A agricultora Deisi Talamini estava no potreiro da propriedade onde mora, na localidade de Bom Sucesso, área rural de Não-Me-Toque, no entardecer de 28 de dezembro, quando o pai disse para irem olhar a lavoura. Naquele sábado, com temperatura de 36ºC, José Paulo estava preocupado.
Na chegada ao campo de sete hectares de milho, Deisi esmoreceu. De um pé amarelado, colheu uma espiga menor que a palma da mão, murcha pela ausência de chuva e preenchida só pela metade dos grãos.
— Posta foto para o povo ver o que está acontecendo — estimulou o pai.
Produtora em uma área onde o sinal de internet nunca chegou, Deisi retornou para casa e subiu uma dezena de imagens do milharal para seus 1,7 mil seguidores no Instagram pela rede wi-fi. “Quando um produtor olha a lavoura e depara com a falta de chuva, não tem como não bater a tristeza. Ele olha para o céu e pede que Deus mande chuva para produzir nosso alimento de todo dia”, escreveu na legenda.
Para esta reportagem, Zero Hora percorreu 1,2 mil quilômetros no Estado e encontrou famílias afetadas, como os Talamini. Eles são um retrato dos danos causados pela estiagem que acomete o Rio Grande do Sul. Dona de uma das 427 propriedades rurais de pequenos agricultores espalhadas em 12,5 mil hectares do município do norte gaúcho, a família produz milho e soja.
Em planilhas guardadas em uma maleta, José Paulo anota toda chuva que cai sobre a área desde 1986. Às vésperas do fim do ano, o agricultor havia registrado somente 15 milímetros em dezembro, volume insuficiente para desenvolver o milho e florescer a soja.
No dia 31, anotou um breve alívio. Despencaram 27 milímetros sobre a lavoura, levando Deisi de volta às redes sociais. “Chegou”, redigiu a produtora em foto da queda d’água formada pela calha da casa. Na ceia de Réveillon, a família brindou.
— Celebramos duas coisas: a esperança de que a chuva se normalize e o Ano-Novo — contou Deisi.
Sonhamos com uma supersafra, que será frustrada. Nosso amor dedicado ao plantio está morrendo por causa da seca.
DEISI TALAMINI
Agricultora
A terra dos Talamini fica a 12 quilômetros do centro de Não-Me-Toque, separada da zona urbana por uma estrada pedregosa de terra vermelha ladeada por brotos de soja e pés de milho. Para eles, os grãos que não cresceram representam abalo de 90% no orçamento, complementado apenas pelo trigo semeado no outono.
Os produtores investiram R$ 56,7 mil no plantio das duas culturas, financiados pelo Sicredi. Previam colheita de R$ 190 mil para pagar o banco e as despesas do ano.
Prometido à Cotrijal e à empresa cerealista Orlando Ross, o milho deveria medir 20 centímetros, mas atingiu metade disso, e a muda de soja chegou à altura dos tornozelos quando já deveria ter ultrapassado a dos joelhos.
— Sonhamos com uma supersafra, que será frustrada. Nosso amor dedicado ao plantio está morrendo por causa da seca — lamentou Deisi.
Soja também registra danos
Após a estiagem de 2011-2012, o Estado tem registrado safras recordes sequenciais. Em 2019, brotaram das lavouras gaúchas 34,6 milhões de toneladas de cereais, leguminosas e oleaginosas, 1,5 milhão de toneladas a mais do que em 2018, segundo o IBGE. Para 2020, a escassez de chuva irá comprometer a anunciada supersafra, admitiu o secretário estadual da Agricultura em exercício, Luiz Fernando Rodriguez:
— A estimativa não deve ser alcançada, mas não sabemos o quanto de prejuízo poderá acarretar porque temos expectativa de que o clima melhore.
Gedeão Pereira, presidente da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), entende que “se o clima normalizar, vamos ter, não aquela safra recorde, mas uma boa safra”. Danos no milho são estimados em 20,86% pela Emater.
— É uma queda significativa diante da expectativa de avanço na produção — sintetizou o presidente da Associação dos Produtores de Milho (Apromilho), Ricardo Meneghetti.
Na oleaginosa, a redução é calculada em 9,2%. O governo do Estado pedirá ao Ministério da Agricultura a ampliação do Zoneamento Agrícola de Risco Climático para 31 de janeiro.
— São R$ 5 bilhões (da soja) que deixam de circular nos municípios gaúchos. Para muitos, será um ano perdido — alertou Luis Fernando Fucks, presidente da Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja).
Exuberante, a paisagem verde-bandeira das lavouras do planalto gaúcho tem enganado quem desconhece a cultura dos grãos cor de ouro. Há queda na produtividade devido aos ramos miúdos e pouco recheados de vagens.
— As pessoas passam pelo campo e vêem a soja verde, bonita. Aí, não conseguem entender que a perda está concretizada dentro da lavoura — afirmou o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Não-Me-Toque, Maiquel Jungues.
