Quando a imagem de um menino esquálido, com olheiras profundas, sem brilho nos olhos ou nos cabelos, começou a ser divulgada, a professora Silviana Lorenzatto Nardi sentenciou para si mesma: “não é ele”. A fotografia mostrava Miguel dos Santos Rodrigues, sete anos, sentado na cama da pousada onde vivia com a mãe e a madrasta em Imbé, no Litoral Norte. Apático, entristecido, com um livro aberto sobre o colo, o garoto não se parecia em nada com a criança ativa, de sorriso largo, que havia deixado a escola em Paraí, na Serra, no início do ano.
O registro que deixou a educadora ainda mais incrédula com o desfecho do seu aluno é um dos indícios reunidos pela polícia para provar que o menino foi vítima de tortura física e psicológica, antes de ser assassinado, em um crime que chocou o Estado.
Em 29 de julho, Yasmin Vaz dos Santos Rodrigues, 26, foi presa após confessar ter espancado o filho, dopado e depois arremessado seu corpo nas águas do Rio Tramandaí. Assim como ela, a companheira Bruna Nathiele Porto da Rosa, 23, internada no Instituto Psiquiátrico Forense, também responde pelo crime na Justiça. Os bombeiros do Litoral seguem em buscas pelo corpo da criança.
A 300 quilômetros dali fica Paraí, o município de 7 mil habitantes, produtor de basalto e cercado por verdes morros, onde o garoto cresceu. Miguel nasceu no Hospital Nossa Senhora Aparecida em 25 de fevereiro de 2014 — era um bebê de 49 centímetros e 3,6 quilos. Desde então, morava com a avó materna e a mãe no bairro São Lucas, área afastada cerca de quatro quilômetros do Centro. No primeiro aniversário, o garoto de bochechas rosadas ganhou uma coroa de flores coloridas na cabeça e comemoração ao ar livre.
No residencial de moradias populares, trabalhadores se deslocam diariamente para empresas ou comércios da cidade. Como a mãe estava empregada e ficava fora o dia todo, o garoto ingressou com quatro anos no ensino integral da Escola Municipal Mateus Dal Pozzo. Chegava cedo ao colégio, antes das 7h20min. Ali, tomava café, participava de atividades, almoçava e, à tarde, frequentava várias oficinas criativas, como dança, recreação, capoeira e hora do conto.
Única escola de Ensino Fundamental do município, a Mateus Dal Pozzo carrega o nome do primeiro imigrante italiano a chegar em Paraí e atende cerca de 500 crianças. Em 2018, era ali que Miguel permanecia quase metade do dia — só ia embora ao entardecer. O prédio histórico, reformado para abrigar o colégio, tem de um lado a Igreja Matriz São Braz. Em frente, está a praça central — um espaço arborizado onde moradores costumam ir aos fins de semana para tomar chimarrão. Nela, Miguel participava das atividades com coleguinhas e eventos da escola, como a Festa da Família e a Festa Junina.
— Um menino ativo, cheio de energia, de vida, inteligente. Gostava de questionar as professoras. Interagia bem com os colegas. Aqui o que vai ficar na memória é o sorriso dele. Se olhar fotos antigas, está sempre sorrindo. Um dos motivos que deixou a gente chocada, toda a comunidade escolar e comunidade em geral, é por nunca ter imaginado — descreve a diretora Daniela Dorigan.
Alfabetização
Em 2019, Miguel deixou o ensino integral e passou a frequentar a pré-escola no turno da tarde. Naquele ano também as atividades aconteceram normalmente e nada de anormal foi percebido. Em 2020, o menino esteve no ensino presencial até o dia 19 de março, quando as aulas foram suspensas em razão da pandemia. Mesmo no pouco tempo, apegou-se à nova professora, responsável pela sua alfabetização.
— Coloquei ele sentado bem perto de mim, na frente. Perguntava, questionava, interagia. Sempre sorrindo, muito carinhoso. Várias vezes dizia “profe, eu te amo”. Era bem afetuoso. Se tivesse tido alguma coisa a gente ia perceber. Por isso parece que nada é verdade. Que a gente vai acordar — desabafa Silviana.
A partir da suspensão das aulas, o contato continuou pela internet. Mas, mesmo assim, Miguel seguia carinhoso. A professora enviava áudios, incentivando as evoluções dele, e recebia respostas agradecidas do menino. Em geral, a mãe ou a avó, que trabalha na mesma escola como monitora, buscavam as atividades presencialmente ou recebiam pelo WhatsApp. Ambas pareciam preocupadas com o ensino dele. Era pela internet também que Silviana tinha retornos em fotos e vídeos, nos quais Miguel aparecia fazendo as atividades. Mesmo a distância, o menino evoluiu das primeiras sílabas aos pequenos textos rapidamente.
— No segundo trimestre, em maio, já estava lendo a palavrinha toda. Não silabando. Já estava entendendo. Tinha consciência lógica. Conseguia ler e compreender o que estava lendo. Ele encerrou o ano muito bem, pedagogicamente. Alfabetizado, lendo, escrevendo palavras simples, com autonomia. Qualquer palavrinha de primeiro ano, ele escrevia. Queria muito aprender. E estava orgulho disso — recorda a professora.
