A história de Maria Degolada mistura o imaginário popular, lendas e crenças. Como cada um que conta aumenta um ponto, ao longo do tempo, a trágica morte em Porto Alegre ganhou diferentes versões. A "santa popular" chegou a atrair em romaria fiéis ao morro do bairro Partenon, ao pé de uma figueira. A água de uma pedreira foi vendida com promessa de poderes curativos. A figueira já caiu e as romarias acabaram. Com influência de religiosos católicos, a Degolada virou Maria da Conceição, que dá nome à vila. A comunidade mantém um local devoção, na região onde foi assassinada.
Antes de rondar o imaginário do povo, Maria foi uma mulher de carne e osso. Aos 21 anos, a jovem nascida na Alemanha foi assassinada pelo policial Bruno Soares Bicudo, chamado de Brum na Brigada Militar. Os jornais da época exploraram com sensacionalismo o episódio. Mais tarde, à Maria foram atribuídos milagres. Em 1994, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul publicou o livro Maria Degolada: mito ou verdade? (Editora EST), recuperando documentos oficiais e ajudando na compreensão do caso.
Então, vamos aos fatos. Maria Francelina Trenes (o sobrenome aparece com diferentes grafias no processo) foi degolada em 12 de novembro de 1899. O soldado usou uma faca para cortar o pescoço da jovem. No processo, ela consta como "amásia" do assassino. Ela era companheira, sem formalização da união. Os dois eram solteiros. Ele tinha 29 anos e nasceu em Uruguaiana.
Porto Alegre chegava ao final do século 19 com 70 mil habitantes. O morro em frente ao então Hospício São Pedro era uma área descampada. Naquele domingo, quatro soldados do 1° Regimento de Cavalaria da Brigada Militar e mulheres foram ao local para um piquenique. Como testemunhas do crime, estão listados no processo os três colegas do assassino: Felisbino Antero de Medina, Francisco Alves Nunes e Manoel Anténio de Vargas.
Depois do almoço com churrasco, por volta das 15h, por ciúmes, Bicudo matou Maria. O soldado confessou o crime, mas alegou que a companheira queria o agredir, primeiro com um pedaço de pau e, depois, com um ferro. Não sei se os colegas queriam proteger o réu ou falaram a verdade. O fato é que todos confirmaram a versão.
Francisco Alves Nunes relatou que a crise de ciúmes começou depois de Maria dizer que "tinha outro homem com quem pernoitar". Com a discussão acalorada, os colegas teriam retirado porrete e ferro das mãos da mulher. Como entenderam que a situação estava resolvida, foram preparar café e deixaram o casal a sós, um pouco mais distante. Quando foram chamar Bicudo para tomar o café, viram que ele matou Maria com uma faca.
Bicudo foi preso e julgado quase três meses depois, em 8 de fevereiro de 1900. Fausto Neves de Souza, Juiz de Comarca da 2° Vara, presidiu o Tribunal do Júri. Os sorteados para decidir o futuro do réu foram os jurados Adolfo Inácio da Silva, Eleutério de Castro Araújo, Fernando do Amaral Rufino, Carlos Emilio Haag e Honório Mariante. O soldado foi condenado a 30 anos de prisão com trabalho na Casa de Correção de Porto Alegre. Na Brigada Militar, acabou expulso. O documento de entrada na cadeia traz as características físicas do condenado: 1m64cm de altura, pardo, cabelos e barba pretos, sobrancelhas ralas, testa grande, olhos negros, nariz chato, boca grande e orelhas regulares.
Ele só deixaria a prisão em 1929, mas morreu muito antes. Bicudo faleceu em 16 de setembro de 1906 em consequência de nefrite intersticial, uma doença nos rins, conforme atestou o médico da Casa de Correção, Dr. João Pitta Pinheiro.
Por muito tempo, pessoas acreditaram que a "santa popular" estava enterrada junto à velha figueira do morro. Um dos tantos enganos nas lendas contadas. Ela foi sepultada no Cemitério da Santa Casa de Porto Alegre.
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