É bem verdade que o caso não é tão grave quanto o registrado entre 1863 e 1864 em Porto Alegre, quando um assassino em série matou ao menos três pessoas na então chamada Rua do Arvoredo — e, supostamente, usou os corpos para fazer linguiça. Cerca de 160 anos depois, a agora Rua Fernando Machado, no Centro Histórico, é cenário de um novo mistério e uma investigação policial está em andamento. Dentro do Café Mal-Assombrado, um homem se passou por cliente para levar livros sem pagar, escondidos sob a roupa. Ao menos cinco itens desapareceram no último dia 9, deixando prejuízo estimado em mais de R$ 600.
Se o caso de 160 anos atrás nunca foi totalmente esclarecido — é fato que pessoas foram mortas, mas o detalhe sórdido envolvendo o suposto consumo de carne humana provavelmente nasceu do imaginário popular — o episódio de furto de livros foi até registrado em vídeo.
A ação levou menos de meia hora, e o prejuízo foi elevado porque os livros levados foram escolhidos minuciosamente, conforme o proprietário do Café Mal-Assombrado, André Hernandez Neto.
Ao menos três das obras levadas já foram identificadas pelo empresário, dono do acervo de três mil exemplares. Dos itens levados, o mais caro é a primeira edição de Rockers, de Bob Gruen, que reúne imagens do fotógrafo reconhecido por documentar os bastidores da cena musical dos anos 1960 de Nova York, trabalho essencialmente voltado ao rock. Na internet, exemplares do livro podem ser encontrados por até R$ 300.
O criminoso também levou Drácula, de Bram Stoker, de capa amarela, e A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, que custam em média R$ 70 cada.
Segundo Hernandez Neto, o homem levou ainda outros dois ou três livros, mas os títulos não foram identificados nas imagens.
Ladrão intelectual
O caso reúne detalhes curiosos, que chamaram atenção dos funcionários do café. Segundo eles, o homem foi simpático no local, conversou com a equipe e estava bem vestido, um conjunto de fatores pensados para não levantar suspeita, acreditam.
— É um senhor, cabeça branca, educado, parece um intelectual mesmo. Conversou com o pessoal, comentou com o nosso barista sobre a casa ser antiga, perguntou o ano da construção. Olhava por tudo e ficava batendo papo. O que mais nos deixa pasmos é que ele fazia isso, ia até as estantes, pegava mais algum livro, escondia no casaco e depois voltava para conversar mais um pouco. Como se nada estivesse acontecendo. É de uma frieza. Ele tem uma certeza de que nada vai acontecer, de que ninguém vai ver, questionar o que ele está fazendo — afirma Hernandez.
Outro detalhe da ação também surpreendeu o dono do acervo: a precisão do ladrão na escolha dos obras. O proprietário diz que o homem escolheu os livros "a dedo".
— Pelas imagens, dá para ver que ele selecionou os livros. Pegou um, analisou, devolveu. Com certeza ele já esteve aqui antes, porque sabe onde estão os itens que quer. O Rockers, por exemplo, é uma obra grande, grossa, pesada, e ele coloca muito fácil no casaco, numa destreza, prática. Ele tinha a opção de pegar livros menores que também são caros, mas foi especificamente neste. Escolheu direitinho, a dedo, como se tivesse completando uma demanda, um pedido, algo assim — comenta.
Indignado com a audácia, o empresário decidiu compartilhar o vídeo do furto nas redes sociais do café. Ele conta que, depois disso, recebeu contato de outros estabelecimentos que afirmam ter sido vítimas da mesma ação. Ao menos um sebo e duas livrarias relataram casos, diz Hernandez.
Ladrão frequentava livraria no Centro
Quem também diz ter sido vítima do ladrão é Ederson Lopes, um dos proprietários da Livraria Taverna, que funciona na Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). O furto no local ocorreu em março, no mezanino, diante da estante de obras de Ciências Humanas, que engloba temas como História, Sociologia e Filosofia.
Câmeras também flagraram a ação: um homem pega um livro vermelho, olha para os lados, agitado, dá alguns passos e coloca o item junto ao cós da calça jeans, escondido sobre uma camisa social azul. Ele usa um boné da mesma cor, e óculos. Na gravação, é possível ver ele fazer o mesmo com ao menos outros quatro livros, mas a livraria contabilizou sete itens levados. O prejuízo foi de cerca de R$ 700.