Um dos vídeos recebidos marcou Silviana porque foi gravado de forma espontânea pelo menino. Ao receber uma atividade por escrito, Miguel pegou o celular e começou a fazer o vídeo sozinho. Ao fundo, a avó estava cozinhando, enquanto ele lia o enunciado da lição. Ele mesmo enviou a gravação e aguardou pela resposta. O último vídeo que Silviana recebeu do aluno foi em dezembro de 2020.
— Ele estava bem fisicamente, assim como no início do ano. Era um menino saudável, fofinho. Não tinha olheiras. Sempre a voz dele normal. Se a criança estivesse sofrendo ainda ano passado, ia perceber. A gente percebe na hora que está diferente o olhar, a expressão — diz a professora.
Silviana viu Miguel pessoalmente pela última vez quando ele foi à escola no ano passado buscar uma das atividades. A avó disse que ele queria encontrar a professora e abraçá-la. Apesar de a instituição seguir medidas de distanciamento, a educadora decidiu ceder ao pedido.
— Quebrei um protocolo, mas não me arrependo de ter dado aquele abraço nele — diz.
Mudança para Imbé
No início deste ano, o menino ainda frequentou um dia de aula na escola em Paraí, mas depois as atividades presenciais foram novamente suspensas. No fim de fevereiro, a criança foi levada pela mãe para a Capital e seguiu fazendo as lições à distância. No dia 30 de abril, o garoto foi transferido para a Escola Municipal Olavo Bilac, em Imbé, onde nunca chegou a ser visto pessoalmente. A mãe fez a matrícula e alegou que o filho tinha asma. Por isso, não poderia ir à escola.
Ele encerrou o ano muito bem, pedagogicamente. Alfabetizado, lendo, escrevendo palavras simples, com autonomia. Qualquer palavrinha de primeiro ano, ele escrevia. Queria muito aprender. E estava orgulho disso
SILVIANA LORENZATTO NARDI
Professora de Miguel
Na primeira pousada, onde Miguel morou três meses em Imbé, era pouco visto pelo casal de idosos que alugava o apartamento. O menino descrito por eles, no entanto, era calado, e pouco ativo. Yasmin e Bruna só permitiram que ele saísse do imóvel para pegar sol após a aposentada pedir. A mãe usava a mesma alegação, de que ele tinha asma e havia risco por conta da pandemia. Foi ali que uma foto teria sido feita do garoto na cama, magro e com olheiras.
Nesta mesma pousada, foi gravado por Bruna um vídeo com o menino trancado num guarda-roupas. Na imagem, Miguel responde a madrasta com fala arrastada, longas pausas e, por vezes, dificuldade para articular as palavras. A forma de se expressar em nada lembra o jeito do menino, alegre e falante. A aparência também era muito diferente. Miguel sempre chegava à escola cheiroso, de roupas limpas, com os cabelos cacheados volumosos.
— Me chamou atenção que ele estava com um livro na mão e sem óculos. Tudo que tenho dele de material, está de óculos. Os cabelos dele nem parece cacheados. Perdeu o brilho e até o volume. É outra criança, naquela foto, Meu Deus. Eu ainda nem acredito. A gente não quer acreditar. Não queria acreditar que era ele — diz Silviana.
Os cadernos encapados em papel azul que Miguel recebeu do município no período em que estava na escola também foram apreendidos pela polícia em Imbé. Isso porque, nas páginas que não haviam sido usadas para as atividades escolares, foram encontradas frases em letras garrafais com insultos. Segundo a investigação, o garoto era obrigado a copiar sentenças como “eu sou cruel”, “eu não mereço a mamãe que eu tenho”, “eu sou ruim”, “eu sou um idiota”. Ao longo de diversas páginas, alguém – a polícia ainda não sabe se a mãe ou a madrasta – escrevia os trechos e, ao lado, ele repetia.
Abalada ao saber do caso, a professora recorreu aos vídeos para lembrar do garoto que tinha na memória. Assistiu todas as gravações novamente para ver na sua frente outra vez o aluno de quem recorda com carinho:
— Que bom que eu fiz isso. Tenho uma recordação tão bonita dele. Ele era feliz aqui.
“Entrei em desespero“, diz vizinha que cuidou de Miguel
Em fevereiro, Miguel contou empolgado aos vizinhos do bairro São Lucas que estava prestes a completar sete anos. Animado, estava ainda mais falante do que já era. A data foi comemorada dias depois com jantar e bolo enfeitado. Miguel comia de tudo, mas adorava especialmente bolo de chocolate. É desse menino, de sorriso amplo, que adorava beijos e abraços, que os moradores recordam.