No milho, a perda é irreparável. Na soja, acentuada, mas a chuva pode recuperar.
GIORDANO SCHIOCHET
Engenheiro agrônomo
Vizinho dos Talamini, Giordano Schiochet representa outro perfil de agricultor do município. O engenheiro agrônomo comanda 383 hectares de lavoura de milho e soja na Agrícola Dona Maria, batizada em homenagem à avó.
Uma das 68 propriedades de grandes produtores do município, que ocupam 16,6 mil hectares, a fazenda também sofre as consequências dos dias desérticos. No milharal, Schiochet colherá grãos secos saídos de folhas enferrujadas, estimando metade da safra do ano passado. Já na soja, torce para que o tempo irrigue seus brotos.
— No milho, a perda é irreparável. Na soja, acentuada, mas a chuva pode recuperar — disse Schiochet.
Fumo seca no Vale do Rio Pardo
No rolo da câmera do seu celular, Luís Carlos Shwendler mostra com orgulho as fotos do fumo colhido no ano passado. A terra dera folhas verdes e graúdas na propriedade de 8,8 hectares onde ele mora há cinco décadas, na localidade de Linha Harmonia da Costa, no interior de Venâncio Aires, município do Vale do Rio Pardo.
— Estava bonito. Um fumo de encher os olhos — recorda Shwendler.
O ânimo do descendente de alemães muda ao comentar sobre o produto semeado no início de agosto e colhido no final de dezembro do ano passado. A estiagem desidratou mudas e torrou folhas, deixando o tabaco com aspecto de secura.
— Parou a chuva, veio o calor, e o fumo desabou. Estava amarelo, caindo. Por baixo, secou. Por cima, amarelou — conta o agricultor.
O clima levou à perda de um quarto do fumo plantado. O pasto semeado também murchou, emagrecendo a dúzia de vacas criadas para incremento de renda, e a lavoura de milho queimou em razão da estiagem.
— A grama está meio cinzenta — diz o fumicultor, apontando para uma mancha sem cor no solo.
Em Santa Cruz do Sul, Cristiano Staub também viu a escassez de chuva consumir o fumo plantado na propriedade no Alto da Malhada. Picotado pelos pequenos produtores de tabaco, o Vale do Rio Pardo colhe os danos da estiagem.
— As folhas estavam secando. Pensei em molhar, mas a água estava pouca até para beber — afirma Staub.
Na cultura do tabaco, a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) estima perda de quase um terço das lavouras, de acordo com o presidente da entidade, Benício Werner:
— Duas questões quebraram a safra. Primeiro, a chuva muito forte. Depois, a estiagem. O nível de produtividade e de qualidade caiu, atingindo a receita dos produtores.
Estresse afeta vacas no Norte
Às 17h20min de quinta-feira (16), Marinês e Caroline Trevizan começaram a segunda ordenha do dia nas 40 vacas holandesas criadas no Povoado Migliavacca, no município de Casca, no Norte. Preto e branco, o animal identificado com o brinco número 473 deu 10 litros de leite em 4min56s, apontou o aparelho de controle — sete litros abaixo da média da propriedade.
— No calor, a vaca não vai à procura de comida nem água. Ela entra em estado depressivo, em um estresse térmico que ninguém imagina — diz Marinês.
No calor, a vaca não vai à procura de comida nem água. Ela entra em estado depressivo, em um estresse térmico que ninguém imagina.
MARINÊS TREVIZAN
Produtora
Na propriedade, os animais costumam produzir 34 litros de leite diariamente. Desde que as temperaturas passaram a extrapolar o limite do suportável, ainda em dezembro, as ordenhas do alvorecer e do entardecer caíram para 30 litros por dia. Na economia dos Trevizan, a queda tem impacto de 10%.
Para Marinês, a diminuição do alimento entregue à Domilac Laticínios só não foi maior porque mantém o rebanho confinado, reduzindo o estresse causado pelo abafamento. Os Trevizan criam vacas em um pavilhão com ventiladores e jatos d’água, acionados a cada 15 minutos. Os animais também não comem o pasto transformado em um carpete de tom cinzento pela estiagem. Devoram apenas silagem, feno e ração.
Estocada desde o ano passado, a silagem produzida do milho de safra cheia está em condições nutricionais adequadas para o rebanho. O alimento, porém, irá durar apenas mais um mês, e os animais passarão a comer o grão de uma colheita quebrada.
— Aí, o impacto será grande pela falta do alimento de qualidade. Buscaremos ração para preencher esse vazio causado pela estiagem — afirma o veterinário Paulo Trevizan, filho de Marinês.
Técnica agropecuária do escritório da Emater em Casca, Edivane Ferro tem verificado queda na produtividade do município que costuma extrair 30 milhões de litros de leite por ano. Segundo o Sindicato das Indústrias de Laticínios do Estado (Sindilat-RS), pela ausência de chuva, 1 milhão de litros de leite a menos por dia foram para processamento.
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