Ao longo de uma hora, uma mulher de 26 anos detalhou à Polícia Civil como teria espancado e dopado seu filho de sete anos antes de arremessar o corpo do menino no Rio Tramandaí, em Imbé, no Litoral Norte. O depoimento pode ter descortinado, além do crime estarrecedor, uma série de violências sofridas pela criança. A mãe está presa em flagrante, e a companheira dela, de 23 anos, tem participação e responsabilidade investigada. A prioridade no momento é localizar o corpo da criança, em buscas que são realizadas pelos bombeiros e pela Brigada Militar.
Ao entardecer de quinta-feira (29), a mãe procurou a Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) de Tramandaí e disse que o filho havia desaparecido. A mulher relatou que o menino teria sumido na terça-feira (27), mas que ela aguardou 48 horas para ir até a polícia porque havia lido isso na internet (não há prazo para registrar desaparecimento).
No local, no entanto, os policiais estranharam o relato da mulher, que estava acompanhada da companheira. A polícia decidiu ir até a casa onde ela vivia com o filho, em uma pousada na Rua Sapucaia, na área central. Algumas palavras ditas pela companheira da mulher despertaram a atenção e a desconfiança dos agentes.
— A companheira, que tem sinais de autismo, referiu o nome da criança, uma mala e o rio — afirma o delegado Antônio Carlos Ractz.
A partir disso, a mãe foi novamente ouvida e acabou confessando o crime. Em um depoimento de cerca de uma hora, detalhou ter espancado o filho entre a noite de quarta-feira e a madrugada de quinta-feira. Ela disse ainda que decidiu dar medicamento para acalmá-lo. A mulher teria pego comprimidos de fluoxetina, medicação de uso controlado que era usada pela companheira. Ela alega ter ministrado apenas meio comprimido, mas duas cartelas teriam desaparecido.
— Ela disse que bateu muito no menino, mais do que costumava, mas que não procurou atendimento médico por medo da polícia, e daí resolveu ministrar o medicamento para o filho porque a criança estava gemendo de dor — explica o delegado.
Com a criança dopada, ela teria decidido colocar o corpo dele dentro de uma mala e arremessar no rio. A mala foi localizada pelos policiais próximo do ponto onde a mulher alega ter jogado o corpo do filho. O trajeto de cerca de dois quilômetros da casa até o rio teria sido feito pelas duas mulheres por ruas desertas, durante a madrugada, o que pode dificultar a localização de imagens de câmeras de segurança para confirmar a versão.
A criança vivia sob tortura física e psicológica. Na confissão, ela narrou que castigava o filho.
ANTÔNIO CARLOS RACTZ
Delegado de Imbé
— Ela não tem certeza se a criança estava morta quando foi lançada no rio. Não tinha nenhum sentimento pela criança. Só não queria que alguém soubesse. Procurou a DPPA porque (achou que) a polícia jamais desconfiaria dela. Durante o interrogatório, afirmou que não nutria nenhum sentimento pelo filho. Um total desprezo pela criança. Pretendia entregar o filho para a mãe (a avó materna) e queria formalizar essa guarda – diz o delegado.
Além das buscas pelo corpo, que são realizadas tanto no rio, como no mar, com embarcações e um helicóptero, a investigação segue para apurar possível crime de tortura contra a criança, com base no depoimento da mãe. Já a companheira passará por análise psiquiátrica, para saber qual a sua responsabilidade no crime.
— Ela consegue se comunicar, narrou toda a situação. Pedi uma avaliação psiquiátrica dela, para ter um desfecho, até para resolver pela sua autuação ou não. A mãe foi autuada em flagrante por homicídio duplamente qualificado, ocultação de cadáver e resistência.
Violências anteriores
A família teria chegado ao Litoral Norte no início deste ano. Antes disso, residiam em Porto Alegre. Os três moravam atualmente em uma espécie de pousada, na Rua Sapucaia, na área central de Imbé. Na última terça-feira, segundo o delegado, gritos foram ouvidos por vizinhos – a proprietária do imóvel, que reside no local, nega que soubesse sequer que havia uma criança morando com elas (leia mais abaixo).
— A criança vivia sob tortura física e psicológica. Na confissão, ela narrou que castigava o filho. A prova pericial, quando localizado o corpo, deve confirmar (que a criança) estava subnutrida e que apanhou bastante da mãe. Ela tinha o hábito de deixar a criança num cômodo da casa de um metro quadrado, um poço de luz. Ficava o dia inteiro lá trancada. Ela dispunha ali de um pátio enorme, mas a criança ficava presa. Também permanecia trancada no roupeiro do quarto. Encontramos na casa dois cadeados, e ela disse que pretendia acorrentar a criança — detalha o delegado.
A mãe alegou em depoimento que se irritava com o menino porque ele se negava a comer o que ela dava, e que costumava pedir comida a outras pessoas.