No início deste ano, como a escola estava com aulas suspensas, o garoto passou a ser cuidado por uma vizinha — a avó precisava trabalhar e mãe não estava mais na cidade. De mochilinha nas costas, Miguel ia de manhã cedo para a casa, com uma muda de roupas e o leite sem lactose. Curioso, gostava de saber qual seria o almoço. Tinha preferência por arroz branco, alface, bife de frango e feijão. Outras vezes, avisava: "hoje eu vou almoçar com a minha vovó".
— Quando soube, foi um choque. Minha irmã chegou aqui e disse: "está nas redes sociais que a Yasmin matou o Migue (como chamavam o menino)". Entrei em desespero. A gente ainda não acredita — diz a comerciante, que se emociona ao falar do menino.
Não era como estava naquelas fotos. Não tinha olheiras. Gostava de abraçar, beijar. Sempre foi carinhoso. Não dá para acreditar que é ele. A gente não tem como não se emocionar.
VIZINHA
37 anos
Muitas vezes, enquanto preparava o almoço, cedia aos pedidos do garoto e sentava no tapete da casa para brincar. Mas ele queria mesmo era se divertir na rua. Quando encontrava outras crianças, corria pelo gramado, fingindo ser um dos seus personagens preferidos. Uma das brincadeiras favoritas de Miguel era fazer de conta que tinha poderes de super-herói.
A mochila vermelha da escola, de onde pendia um chaveiro com a letra M, tinha como tema o Homem-Aranha. A vizinha, que recorda do menino com palavras carinhosas, cuidou dele até o último dia, antes de ele ser levado pela mãe durante a tarde.
— Era bem curioso, gostava de conversar. Inteligente. Se via que estava fazendo uma coisa já vinha perguntando: "tu está fazendo o quê? Posso fazer também?". Ele era um papagaio. Falava, falava. Meu Deus. Não era como estava naquelas fotos. Não tinha olheiras. Gostava de abraçar, beijar. Sempre foi carinhoso. Não dá para acreditar que é ele. A gente não tem como não se emocionar. E a avó então. Meu Deus do céu. Está muito mal — conta.
Em julho, dias antes do crime, a vizinha foi procurada novamente pela avó, que disse ter uma boa notícia. Contou que o neto voltaria logo e perguntou se ela poderia cuidar dele. A avó havia dado entrada no pedido para ter a guarda do neto. Após o crime, a avó, que optou até o momento por não se manifestar sobre o caso à imprensa, permaneceu afastada do trabalho da escola, mas recentemente retornou às atividades.
— A dor dela é enorme. E nós estamos junto com ela, compartilhando este momento tão difícil. Não tem explicação do que ela deve estar sentindo — afirma a diretora Daniela.
Alteração abrupta
Para o delegado Antônio Carlos Ractz Júnior, de Imbé, a mudança na aparência de Miguel pode ser explicada pela privação que a criança vinha sofrendo e pelas torturas físicas e psicológicas. A investigação apontou que o menino ficava sem se alimentar, permanecia trancado dentro de guarda-roupas e de um poço de luz, atrás do box do banheiro. Todo esse contexto teria levado à degradação da criança, que ainda passou a receber medicamentos sedativos nos últimos dias de vida.
— Ele mudou completamente. Tudo que apuramos até agora comprova o que demonstramos no inquérito, do que ele vinha sofrendo — diz o delegado.
O promotor André Luiz Tarouco entende que este contexto é mais uma evidência de que a morte de Miguel está relacionada ao fato de ele ser considerado empecilho para o relacionamento de Bruna e Yasmin. As duas se conheceram pela internet e estavam juntas há pouco mais de um ano. O homem que diz acreditar ser pai do garoto não registrou o menino e não tinha contato com ele. Durante a análise dos telefones de Yasmin e Bruna foram obtidas diversas imagens, que, segundo o promotor, ajudam a demonstrar a alteração na forma como Miguel era tratado.
— Dá para perceber que antes era um menino feliz. Com o passar dos anos, chegando até essa mudança para Imbé, houve essa alteração. No momento em que elas vão morar juntas e levam o menino é que vê essa mudança abrupta da forma de tratamento a ele. O menino nem sequer saía de casa. Todos os artigos de direitos de criança foram violados por elas — afirma o promotor.
Contrapontos
O que diz a defesa de Yasmin
O advogado Jean Severo, um dos responsáveis por representar a mãe do menino no processo, diz que ela se declara inocente e que só apresentará a versão do que aconteceu em juízo.
— Nós obtivemos informações de que até o fato acontecido, a Yasmin sempre foi uma boa mãe. Vai ser muito importante o que ela tem para contar no interrogatório, onde ela vai esclarecer todos os pontos — afirma.
O que diz a defesa de Bruna
GZH entrou em contato com a advogada Helena Von Wurmb, que atua em nome de Bruna, e aguarda retorno. Em manifestação anterior, a defesa havia afirmado que “quanto às provas produzidas até o presente momento fica claro que nenhuma serve a comprovar nenhum envolvimento da Bruna no homicídio do Miguel. Assim, como elas afirmam, reafirmamos, a Bruna não teve nenhum envolvimento na morte do menino”. A nota era assinada também pela advogada Fernanda Ferreira.