Nenhum caso policial de Porto Alegre desperta tanta curiosidade quanto os crimes da Rua do Arvoredo. Os assassinatos na casa do Centro Histórico, na atual Rua Fernando Machado, ocorreram 160 anos atrás. As vítimas mutiladas causaram revolta da população e tentativa de linchamento.
Os crimes ficaram notórios pela suposta fabricação de linguiças com carne humana. O que é real? O que é lenda? Como na brincadeira do telefone sem fio, o caso ganhou muitas versões ao longo do século 20.
Em 15 de abril de 1864, o taberneiro Januário Martins Ramos da Silva e seu caixeiro, o menino José Ignácio de Souza Ávila, desapareceram. Visto com os dois naquele dia, José Ramos virou suspeito. Em buscas na sua casa na Rua do Arvoredo, foram encontrados os dois corpos mutilados e enterrados em um poço. A polícia também descobriu a ossada do açougueiro alemão Carlos Claussner, morto em setembro de 1863. Durante o depoimento de Ramos e da companheira, Catharina Palse, o povo cercou o prédio da polícia, querendo fazer justiça com as próprias mãos.
Depois de 30 anos da primeira edição, a EST Edições publica agora a segunda edição do livro Os Crimes da Rua do Arvoredo, com documentos oficiais guardados pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Com depoimentos dos suspeitos e testemunhas à polícia, foi transcrito um dos processos judiciais. É uma fonte fundamental para entender o caso e tirar suas próprias conclusões tanto tempo depois.
Em agosto de 1864, ocorreram dois julgamentos. Ramos foi condenado pelos três assassinatos. Ele ficou preso até morrer, em 1893, na cadeia pública. Catharina cumpriu pena por envolvimento nas mortes do taberneiro e do menino. Sobre linguiças de carne humana, nenhuma linha nos depoimentos e no processo. Nada também em jornais da época da descoberta dos corpos e dos julgamentos.
Com base no livro e jornais da época, veja perguntas e respostas sobre o que é fato nos crimes da Rua do Arvoredo:
Quem foi assassinado na casa da Rua do Arvoredo?
Carlos Claussner, 35 anos, alemão, dono de açougue na Rua da Ponte (atual Rua Riachuelo), atrás da Igreja das Dores. Pelos relatos de testemunhas, apresentava defeito no lado esquerdo do rosto, por "retirada de um osso". Morto nos primeiros dias de setembro de 1863.
Januário Martins Ramos da Silva, taberneiro na Rua da Igreja (Rua Duque de Caxias), esquina com Rua do Rosário (Rua Vigário José Inácio). Morto em 15 de abril de 1864. O cão de Januário também foi morto.
José Ignácio de Souza Ávila, menino, caixeiro do estabelecimento de Januário. O jornal Correio Mercantil citou que o menino teria 8 ou 9 anos. Morto em 15 de abril de 1864.
Quem foi réu pelos crimes?
José Ramos, 26 anos, solteiro, filho de Manoel Ramos e Maria da Conceição, natural de Santa Catarina. Sabia ler e escrever. Em depoimentos, disse não ter profissão desde a baixa militar em setembro de 1863. Perguntado sobre origem da sua renda, justificou que a mulher lavava roupas para terceiros e ele cobrava alguns negociantes, além de pedir dinheiro emprestado.
Catharina Palse, 27 anos, solteira, húngara, engomadeira. Não sabia ler e escrever.
Carlos Rathmann, 61 anos, alemão, filho de Mellior Rathmann e Catharina Rathmann, seleiro. Só sabia assinar o nome. Morava na casa de Ramos e Catharina, na Rua do Arvoredo, no período do primeiro assassinato, de Claussner.
O que a polícia encontrou na casa da Rua do Arvoredo?
Em 18 de abril de 1864, uma segunda-feira, policiais foram à casa na Rua do Arvoredo para investigar o desaparecimento do taberneiro Januário e do caixeiro José. De acordo com o auto de exumação e buscas, no porão, localizaram os restos de um cadáver, ainda envolto em roupas, em avançado estado de putrefação. Pelas condições, não era o corpo de nenhum dos dois desaparecidos três dias antes.
