Em março do ano passado, centenas de disparos romperam o silêncio em Paraí, na Serra, onde habitualmente se ouve o som dos pássaros e das badaladas do sino da Igreja Matriz. Ao atacar dois bancos na área central, sete criminosos tombaram mortos pela Brigada Militar. A cena, na época, causou alvoroço no município de 7,5 mil habitantes. Fachadas de comércios foram alvejadas pelos tiros, e vidraças restaram estilhaçadas.
Desta vez, o episódio que atinge Paraí não é tão evidente, mas revirou a cidade nas últimas semanas. Desde o fim do mês passado, quem vive por ali busca respostas para um crime bárbaro ocorrido no Litoral Norte: Yasmin Vaz dos Santos Rodrigues, 26 anos, confessou à polícia ter matado o filho, Miguel dos Santos Rodrigues, sete anos. Os dois são naturais da cidade serrana. Era nela que o garoto vivia com a avó materna até o início deste ano.
Localizada a 96 quilômetros de Bento Gonçalves, e a cerca de 200 de Porto Alegre, Paraí é um município de colonização italiana. Os moradores repetem constantemente que ali “todos se conhecem”. É habitual se reunirem na praça central para conversar e tomar chimarrão.
Foi no dia 30 de julho que a notícia sobre o caso do menino se espalhou pela cidade. A primeira reação, que de certa forma perdura até hoje, foi de incredulidade.
— A cidade está abalada. Ninguém imaginava que ela pudesse fazer isso. Não consigo acreditar ainda. Ninguém acredita e nem entende — diz uma comerciante, que costuma rezar todas as noites para que o corpo do menino seja localizado e pede para não ter o nome citado.
Os moradores, em sua maioria, preferem não serem ligados ao caso. Seja por receio do vínculo com um crime bárbaro ou porque a avó do menino ainda vive ali. Ela é monitora na única escola de Ensino Fundamental do município, mesmo local onde o neto estudava. A avó, que havia pedido a guarda da criança, vem se mantendo em silêncio sobre o episódio.
Quando Miguel desapareceu, e teria sido morto, segundo a acusação, estava residindo com a mãe e a madrasta havia pouco mais de três meses. Antes disso, tinha morado com as duas na zona sul da Capital. Até fevereiro deste ano, vivia na casa da avó em Paraí. No período em que morava na cidade, Yasmin costumava frequentar com o filho um dos restaurantes na área central.
— Chegava aqui com os brinquedinhos dele. Alegre, saudável, normal. Nunca imaginava que ia fazer isso — recorda uma funcionária.
O menino cresceu no bairro São Lucas, uma área a cerca de quatro quilômetros do Centro. Por ali, os vizinhos também estão incrédulos com o caso.
— A gente não acredita que ela (Yasmin) fez isso. Meu Deus. É inacreditável. Ela pegava transporte do trabalho. A gente via, quando ela chegava, o Miguel esperava na entrada. Abraçava e beijava. Na hora de sair também. Não sei o que aconteceu — diz uma comerciante.
Outra moradora recorda do garoto andando pela cidade com a avó materna. Era uma criança esperta e ativa.
— Lembro dele aqui correndo, brincando, com aqueles cachinhos. Por ser cidade pequena, todo mundo se conhece. Por isso, que não consigo entender. A avó tinha zelo por ele. Acho que a situação do Miguel realmente mudou quando ele foi embora — diz.
Dias antes do crime, a avó contou aos vizinhos que Miguel regressaria em breve. Yasmin se mudou para Porto Alegre ao longo de 2020, após conhecer a namorada, Bruna Nathiele Porto da Rosa, 23 anos, pela internet, e levou o filho. No mês de setembro, regressou para a Serra, onde deixou a criança e, em outubro, retornou para a Capital. No fim de fevereiro, mais uma vez, buscou o menino. A uma amiga, a avó disse que, desta vez, queria obter a guarda do neto para ter controle sobre a situação.
— Queria fazer tudo certinho. Não queria que levassem (a criança) a qualquer hora. Mas não podia fazer nada porque ela é a mãe. Nunca ia imaginar que dias depois ia acontecer isso — recorda a vizinha.
A avó chegou a dar entrada no processo de pedido de guarda, junto à Defensoria Pública, no dia 8 de junho, mais de um mês antes da data considerada o dia da morte do garoto. Depois disso, nos dias 8, 13 e 28 de julho, teriam sido encaminhados documentos pela mãe do garoto.
A Defensoria ajuizou a ação em 29 de julho – mesmo dia em que Yasmin teria arremessado o corpo do filho no Rio Tramandaí, em Imbé. Neste período, o menino teria chegado a pedir à avó que não demorasse a ir buscá-lo. Mas não houve tempo para que o garoto regressasse para a cidade natal.
