Muito se comenta sobre os militares que conspiraram para dar um golpe de Estado e perpetuar Jair Bolsonaro (PL) no poder. Só na semana passada, 16 integrantes das Forças Armadas sofreram buscas por parte da Polícia Federal, por suspeita de tentarem abolir o Estado democrático de direito. Teriam pregado contra a lisura das eleições, colocado sob desconfiança as urnas eletrônicas, insuflado multidões que pregavam a derrubada do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), estimulado atentados contra prédios públicos e bloqueios de rodovias. Pouco se fala, no entanto, a respeito de generais que se recusaram a aderir ao golpismo. Aqueles que, mesmo não sendo eleitores do candidato petista, decidiram acatar o resultado do pleito e travaram dentro dos quartéis uma batalha silenciosa contra colegas que pregavam uma virada de mesa e cogitavam implantar Estado de Sítio no Brasil.
Para o leitor compreender, esse conflito entre legalistas e os que pregavam uma rebelião autoritária por parte de Bolsonaro, contra o resultado das eleições, aconteceu em todas as Forças Armadas, mas sobretudo no Alto Comando do Exército (ACE). Esse é o órgão que controla a maioria das tropas federais no Brasil. Além do comandante, inclui 15 generais quatro estrelas (topo da carreira), como o chefe do Estado-Maior do Exército, os comandantes militares de diferentes regiões brasileiras, os chefes de departamentos e do Comando de Operações Terrestres (Coter).
Investigações da Polícia Federal apontam que o então chefe do Coter, general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, era um dos mais inflamados defensores da continuidade do governo Bolsonaro a qualquer custo. Em mensagens interceptadas pela PF, Theophilo teria cogitado empregar o Comando de Operações Especiais (Copesp, integrado pelos chamados "kids pretos" ou tropas especiais) para realizar operações de contrainteligência que impedissem a posse de Lula. Entre as medidas cogitadas estava a prisão de autoridades como o próprio presidente eleito e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, visto como maior empecilho para os planos dos derrotados nas urnas. Só que para isso queria ordem explícita do próprio Bolsonaro, algo que até agora não surgiu nas investigações mostradas pela PF.
Parte das ações de contrainteligência sugeridas por Theophilo, segundo a PF, foram realizadas pelo major reformado do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros, gaúcho radicado no Rio. Em mensagens trocadas com o general da reserva Walter Braga Netto (então chefe da Casa Civil e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro em 2022), Barros sugere "entregar aos leões" a cabeça do então comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes. Gomes é chamado de "cagão" por Braga Netto por se recusar a aderir ao plano de impedir a posse de Lula.
"Melancias: verdes por fora e vermelhos por dentro"
Coincidência ou não, logo após o diálogo entre o major reformado Barros e o general Braga Netto começaram a surgir nas redes sociais montagens contra militares relutantes em aderir ao governo. Entre eles, o comandante do Exército, junto com outros generais que não estavam dispostos a uma aventura para barrar a chegada de Lula ao poder. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 15 de novembro de 2022, auge dos protestos contra a recente eleição de Lula para a presidência do Brasil. Naquela data, brotaram no Twitter posts com fotos de generais chamados de "melancias" pelos bolsonaristas. Eles seriam "verdes por fora e vermelhos por dentro", dando a entender que vestiam a farda do Exército, mas no íntimo eram comunistas. Eram caricaturas grotescas. Em algumas delas, os militares vestiam literalmente capacetes em formato de melancia.
As imagens foram compartilhadas por milhares de eleitores de Bolsonaro, derrotado nas urnas, que tinham acabado de bloquear rodovias em todo o país e agora mudavam de tática, acampando em frente a quartéis das Forças Armadas. Exigiam intervenção militar para impedir a posse de Lula.
Além de Freire Gomes, os generais considerados "traidores da Pátria" pelas hostes bolsonaristas foram outros cinco: Valério Stumpf (chefe do Estado-Maior do Exército), Tomás Miné Ribeiro de Paiva (comandante militar do Sudeste), André Luiz Novais (comandante militar do Leste), Richard Nunes (comandante militar do Nordeste) e Guido Amin (chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército).
Só esses eram legalistas, dentre os 16 integrantes do Alto Comando? Certo que não. Só que esses viraram alvo por terem muita influência. Não são generais quaisquer. Na época, comandavam áreas estratégicas, como o Estado-Maior, que reúne os oficiais mais graduados do Exército e planeja tudo de importante na força terrestre. E chefiavam grande parte dos 213 mil militares do Exército no país, já que, juntos, os comandos do Sudeste (SP), Nordeste (todos Estados nordestinos, excetuado o Maranhão) e Leste (MG e RJ) respondem por mais de um terço da tropa. Num impasse bélico, poderia virar guerra civil.
O fato de não estarem dispostos a quebrar as regras do jogo eleitoral fez aumentar a virulência das postagens contra o quinteto.