— Era alguém que não levantava nenhum tipo de suspeita. Ele era frequentador, ao menos duas vezes por semana estava aqui, o conhecíamos como um cliente que vinha com regularidade. Era simpático, conversava com a equipe. Nesse dia, ele estava no mezanino sozinho da loja. É a mesma ação, ele seleciona os livros que quer. Tenho certeza que é a mesma pessoa do furto no café (Mal-Assombrado) — diz Lopes.
Segundo o empresário, como a livraria também divulgou as imagens, o homem nunca mais voltou após o episódio.
A Taverna contou com a ajuda de funcionários de um café, que fica a poucos metros, para perceber a ação.
— Assim que ele saiu daqui, o pessoal do café ao lado o viu. Ele deu uns 10 passos e começou a retirar os livros debaixo da roupa. Acharam estranho e nos avisaram. Fomos consultar as imagens e ficamos surpresos. Dá para ver ele na cara dura entrando, furtando e saindo da livraria como se não fosse nada. A gente tem um ambiente de leitura, cultura, pessoas que vem aqui para buscar conhecimento. Tu não espera alguém vindo aqui para roubar ou se dar bem.
Lopes afirma que também registrou boletim de ocorrência junto a polícia.
Afinal, para onde foram os livros?
Apesar das imagens, o mistério segue. De acordo com o delegado Paulo Cesar Jardim, um inquérito foi aberto e os furtos são investigados por equipes da 1ª Delegacia de Polícia da cidade. Jardim não divulgou detalhes, como quantos casos do tipo foram registrados nem se foram cometidos pela mesma pessoa. Contudo, ele afirma que, no caso do Café Mal-Assombrado, já há um suspeito identificado, um idoso.
Enquanto isso, os donos de estabelecimentos conjecturam para onde foram levadas as obras. Lopes, da Taverna, acredita que o ladrão tenha colocado os exemplares à venda:
— Se fosse um caso de cleptomania (transtorno em que o indivíduo tem impulsos incontroláveis de furtar objetos, e sente até prazer com a ação), ele levaria só um ou dois. Mas furtou sete de uma vez. Me parece mais lógico que ele revenda os livros, pelo lucro mesmo — opina Lopes.
O proprietário do Café Mal-Assombrado diz que a equipe "já debateu todas as alternativas possíveis".
— Já pensei que ele pode ter uma biblioteca dentro de casa, que é para consumo próprio, que ele coleciona, que coloca à venda. Já pensamos de tudo, o que sabemos é que ele seleciona o que quer, não pega qualquer coisa. De qualquer forma, tenho monitorado sites para ver se ele anuncia os livros. Fico imaginando ele conspirando, o que será que pensa para fazer isso? E não tem medo de ser pego na próxima loja que for? Eu morreria de vergonha! — comenta Hernandez.
Prejuízo à parte, o empresário se mostra abatido com a natureza da ação. Conta que o objetivo do café, que funciona em uma casa de 1915 e se dedica a contar e preservar algumas das passagens mais pavorosas da história, é justamente permitir às pessoas o acesso a obras e informações. Tudo isso em uma atmosfera assustadora, graças a uma decoração que conta com rastros de sangue falso, bonecos, quadros antigos, muitas velas, terços e flores mortas.
— Ele (o furto) nos tira um pouco da esperança, da vontade de fazer as coisas de bom grado. Fizemos essa parte da livraria parecer uma biblioteca de forma proposital, para que as pessoas venham, consultem os livros, leiam e, se quiserem, comprem. Esse arquivo que está aqui é meu, tem livros muito antigos, raros, à disposição, queremos que sintam como se estivessem entrando na casa da avó. Inclusive tem livros ali que não estão à venda, porque eu não teria como repor e quero que todos possam conferir. Então vem alguém e quer levar vantagem em cima disso, é algo que nos chateia muito — diz Hernandez, que abriu o espaço em outubro 2022.
O empresário diz que, apesar do episódio, os livros continuarão à disposição no café.