No quintal, em um poço coberto de lixo e ramos verdes, foram encontrados dois corpos, um adulto e outro menor, partidos em pedaços, "estando as cabeças separadas dos troncos, estes mutilados e separados das extremidades, algumas quais estão também mutiladas". Os dois pareciam enterrados há pouco tempo. No poço, também estava morto um pequeno cão preto. Testemunhas reconheceram os corpos de Januário e do menino José.
A carne foi retirada dos corpos?
Não. Os corpos estavam mutilados, mas sem qualquer registro de falta de pedaços.
O cachorro de Januário localizou os corpos?
Não. O cão foi morto no mesmo dia dos assassinatos de Januário e do menino. O animal chegou à casa com o dono, Januário. Não foi atraído pelo outro corpo, enterrado desde setembro de 1863 no porão da residência.
Onde ficava a casa?
A casa ficava na Rua do Arvoredo (Rua Fernando Machado), atrás da igreja e do antigo cemitério (atual Catedral Metropolitana).
Quem mais morava na casa?
Quando os corpos foram encontrados, uma escrava alugava um dos quartos da casa de Ramos e Catharina. Ela é citada apenas como Senhorinha, 54 anos, solteira, escrava de Balbina Palmeiro, lavava roupas no Riacho (Arroio do Dilúvio), que desaguava perto da Rua do Arvoredo.
Ela foi tratada como testemunha. No dia dos crimes, disse que viu Januário, um "homem magro e meio velho", e o menino na casa.
Quais as provas contra José Ramos?
Ele apresentava contradições nos depoimentos e nas versões sobre o destino das vítimas. Catharina o apontou como assassino. O bilhete apresentado como prova da compra do açougue de Claussner foi considerado falsificado. Ele ficou com pertences do alemão, até documentos. Ramos levou para sua casa o taberneiro e o menino no dia dos crimes.
Na Santa Casa, perícia apontou que o corpo em avançado estado de decomposição, enterrado no porão da casa, era de Claussner. Um brinco, usado pela vítima, também foi um dos elementos para identificação.
O que disse José Ramos?
Sempre negou os crimes. Tentou responsabilizar Catharina, que "governava" e estava sempre em casa. Ele disse que comprou o açougue de Claussner, que deixou Porto Alegre. Para uns contava que o destino era Montevidéu, e para outros relatava que o alemão fora para Nova Petrópolis.
Ramos era açougueiro?
Não. Ele ficou apenas dois dias no açougue de Carlos Claussner, depois de o matar. O comércio foi fechado após o fornecedor de carne negar novas entregas. Rathmann citou que o alemão Fetter não queria fornecer fiado.
Ramos ganhou na loteria?
Em mais de um depoimento, testemunhas relataram que Ramos contava ter ganho dinheiro na loteria. Na verdade, era a forma de justificar seus gastos.
O que disse Catharina Palse?
Em dois depoimentos à polícia, disse que não assistiu ou participou dos assassinatos de Januário e do menino José, mas viu os dois corpos. O taberneiro foi morto à tarde e o menino à noite, quando Ramos cortou os dois corpos no pátio.
Sobre o cão, disse que era de Januário, e Ramos o matou à noite.
Sobre o açougueiro Claussner, disse não saber da morte. Ela admitiu que Ramos levou para casa objetos do açougue.
Como José Ramos matou Januário e o menino?
Catharina e as provas recolhidas no local indicam que foi com um machado.
Ramos e Catharina eram casados?
Não. Moravam juntos, mas sem qualquer registro formal de casamento.
Desde quando o casal morava na casa da Rua do Arvoredo?
Em todos os depoimentos, relatavam estar na casa há sete ou oito meses. Portanto, Claussner foi morto e enterrado no local logo após chegarem à residência.
Por que Ramos matou Januário, o menino e Claussner?
No caso do açougueiro Claussner, fica claro que queria tomar o açougue e bens da vítima.
Januário seria morto pelo mesmo motivo. O Correio Mercantil, de 25 de agosto de 1864, cita que Ramos "fez tudo isso somente para se apoderar da chave da casa de negócio desse velho e roubar objetos insignificantes".
O menino seria testemunha do desaparecimento do patrão, que saiu com Ramos naquela tarde de 15 de abril de 1864.
Catharina atraiu as vítimas?
Nos depoimentos, não há qualquer referência a Catharina atrair as vítimas para a casa. Os dois comerciantes eram conhecidos de Ramos.
