Um garoto apático, entristecido, magro e de profundas olheiras. A última imagem de Miguel dos Santos Rodrigues, sete anos, contrasta com a do menino de sorriso largo que deixou a cidade natal, Paraí, na Serra, meses antes. Na fotografia, registrada numa pousada em Imbé, no Litoral Norte, onde ele vivia, o livro sobre o colo é o único elo com aquela criança inteligente e falante, que ficou na memória das pessoas que o amavam.
Miguel deixou Paraí, onde morava com a avó materna, para viver com a mãe, Yasmin Vaz dos Santos Rodrigues, 28, e a companheira dela, Bruna Nathiele Porto da Rosa, 25. Em 29 de julho, as duas confessaram que a criança havia sido morta e teve o corpo arremessado no Rio Tramandaí. Presas há quase dois anos, elas respondem por torturar o menino, assassinar e esconder o cadáver. Os próximos passos do caso dependem de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
— A primeira fase, a instrução, que seria mais longa, durou seis meses. Agora, estamos há um ano e meio esperando a confirmação do que já foi julgado. Ou seja, a parte recursal está demorando mais que o próprio processo em si — diz o promotor André Luiz Tarouco.
Há quase um ano e meio, o juiz Gilberto Pinto Fontoura, de Tramandaí, decidiu enviar as duas a julgamento pelo Conselho de Sentença. Ou seja, sete jurados da comunidade devem decidir se elas são culpadas ou inocentes das acusações. Os advogados recorreram ao Tribunal de Justiça, que manteve a decisão inicial. A defesa moveu então recurso especial e recurso extraordinário, que passam por avaliação do TJ. O entendimento foi de que os recursos não deveriam ser admitidos. Em razão disso, a defesa buscou o STJ para tentar abrir a porta fechada pelo TJ, e conseguir que o recurso seja analisado.
No momento, aguarda análise o agravo no STJ, para admitir o recurso especial das defesas. A expectativa é de que com o retorno das atividades do STJ, na próxima semana, possa ser analisado pelo ministro Joel Ilan Paciornik. O relator pode entender que as questões suscitadas pela defesa têm fundamento e que cabe avaliar. Se isso ocorrer, o recurso sobe para o STJ e será analisado. No recurso especial, as defesas buscam, por exemplo, que seja realizada novamente a fase de instrução (audiências, depoimentos, interrogatórios), e que o juiz dê uma nova sentença definindo se elas devem ou não ir a júri.
— Estamos levantando diversos fatos jurídicos que foram inobservados e inclusive violados tanto pelo juiz de primeiro grau, como pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul — argumenta o advogado Filipe Trelles, que integra a banca de defesa de Yasmin.
Atualmente, a mãe do menino afirma ser inocente das acusações, e é essa tese que a defesa dela deverá sustentar aos jurados.
Julgamento
Caso a decisão inicial seja mantida, a expectativa tanto das defesas como Ministério Público é de que o julgamento possa ser realizado ainda neste ano.
— A comunidade quer esse julgamento. Esse caso acho que foi o pior da minha carreira. Uma criança de sete anos, de abril a julho, do que a gente sabe ainda, sofrendo todo esse tipo de violações de direito, até culminar com o homicídio. É algo muito impactante — afirma o promotor.
Um dos responsáveis pela defesa de Bruna, o advogado Ueslei Natã Dias Boeira também espera que o júri ocorra neste ano. Antes disso, a defesa buscará que a cliente tenha a prisão preventiva revogada, ou que seja encaminhada ao Instituto-Psiquiátrico Forense (IPF), para que seja mantida até o julgamento e, em caso de condenação, cumpra a pena. A madrasta chegou a ser internada no IPF, mas retornou ao Presídio Madre Pelletier.
— Pela complexidade do caso, esperamos que seja julgado ainda este ano. Em nossa análise, não há indícios de que a Bruna tenha concorrido para a morte do menino. A própria mãe assumiu, em delegacia, vamos trabalhar na tese de negativa de autoria. Mesmo na ocultação, ela apenas ajudou no trajeto da casa até o lugar onde a Yasmin teria largado o guri — argumenta.
