?
O R$ 5 mil vieram da cabeça do presidente em campanha. E Bolsonaro tinha proposto o mesmo. Então, Lula não quis ficar para trás. O que é bom é que Haddad conseguiu convencer outros ministros e o Congresso que vai ter de colocar medida compensatória, a tributação para quem ganha acima de R$ 600 mil por ano. Foi confusa, de última hora. Acabamos de passar pela novela da desoneração da folha. O Congresso derrubou um veto correto do presidente Lula. O Supremo teve de entrar, demandado pela União, porque ninguém fala quanto custa e aprova a lei à revelia da Constituição, que manda calcular o impacto de qualquer medida. E o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal manda compensar. Mas o Congresso vai aprovar as duas medidas? E se o andar de cima reclamar e o Congresso calibrar essa alíquota para baixo? Fiz a conta. A isenção até R$ 5 mil custa R$ 45,8 bilhões, mais do que os R$ 35 bilhões projetados pelo governo. E com efeito isolado.
Mas o governo não pretende esticar alguma faixa até R$ 7,5 mil?
Ficaria mais caro ainda. A taxação de quem tem renda acima de R$ 600 mil por ano dá R$ 28,5 bilhões. Quero passar a ideia de que o pacote é bom, porque alguns colegas fizeram o favor de contribuir com essa visão de que prejudica o governo e o país. Só é insuficiente.