— O que causa espécie é essa frieza com que narrou os fatos. Ela considerava a criança mal-educada. (Disse) Que o menino tinha intolerância a lactose e que não poderia comer certos alimentos. E isso era motivo para a criança ser castigada. A criança pedia comida para os estranhos e isso também era motivo para castigos. Essa criança não tinha atendimento médico, vivia sem ter contatos com outras crianças. Até em decorrência da pandemia, embora matriculada numa escola, não frequentava e não tinha contato. Acredito que, se tivesse aula presencial, os professores notariam o estado da criança.
Foram apreendidos dois telefones celulares, que passarão por análise e quebra de sigilo. A polícia acredita que possa localizar elementos ali que confirmem que a criança passava por tortura física e psicológica.
— Ela me narrou que, de muito tempo para cá, ela não nutria nenhum sentimento por ela. Era um estorvo para ela, inclusive para a relação com a companheira. O que revoltou ela nos últimos dias é que a criança não comia e teria urinado e evacuado nas roupas. Causou a ira dela. O que levou ela a espancar o próprio filho.
A mulher será encaminhada ao Presídio Estadual de Torres. A polícia pretende solicitar que seja realizada uma reprodução simulada dos fatos pelo Instituto-Geral de Perícias. A casa onde elas viviam passou por perícia. Vizinhos também serão ouvidos durante a investigação.
— Ela matou essa criança aos poucos, dia após dia. Infelizmente ninguém denunciou. Infelizmente, não salvamos a vida dessa criança. Ninguém viu, ninguém sabe. Vizinhos narraram que ouviram gritos nesta semana, mas ninguém denunciou nada. Na terça-feira, ouviram gritos da criança. Se tivessem denunciado, talvez o desfecho fosse outro.
Dona de imóvel diz que nunca viu criança
No fim da manhã desta sexta-feira (30), GZH esteve no local onde a mulher vivia com o filho e a companheira. A proprietária aluga os imóveis em um pequeno condomínio. A mulher, que pediu para não ser identificada, relatou que a mãe da criança residia no local desde o dia 15 de julho. Ela teria feito contato por meio da internet, pedindo para alugar uma espécie de apartamento, com um quarto, cozinha, sala e um banheiro.
Ela não tem certeza se a criança estava morta quando foi lançada no rio. Não tinha nenhum sentimento pela criança. Só não queria que alguém soubesse.
ANTÔNIO CARLOS RACTZ
Delegado de Imbé
— Ela me disse que tinha um filho, mas que ele ficaria com a mãe dela. Não sabia que ela mantinha uma criança aqui. Nunca ouvimos movimento, nem nada da criança — diz a mulher.
A Polícia Civil afirma que vizinhos relataram ter ouvido gritos do menino na última terça-feira, mas a proprietária nega que soubesse que a criança era mantida no local. Ela afirma, inclusive, ter recebido algumas roupas das duas mulheres para lavar e que não havia nenhuma peça infantil.
— Meus filhos brincam no pátio e nunca viram essa criança. Estou em choque. Nunca desconfiei de nada, nunca ouvi nada, nem grito, nem choro. Agora, as pessoas estão nos culpando, que não denunciamos. Elas estavam aqui há poucos dias. Tenho filhos e agora sei que esse menino estava aqui, tão perto. Meus filhos estão apavorados. É muito triste — diz.
Na manhã desta sexta-feira, a companheira da mãe da criança retornou ao imóvel acompanhada dos policiais. A proprietária diz que se recusou a mantê-la no local. Por isso, a mulher recolheu o gato que mantinha ali e foi embora. Ainda não há definição se ela deve ou não ser presa pelo crime.
As buscas realizadas no Rio Tramandaí, no limite entre Imbé e Tramandaí, chamam a atenção dos moradores, que estão chocados com a descoberta do crime. Rubilar Britto da Silva, 62 anos, saiu para pedalar com os dois filhos durante a manhã desta sexta, quando deparou com a movimentação dos bombeiros. Ao lado dos dois meninos, de oito e nove anos, acompanhava os trabalhos.
— É revoltante, ainda mais para quem é pai. Não dá para acreditar que uma mãe possa fazer isso, que alguém possa fazer — diz.
Com embarcações e dois helicópteros, as buscas seguem tanto no Rio Tramandaí, nas proximidades da ponte no limite entre os municípios, onde a mulher alega ter arremessado o corpo, como no mar. Há possibilidade de que, com a correnteza, o corpo tenha sido carregado para outro ponto. A procura só deve ser encerrada após a localização.
O advogado da mãe, Bruno Vasconcelos, disse que iria se manifestar somente nos autos. Ainda assim, adiantou que a defesa reforçará que ela não matou a criança e, sim, que jogou o menino no rio em um ato de desespero após a criança morrer por causas ainda não informadas.