"Sentimento de dever não cumprido", diz chefe dos bombeiros
Em 24 anos como bombeiro, o primeiro-tenente Elísio Lucrécio, 48, nunca havia precisado desistir da busca por algum desaparecido. No caso do menino Miguel, ao longo de quase 50 dias, as equipes vasculharam o rio, praias, terrenos e esgotos em busca de alguma pista sobre o corpo do menino. Mas em 14 de setembro foi preciso dar fim à operação.
— Não foi por falta de material, de equipamento, de pessoal, de empenho. Todos os meios que tínhamos e que temos disponíveis usamos. A nossa dúvida sempre foi saber se o local onde a criança foi deixada era mesmo no rio. E a nossa dúvida perdura até hoje. Acredito que tenha sido o maior tempo de busca em função de um corpo no Estado. Existe esse sentimento de dever não cumprido — lamenta o tenente, que é comandante dos bombeiros de Tramandaí.
Nas primeiras horas, ainda durante a noite, os bombeiros usaram redes para fazer buscas na área onde se suspeitava que o corpo tivesse sido arremessado. Depois, seguiram mais para dentro, vasculhando pontos com embarcações e mergulhadores. A busca teve apoio aéreo, com helicóptero e drone. Com o passar dos dias, a hipótese de que o corpo tivesse sido arrastado pela correnteza ganhou força.
Havia também a possibilidade de que o corpo aparecesse em outro Estado, por isso os bombeiros de fora do RS foram alertados. Um caso parecido havia sido registrado dois anos antes, quando um surfista desapareceu nas águas em Imbé. O corpo surgiu na praia de Iguape, no sul de São Paulo, a cerca de 700 quilômetros.
Fora da água, os bombeiros mapearam e vasculharam as áreas com terrenos baldios, valões e bueiros no perímetro entre a pousada onde vivia o menino e o Rio Tramandaí.
— É um caso que marca não só o Corpo de Bombeiros, mas a cidade. Muitos voluntários se juntaram, pescadores. Houve todo um envolvimento da comunidade, para tentar encontrar o menino e acabamos não encontrando. Todo o tipo de ocorrência que envolva criança é marcante, mexe com a gente porque somos pais, somos tios — diz o bombeiro.
Debate
O fato de o corpo do menino nunca ter sido encontrado deve ser debatido no júri, quando for realizado. De um lado, o MP sustenta que isso só comprova que as duas realmente cometeram o crime de ocultação de cadáver.
— Tem robustos e fortes elementos de prova, que demonstram a ocorrência do homicídio. Inclusive, isso reforça o próprio crime de ocultação de cadáver. A ocultação foi tão eficaz que não se pode achar o corpo — sustenta o promotor Tarouco.
Já a defesa da Bruna levanta outras possibilidades, como a participação de uma terceira pessoa.
— Se fosse realmente jogado no rio, teria sido com a mala, mas a mala foi encontrada. Não teria como não ter achado o corpo. A Bruna, em todas as versões, ela não viu a Yasmin lagar no rio. Ficou esperando duas quadras antes. Essa situação toda vamos discutir. É um processo que nos comoveu bastante, muito complexo — afirma Boeira.
"Difícil reconhecer minha filha"
Quando foi ouvida pela Justiça, a avó materna de Miguel alegou que a filha, Yasmin, era "uma mãe zelosa, carinhosa e protetora". Relatou que em junho ela lhe pediu que pegasse o neto para cuidar, pois ele queria voltar a viver com ela em Paraí, na Serra, município de 7 mil habitantes, onde o garoto nasceu e morou a maior parte da vida.