Para a Polícia Civil e o Ministério Público, Yasmin e Bruna decidiram se livrar de Miguel pelo fato de ele ser considerado um entrave para o relacionamento das duas. A defesa de Yasmin nega e diz que ela foi coagida para confessar a morte. Bruna detalhou o crime à polícia, mas alegou que não teve participação e que o assassinato foi cometido pela companheira.
O advogado João Augusto Ribeiro Kovalski, que representa a avó materna, informou que a cliente está muito abalada com o caso e que não irá se manifestar no momento. Em depoimento à polícia, a mãe de Yasmin disse não conseguir acreditar no fato e que a filha “sempre se mostrou uma mãe zelosa e afetiva”.
Rede de proteção
Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Paraí, Augusta Mognon recorda de Miguel por conta do trabalho na Unidade Básica de Saúde de Paraí. O menino ia a consultas regulares com a pediatra e, por vezes, acompanhava a avó em seus atendimentos.
— Esse caso do Miguel trouxe um espanto porque não tínhamos conhecimento. Por ser município pequeno, não passa nada despercebido aqui. É uma pergunta gigante: o que aconteceu? Se tivesse sido percebido algo nossa rede de proteção, ele estaria sendo acompanhado. Como presidente, posso garantir que é um município que tem rede de proteção extremamente interligada. E nunca chegou ao nosso conhecimento — afirma Augusta, que também é coordenadora de saúde mental da UBS.
Em diversos pontos de Paraí, como o portão de acesso à Escola Municipal Mateus Dal Pozzo, onde Miguel estudava, e a prefeitura, cartazes em letras garrafais alertam para o número do plantão do Conselho Tutelar. No caso do menino, no entanto, nenhuma notificação chegou a tempo.
— Um caso assim é inacreditável. Nunca se ouviu falar. Muito triste — lamenta a conselheira Ilda Lorenzet.
Na escola onde Miguel estudou, o clima também é incredulidade. O menino esteve matriculado na Mateus Dal Pozzo até 30 de abril deste ano, quando foi transferido para Imbé.
— Todo mundo se conhece. E a maioria das professoras que não trabalhavam com ele já tinha cruzado com ele. As meninas no refeitório. Foi bem difícil de acreditar. Tem alguns dos colegas que permanecem na escola e questionaram as professoras. Mas elas foram falando na linguagem deles, para que pudesse acalmar a situação — afirma a diretora, Daniela Dorigan.
A coordenadora do Conselho Tutelar de Paraí, Juliana Menegat, reconhece que, por vezes, os moradores se sentem receosos de serem expostos ao fazer a notificação de casos suspeitos. Em geral, as informações que chegam ao conselho da cidade envolvem maus-tratos, negligência familiar e abuso sexual.
— As pessoas têm medo de fazer a denúncia, para não se complicar. Buscamos reforçar que o sigilo é absoluto. Ficamos muito abaladas com esse caso do Miguel. Mas ninguém nos procurou, não temos nenhum registro. Esta semana tivemos uma reunião da rede com a Secretaria da Educação e ressaltamos a importância de observarem as crianças na escola. É na escola que o contato é diário — diz.
Em Imbé, no Litoral Norte, o Conselho Tutelar também afirma que não recebeu nenhuma informação sobre o menino até a data na qual Yasmin confessou o crime. Enquanto isso, os moradores de Paraí aguardam pelo desfecho do caso — os bombeiros do Litoral Norte continuam em buscas.
— Só espero que achem logo o corpinho dele. Ao menos ter uma despedida. A avó também espera por isso. É uma dor muito grande — diz uma vizinha da família.
Contrapontos
O que diz a defesa de Yasmin
O advogado Jean Severo, um dos que representa a mãe do menino no processo, diz que ela se declara inocente e que só apresentará a versão do que aconteceu em juízo.
— Nós obtivemos informações de que, até o fato acontecido, a Yasmin sempre foi uma boa mãe. Vai ser muito importante o que ela tem para contar no interrogatório, onde ela vai esclarecer todos os pontos — afirma.
O que diz a defesa de Bruna
GZH entrou em contato com a advogada Helena Von Wurmb, que atua em nome de Bruna, e aguarda retorno. Em manifestação anterior, a defesa havia afirmado que “quanto às provas produzidas até o presente momento fica claro que nenhuma serve a comprovar nenhum envolvimento da Bruna no homicídio do Miguel. Assim, como elas afirmam, reafirmamos, a Bruna não teve nenhum envolvimento na morte do menino”. A nota era assinada também pela advogada Fernanda Ferreira.