Como foi o julgamento?
Em 12 de agosto de 1864, Ramos e Catharina foram julgados pelas mortes do taberneiro Januário e do menino caixeiro. No livro, consta apenas a sentença. O processo publicado é do caso do Claussner.
Em 13 de agosto de 1864, Ramos e Rathmann foram julgados pela morte do açougueiro Carlos Claussner.
O Tribunal do Júri foi presidido pelo juiz José Alves de Azevedo Magalhães. O promotor público foi Eugenio Pinto Cardoso Malheiros. Como os réus justificaram que eram pobres, o juiz nomeou os defensores João Pereira Maciel e Francisco Xavier da Cunha.
Em sorteio, foram definidos 12 jurados: Candido Albuquerque Fernandes Gama, Manuel Ignacio Rodrigues, Luiz José da Fontoura Palmeiro, Francisco Ferreira Jardim Brazão, Domingos de Almeida e Oliveira, Luís Beltrão de Miranda e Castro, José Maria de Andrade, João Dias de Castro, João José Ferreira, Francisco de Paula Soares, Antonio de Lima Pinto e José Gonçalves Mendes Ferreira.
Qual a sentença?
No julgamento sobre a morte do açougueiro Claussner, José Ramos foi condenado a 14 anos e um mês de prisão com trabalho e multa. Os doze jurados votaram em oito quesitos. Questionados se Ramos matou o alemão, 10 votos responderam sim. Sobre a falsificação do recibo de compra do açougue, onze consideraram que sim.
Carlos Rathmann foi absolvido e o juiz determinou a soltura da cadeia pública.
No julgamento sobre a morte do taberneiro Januário e do menino José, José Ramos foi condenado à morte (não consta no livro, mas teria sido convertida em prisão perpétua) e Catharina Palse recebeu pena de 13 anos e quatro meses de prisão com trabalho e multa.
É verdade que o povo queria fazer justiça com as próprias mãos?
Sim. Durante o depoimento, o povo cercou a repartição policial. Em ofício ao vice-governador da província, o chefe de polícia Dario Rafael Callado contou que gritavam para que "entregasse os presos para sobre eles fazer, por suas mãos, a justiça". No lado de fora, eram mais de 200 pessoas. Os depoimentos começaram às 15h.
Callado pediu reforço de praças ao 3º Batalhão de Infantaria para levar Ramos e Catharina à cadeia no final da noite de 18 de abril de 1864.
Na confusão, manifestantes e militares ficaram feridos. O casal só foi recolhido à cadeia à meia-noite.
Por que a revolta do povo no dia da prisão?
Além de assassinar, Ramos mutilou os corpos. Os crimes aterrorizaram a população.
Os assassinos faziam linguiças de carne humana?
Nos depoimentos dos suspeitos e testemunhas na polícia, ninguém citou a possibilidade de Ramos matar para usar a carne em linguiças. Nenhuma pergunta da polícia está relacionada à canibalismo. Nada sobre o que tornaria a história famosa no futuro.
No processo judicial da morte de Claussner, disponível no livro, também não existe uma única palavra que remeta à lenda das linguiças de carne humana.
Como surgiu a lenda?
É difícil de saber quando o povo começou a espalhar esta versão. Qual o papel dos jornalistas e cronistas das décadas seguintes na construção da parte ficcional deste episódio? No período das prisões e julgamentos, nos jornais em que encontrei notícias sobre os crimes, nenhuma citação sobre linguiças.
O que ocorreu com Catharina?
Localizei duas notícias sobre a soltura. Em 1880, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, publicou que, em 19 de março, foi posta em liberdade "Catharina Palse, que cumprira 15 anos, 6 meses e 35 dias de prisão. O texto explica que ela era companheira de "incrível carnificina que encheu de horror o povo da capital".
Em 1891, o jornal A Federação publicou que, em 6 de maio, foi posta em liberdade Catharina Palse. Não localizei a razão para ela voltar a ser presa entre 1880 e 1891.
O que ocorreu com Ramos?
Morreu na cadeia pública de Porto Alegre em 1º de agosto de 1893. No acervo do pesquisador Ronaldo Ramos, além de imagens da casa da Rua do Arvoredo, consta a foto que seria de José Ramos na prisão.