A avó alegou que não sabia que o neto estava sendo maltratado, e pediu à filha para que ingressasse com ação, cedendo-lhe a guarda de Miguel. O garoto viveu com a avó e a mãe desde o nascimento. Por cerca de dois meses, o menino morou somente com a avó, enquanto a mãe estava em Bento Gonçalves. Quando Yasmin conheceu Bruna, mudou-se para Porto Alegre e levou o filho junto por algum tempo.
Quando já estavam morando no Litoral, Miguel costumava pedir à avó para buscá-lo, pois sentia saudades. Yasmin teria dito à mãe que o filho era malcriado e fazia birras. A avó alegou que aguardava pelo processo da guarda para poder levá-lo de volta a Paraí. Ao contrário da alegação de Bruna, de que era vítima de violência, a avó do menino alegou que viu hematomas em Yasmin, e que suspeitava de que ela fosse agredida.
Após ouvir o resumo da denúncia, relatando as torturas que teriam sido sofridas pelo neto, a avó afirmou:
— Pra mim é muito difícil reconhecer minha filha.
Procurada por GZH, a avó afirmou que não pretende se manifestar à imprensa.
LINHA DO TEMPO
- Julho de 2021
No dia 29, Yasmin procura a Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento de Tramandaí para registrar o desaparecimento do filho, que, segundo ela, teria acontecido dois dias antes. Os policiais suspeitam do relato e seguem com a mãe e a madrasta, Bruna, até a pousada onde elas viviam. Lá, elas acabam confessando que a criança foi morta e teve o corpo arremessado no rio. Yasmin afirma ter agido sozinha e é presa.
- Agosto de 2021
Três dias depois de o crime ser descoberto, a madrasta é presa de forma temporária. A prisão ocorre após a polícia analisar o aparelho celular de Bruna e encontrar conteúdos, como mensagens e vídeos, que levaram à conclusão de que ela teria, no mínimo, participação nos maus-tratos ao garoto. Num dos vídeos, a mulher aparece ameaçando espancar o menino e mantendo o garoto trancado dentro de um armário. Ao longo do mês, ela é transferida para o Instituto-Psiquiátrico Forense (IPF).
O delegado Antônio Carlos Ractz Júnior encaminha à Justiça o inquérito, indiciando a mãe a madrasta do garoto pelos crimes de tortura, homicídio qualificado, por meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima, e ocultação de cadáver. Dez dias depois, o MP denuncia as duas por homicídio triplamente qualificado (acrescenta o motivo torpe), tortura e ocultação de cadáver.
- Setembro de 2021
Após 48 dias, os bombeiros do Litoral Norte encerraram no dia 14 daquele mês as buscas pelo corpo do menino Miguel. Desde que o caso foi descoberto, as equipes vinham realizando varredura em diversas cidades, em busca da criança. Ao longo da operação, os bombeiros usaram embarcações, aeronaves e um drone. No mesmo dia, o IPF divulga laudo que constata que Bruna não possui alteração em sua saúde mental.
- Novembro de 2021
No dia 8, ao longo de cinco horas, é realizada a reprodução simulada dos fatos, popularmente conhecida como reconstituição. Somente a madrasta participa da perícia e demonstra como teria acontecido o crime. Ela percorre também o trajeto entre a pousada e a beira do rio. Assim que veem Bruna irromper pela Avenida Paraguassú, moradores esbravejam repetidas vezes: "Assassina!". Nas proximidades do Rio Tramandaí, a madrasta indica o local onde Yasmin teria aberto a mala e arremessado o corpo do filho.
No dia 19, em audiência na Justiça, Bruna aponta Yasmin como a responsável pela morte de Miguel. Relata ainda que a companheira agredia o filho constantemente. Bruna diz que Miguel teria sido agredido pela mãe, deixando inclusive uma marca na parede, onde teria batido com a cabeça da criança. A madrasta relata que o menino foi dopado e teve o corpo colocado dentro da mala, após ficar horas trancado num fosso de luz e num armário. Yasmin opta por permanecer em silêncio.