"Generais comunistas contra o povo, eles querem o governo Lula", diziam alguns tuítes. Outros, com fotos dos militares-alvo, desafiavam:
"E agora, general? No dia 01/Jan/2023, V.Exa. pretende prestar continência a quem? Ao povo brasileiro ou aos comunistas?".
Diante das postagens, as Forças Armadas foram forçadas a sair do mutismo habitual. Nota do Informe do Exército (Informex, o boletim oficial da força), endossada pelo comandante Freire Gomes em 16 de novembro, chamou os ataques nas redes de "publicações maliciosas e criminosas que tentam atingir a honra pessoal de militares com mais de quarenta anos de serviços prestados ao Brasil".
O curioso nisso tudo é que nenhum desses generais podia ser chamado de simpático a Lula. Apenas, em conversas reservadas, defendiam que o eleito deveria assumir e governar. Postura que desagradava aos bolsonaristas e ao próprio Bolsonaro, que chegou a comentar em reuniões que se nada fosse feito antes do pleito, seu adversário ganharia.
Ao contrário do que insinuavam os fanáticos de extrema-direita, inexistia afinidade ideológica desses generais legalistas com o petismo e o lulismo. O general Tomás, para ficar num exemplo, foi durante seis anos ajudante de ordem do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, adversário histórico de Lula). Os demais não tiveram vínculos com governos e têm perfil discreto, embora alguns sejam muito admirados por seus pares, como Stumpf (que atuou em duas zonas de guerra, em Angola e na Bósnia) e Amin (atuou em Moçambique).
Todos partilham do repúdio histórico do alto oficialato brasileiro a qualquer coisa que se assemelhe a socialismo e comunismo. Nenhum deles sequer nutre simpatia pelo regime bolivariano da Venezuela, para ficar noutro exemplo. Apenas pregavam legalidade, em meio a um oceano de sugestões autoritárias vindas de integrantes do governo, que incluíam prisão de parlamentares, juízes e adversários políticos.
De todos os cinco, é provável que a maior saia-justa tenha sido a enfrentada pelo general Richard. Ele chegou a ser um estreito colaborador do general Braga Netto (interlocutor preferencial de Bolsonaro junto aos fardados e candidato a vice do presidente na tentativa de reeleição). A relação de Braga Netto e Richard foi umbilical durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, em 2018, quando todo o aparato policial daquele Estado ficou sob controle das Forças Armadas. O primeiro virou interventor e o segundo, secretário da Segurança Pública fluminense.
Só que muita coisa mudou desde 2018 e uma delas foi o mergulho de Braga Netto na política. Virou defensor empedernido de Bolsonaro, tanto que foi ungido para ser seu candidato a vice na tentativa de reeleição, fracassada. Já Richard se manteve afastado de declarações e movimentações políticas.
Temor de guerra civil
A resistência desses generais legalistas aos apelos por um golpe (explícito ou disfarçado) era sutil. Entre agosto e novembro, esse mesmo grupo de oficiais graduados chamados de "melancias" resistiu, como pôde, às tentativas do governo de tentar deslegitimar as urnas eletrônicas. A ofensiva que colocou em desconfiança o equipamento (usado há décadas no Brasil) foi encabeçada pelo então ministro da Defesa, Paulo Sergio Nogueira de Oliveira. Sob ordens dele foi elaborada uma "auditoria" do sistema eletrônico de votação. Técnicos das Forças Armadas testaram a "integridade" das urnas e apontaram a possibilidade de "risco à segurança na fase de compilação (preparação) dos programas instalados nas máquinas", pelo acesso de pessoas à rede de computadores. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desconsiderou a avaliação do ministério e atestou confiabilidade ao processo eleitoral.
Quando os protestos contra o resultado das eleições chegaram ao auge, no final de novembro, outro ponto de desgaste surgiu. Alguns generais acharam que era hora de desmobilizar os acampamentos bolsonaristas em frente aos quartéis. Mas o próprio comandante Freire Gomes, desta vez, contemporizou e disse que as Forças Armadas só agiriam se a Justiça desse ordem. E minimizou o problema. Alguns legalistas alertaram que os acampamentos poderiam acabar em baderna, como de fato aconteceu, em 8 de janeiro de 2023.
Vários fatores pesaram para que muitos generais permanecessem ao lado da legalidade. Alguns viam Bolsonaro como "um mau militar" (definição do ex-presidente Ernesto Geisel, um dos generais que governou o país durante a ditadura militar de 1964-1985). Outros, de formação rígida e avessos a balbúrdia, discordavam da postura bolsonarista de instigar as massas humanas contra os adversários políticos. Temiam, sobretudo, conflitos armados ou até guerra civil, caso vingasse no país um golpe que sequer tinha apoio externo, nem das multinacionais, nem do mercado financeiro, nem da metade dos eleitores. Em suma, uma aventura sem futuro.
E onde estão os generais que foram alvo da ira bolsonarista? Tomás virou comandante do Exército. Novaes assumiu como chefe do Comando de Operações Terrestres. Freire Gomes e Stumpf foram para a reserva. Richard chefia o Departamento de Educação de Cultura do Exército. E Amin se tornou Comandante Militar do Sudeste.