Um casarão de 107 anos na Rua Coronel Fernando Machado surpreende quem passa pelo local com uma vitrine repleta de clássicos da literatura de terror e, no segundo andar, um boneco com a máscara do assassino da franquia Pânico, que encara quem passa por ali. A alegoria de horror faz sentido. Afinal, a via, conhecida antigamente como Rua do Arvoredo, foi palco para uma série de crimes. E Porto Alegre é repleta desse tipo de mistério — e de gente curiosa para saber mais sobre eles. É por isso mesmo que o Café Mal Assombrado POA está chegando.
A iniciativa da cafeteria é do músico André Hernandez Neto, 41 anos, e da cinematógrafa Martina Mombelli, 26, ambas mentes por trás do tour Porto Alegre Mal Assombrada, primeira iniciativa de turismo macabro da Capital que, desde 2019, explora, por meio de caminhadas, histórias sinistras que aconteceram na cidade.
— Temos histórias fantásticas aqui que poderiam fazer parte da história do Brasil, como a do José Ramos (suposto assassino dos crimes da Rua do Arvoredo), que poderia ser o nosso Jack, O Estripador, que, na Inglaterra, tem café, loja, cinema, vasta literatura. Tem tudo. Mas, aqui, a gente não quer olhar para a nossa sombra. Então, a minha ideia é essa com esse café: inspirar as pessoas a olharem para a sua sombra e reconhecer a luz. Eu acho que Porto Alegre respeitar o seu próprio mistério é um primeiro passo para entender a sua identidade — explica Neto.
O local escolhido para abrigar o café é um terreno com 214m² de área construída, localizado na Rua Coronel Fernando Machado, 513, no Centro Histórico, está sendo preparado para ter um soft opening ainda em setembro — para a comunidade dos arredores e para os seguidores do espaço nas redes sociais. Já a grande abertura, a oficial, deve ocorrer em outubro — provavelmente, no Halloween, que se comemora no dia 31 do próximo mês. Todo o projeto está sendo capitaneado por Neto e Martina, que estão colocando a mão na massa e no bolso.
— Queremos que fique do nosso jeito — enfatiza o músico.
Apesar de ainda estar em obras, ao se entrar na cafeteria, a sensação é de uma viagem no tempo, com diversos elementos remetendo à Era Vitoriana. Se vê móveis pesados ricos em detalhes, livros temáticos — de Drácula até obras sobre as lendas da Capital, como Maria Degolada —, velas, poltronas, vigas envelhecidas, muita madeira, lustres antigos, algumas teias de aranha — deixadas intencionalmente — e um mapa do Centro Histórico que está sendo pintado na parede, com a rota dos crimes e acontecimentos sobrenaturais que marcaram o bairro.
Mas não se preocupe, o local é bem convidativo. Até porque a intenção é trabalhar com o horror indo mais para o lado da psicologia. Ou seja, não espere ver sangue e tripas falsas pelas paredes.
— O lance é tentar entender o sentimento. E os próprios elementos de decoração que a gente está trazendo, compondo aqui, ele traz essa não obviedade, fugindo desse terror escrachado, tu vês essa dualidade nas coisas. A sensação que queremos passar é aquela de quando tu és criança e vais na casa daquela avó, daquela tia mais velha, em que tudo é meio assustador, apesar de tudo arrumadinho, sabe? — destaca Martina.
E para quem não tem apetite apenas por histórias sinistras, mas também por comida, a casa terá como foco os alimentos artesanais, dando espaço aos produtores locais, ofertando desde o café, claro, até doces e salgados — incluindo um sugestivo pão com linguiça, fazendo referência aos crimes da Rua do Arvoredo, em que a lenda conta que um casal matava as suas vítimas e seus corpos eram transformados em embutidos, que eram vendidos para a alta sociedade da Capital.
O negócio, de acordo com Neto, busca suprir a demanda do público, que sempre ao final das caminhadas sentia a necessidade de sentar e conversar sobre o que foi visto, além de compartilhar experiências, tomando um bom café. Agora, com o Café Mal Assombrado POA, espera-se ter um ponto de reunião para os apreciadores dessas lendas, como uma extensão dos passeios do tour Porto Alegre Mal Assombrada — que, por sinal, a partir da inauguração do espaço, partirão e serão finalizados ali. Antes, o começo era no Viaduto Otávio Rocha e o fim, na Igreja das Dores.
A casa
O projeto Porto Alegre Mal Assombrada começou sem querer, após Neto ter criado um evento com o nome que viria a batizar projeto no Facebook para lançar o disco de sua banda — a Lítera. Quando reuniu quase 2 mil pessoas, Martina viu ali um potencial. Foi assim que ela incentivou o sócio a aplicar o seu conhecimento sobre as lendas da Capital, que aprendeu instigado pelo seu avô, André Hernandez. E deu certo. Hoje, este é o seu principal negócio e, nos próximos dias, ganhará espaço físico em uma rua icônica para o tema.
No Café Mal Assombrado POA, também serão disponibilizados livros com as histórias locais para venda e obras do acervo de Neto para que as pessoas possam ler ali mesmo. Haverá ainda espaço reservado para as lendas da cidade, com uma linha do tempo para ajudar a entender a cronologia dos fatos, e uma galeria para artistas locais exporem as suas obras. No segundo andar, terá espaço para saraus, shows e jogos de tabuleiro. Ainda há uma área externa, um terraço e um porão, que deverão ser abertos ao público nos próximos meses.
A ideia é que todos os públicos possam frequentar o local, passando quanto tempo quiser. A experiência é o principal negócio que os sócios pretendem passar para os frequentadores — e a pretensão é grande, já que, nos passeios, pessoas de diversos Estados e de outros países, como Irlanda e Alemanha, já estiveram presentes. E a comunidade ao redor já está eufórica para ver a casa funcionando, tanto é que os vizinhos deixam plantinhas e presentes na porta do imóvel. Querem se ver ali também.
Quando se sobe no terraço, é possível ver, do outro lado da via, casas também antigas, da década de 1920, que ajudam a dar um ar ainda mais "de época" para a cafeteria. O casarão alugado por Neto e Martina pertenceu a Christina Balbão, importante artista local, mediadora pioneira do Museu de Arte do RS (Margs) e uma das primeiras mulheres a lecionar na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do RS (UFRGS). Ali, ela criou e acumulou inúmeras obras de arte. Antes dela, o local era habitado por sua mãe, Emília Helfensteller, uma chapeleira — até hoje, a vitrine em frente ao espaço é a original, onde eram expostos os chapéus.
— Com 107 anos, essa casa é uma sobrevivente. Uma casa que sempre foi arte. Em 2011, ela abrigou uma parte da Bienal. Tinha encontros literários, apresentações, teatro de sombras no porão — conta Neto.
— E tu queres ver uma coincidência? O nome que a Bienal deu para essa casa aqui foi Casa M. Esse M é bem de mal-assombrada (risos) — brinca Martina, sobre o M que, na verdade, era de Mercosul, mas a imaginação é importante para o negócio.