- Fevereiro de 2022
O juiz Gilberto Pinto Fontoura, de Tramandaí, determina que as duas rés devem ser julgadas pelo Tribunal do Júri. Além do homicídio triplamente qualificado, a mãe e a madrasta respondem por tortura e ocultação de cadáver. Para o magistrado, há indícios de que o menino sofria “intenso sofrimento físico e mental”, por exemplo, privado de alimentação adequada e mantido preso por logos períodos em um guarda-roupa.
- Julho de 2022
Em sessão virtual realizada pela 3ª Câmara Criminal, o Tribunal de Justiça do RS nega, por unanimidade, o recurso da defesa e mantém a decisão que leva a júri Yasmin e Bruna. Na decisão, o colegiado também nega o pedido de soltura das rés. As defesas buscavam que elas não fossem submetidas ao júri e que as oitivas fossem realizadas novamente. Contra essa decisão, as defesas apresentaram recursos, que não foram admitidos pelo TJ-RS. Em razão disso, as defesas recorreram ao STJ.
Evidências
Imagens de câmeras — A polícia divulgou imagens que flagram o trajeto realizado por Yasmin e Bruna na madrugada do dia 29 de julho entre a pousada onde viviam, na Rua Sapucaia, em Imbé, e as margens do Rio Tramandaí. Uma das câmeras flagrou Yasmin transportando a mala no braço, e Bruna caminhando ao lado dela. O mesmo equipamento registrou o momento em que duas retornaram abraçadas e já sem a mala, onde estaria o corpo do menino.
Mala — A mala na qual o garoto teria sido transportado foi encontrada numa lixeira em frente a uma residência. O local foi indicado pelas próprias presas. A mala foi encaminhada para perícia, que constatou a presença de material genético compatível com o garoto.
Mensagens — Conversas entre a mãe e a madrasta, e também de Bruna com outras pessoas, são apontadas como provas de que o menino era visto como empecilho para a relação das duas. Em uma das trocas de mensagens, a madrasta se refere ao garoto como “lixo”. Para o MP, ele seria visto como um entrave para a relação motivou o crime.
Vídeos — Os vídeos foram gravados na primeira pousada onde os três moraram em Imbé, na praia de Santa Terezinha. Em um dos momentos, a madrasta ameaça espancar o garoto. Para a acusação, isso demonstra que ele era torturado, com castigos, e que ficava preso e sem comer.
Pesquisas na internet — Entre os dias 26 e 29 de julho, pesquisas foram realizadas na internet com o celular de Yasmin. Em uma delas, tenta-se descobrir se a água do mar é capaz de apagar impressões digitais. Ainda no dia 26, a pesquisa se dá sobre o que fazer quando uma criança tem alucinações. Neste momento, a acusação entende que o menino já havia sido espancado e sofria as sequelas das agressões.
Cadernos — Foram encontrados cadernos do menino, nos quais, segundo a acusação, ele era obrigado a escrever frases ofensivas. Miguel seria obrigado a copiar frases com insultos, onde escrevia "eu sou um idiota", "não mereço a mamãe que eu tenho", "eu sou ruim", "eu não presto" e "a minha mamãe é maravilhosa e eu sou péssimo".
Corrente e cadeados — A polícia apreendeu cadeados que teriam sido usados para manter o menino preso. A corrente foi encontrada no lixo do banheiro da última pousada onde elas moraram. Nela, havia material genético compatível com o de Miguel. A acusação afirma que a mãe e a madrasta tinham o hábito de acorrentar a criança, como castigo e tortura.
Fosso de luz — Os peritos recolheram um fio de cabelo dentro de uma peça atrás do box do banheiro (um fosso de luz), onde, segundo a polícia, o garoto era mantido trancado. A peça tinha cerca de um metro quadrado, era escura e fria. O cabelo pertencia a Miguel.
Camiseta com sangue — A análise do Instituto-Geral de Perícias (IGP) concluiu que havia sangue humano numa camiseta infantil, e que o DNA era compatível com o de um filho de Yasmin — Miguel era o único dela. Para a apuração, isso indica que o menino era vítima de agressões.