A dona de casa Maria Fátima do Prado Franco, 57 anos, moradora de Viamão, vive o drama de não saber onde está o primogênito. O entregador Carlos Eduardo do Prado sumiu em setembro de 2019, aos 34 anos, em Porto Alegre, onde morava e trabalhava. A mãe é uma das que aposta no Banco de Perfis Genéticos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) como forma de tentar dar fim à incerteza. Com essa mesma esperança, na semana passada, durante mutirão, mais 188 familiares de pessoas desaparecidas coletaram amostra de DNA.
A última vez que a mãe teve notícias do filho foi há quase dois anos. Carlos Eduardo visitou a filha do primeiro relacionamento, com sete anos à época e, antes de ir embora, entregou para a menina um relógio de pulso. O pai disse à criança que seria uma lembrança dele.
Dias depois, enquanto trabalhava em uma pizzaria, na área central da Capital, rumou em direção à Zona Sul. A motocicleta que ele usava foi encontrada abandonada em frente a uma casa no bairro Vila Nova, com a chave na ignição – a área não fazia parte dos locais de entrega. Desde então, os familiares não conseguiram mais contato por telefone.
Titular da Delegacia de Polícia de Investigação de Pessoas Desaparecidas, a delegada Roberta Bertoldo diz que houve quebra de sigilo telefônico e bancário, colegas foram ouvidos, assim como o casal que vive na residência perto de onde foi achada a motocicleta, e se buscou entender as relações que Carlos Eduardo mantinha. Nada até agora apontou para algum crime. Nada foi achado em buscas na área de mato perto de onde estava a moto.
— O que coletamos na investigação indica para a possibilidade de suicídio, em razão dessa espécie de despedida dos familiares, como se fosse algo preparado, mas não sabemos se efetivamente aconteceu. Nesses casos, o DNA pode ser muito relevante para chegar a um desfecho — afirma a delegada.
A mãe diz que o filho era viúvo e morava sozinho no bairro Agronomia. Antes disso, chegou a residir algum tempo com ela em Viamão. Maria de Fátima, que já havia sepultado o caçula há 11 anos, vítima de um acidente de trânsito, hoje mora com outra filha.
— Já perdi um e sei como é. O meu pequeno tinha nove anos. Mas a dor da dúvida é pior do que a da perda. É uma dor insistente. Fica lá no fundo — desabafa.
A dona de casa está entre os familiares que coletaram amostra de DNA para ser inserida no Banco de Perfis Genéticos. O sistema compara os perfis de familiares e de pessoas encontradas mortas, sem identificação. Atualmente, há 511 corpos no Estado não identificados — 73 do sexo feminino e 435 do sexo masculino (em três não foi possível fazer essa distinção).
O sistema também permite cruzar dados de pessoas vivas não identificadas com o de familiares de desaparecidos, mas há somente um perfil cadastrado no Estado (no banco nacional são somente 32). A administradora do banco do IGP, Cecília Matte, explica que esse número poderia ser maior se houvesse mobilização para cadastrar pessoas que vivem nas ruas, sem identificação, por exemplo.
Enquanto aguarda uma resposta, Maria Fátima tenta distrair a netinha, que ainda tem esperanças de rever o pai. Nesta semana, desenhou em um papel ela e ele de mãos dadas e entregou à avó.
— A filhinha dele espera, sonha, pergunta. Às vezes, chora escondida. Ela tem a dor dela. Tem pessoas que me dizem que ele foi embora, porque nunca acharam corpo. Conviver com essa angústia é o pior de tudo. Só quero saber o que aconteceu com ele – diz a dona de casa, que sempre que vê um motoboy na rua fixa os olhos na tentativa de saber se não é o filho.
Em Pelotas, no sul do Estado, a advogada Saionara Gonçalves Pinto repete o mesmo gesto sempre que vê alguma jovem na rua que recorde sua sobrinha. A universitária Mirella Pinto da Mota Gomes, 18 anos, sumiu em 27 de julho de 2018, da entrada da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), onde cursava nutrição. O pai realizou, ainda em 2019, coleta de DNA para comparativo genético.
Filha de uma dentista e um montador de móveis, Mirella tinha ainda uma irmã gêmea. As duas foram deixadas na entrada da faculdade pelo pai e o sumiço foi percebido por volta do meio-dia, quando elas deveriam retornar para casa. A polícia decidiu encerrar a investigação em abril do ano seguinte, sem encontrar evidências de crime e com a suspeita de que Mirella possa ter se afogado no canal São Gonçalo. Uma testemunha relatou na época ter visto alguém cair nas águas, mas o corpo nunca foi localizado. A tia diz que a possibilidade não convence a família, que segue em busca de pistas da jovem.
— Foi feito varredura no canal e não se achou nada da Mirella. Ela tinha mochila, manta, celular, cadernos, costumava usar os calçados sem amarrar. Algo teria de ter sido encontrado. Nenhum pedaço de tecido, nem corpo, nem nada. A Mirella sempre foi muito amada e protegida por todos, agarrada com a irmã — conta Saionara.
A família até hoje mantém uma página nas redes sociais em busca de respostas. Receberam ao longo dos anos relatos de pessoas desconhecidas e também tentativas de extorsão. Tentaram, inclusive, reabrir o caso após receber informações de que ela poderia ter sido vítima de tráfico de pessoas, mas não teve sucesso.
A polícia diz que pediu quebra de sigilo telefônico, detalhou a rotina da jovem, buscou imagens de câmeras e esgotou as possibilidades, sem encontrar indicativo de crime.
— Seguimos buscando algum jeito de chegar em algum lugar, de saber onde ela está. Ninguém descansa. Se vê uma pessoa na rua, olha muitas vezes para o rosto. Onde vai, fica buscando ao redor. Isso destrói uma família. A incerteza é terrível. Ninguém merece passar por essa dor — desabafa a tia.
As mesmas incertezas vivem os irmãos Fernanda Rios, 32 anos, e Daniel Rios, 28 anos, em Porto Alegre. Na sexta-feira (18), a contadora foi até o bairro Restinga, durante o mutirão, onde coletou amostra de sangue para serem inseridas no Banco de Perfis Genéticos do IGP. É a esperança que ela tem de saber o que aconteceu com o pai, desaparecido há 10 anos. Marcos Valério Rios, natural do Rio de Janeiro, trabalhava como vigilante em uma empresa. Na época, residia com a esposa e os filhos no bairro Lomba do Pinheiro.
— Ele tinha trabalhado toda a noite, ligou para minha mãe e disse que estava indo para casa. Nunca mais voltou. Ficamos sem saber o que fazer. Esperamos que, em algum momento, coincida em alguma parte do Brasil. Depois de tanto tempo, sabemos que pode ter acontecido algo ruim. Mas gostaríamos de saber, para ter um ponto final. Já somos adultos, casados, mas sempre fica esse ponto de interrogação na nossa vida — descreve a filha.
O mutirão
Durante a semana de mutirão, que contou com apoio da Polícia Civil, além das 188 amostras obtidas nos pontos de coleta no Estado, mais 10 foram realizadas no laboratório, em Porto Alegre, num total de 198. O número ultrapassa as 158 amostras armazenadas entre 2018 e 2020 em busca de desaparecidos. Dos 11 municípios onde foi realizada a campanha, a Capital concentrou a maior parte das coletas, com 55. Os primeiros resultados podem ser conhecidos em cerca de 15 dias.
Os dados genéticos dos familiares também serão inseridos no Banco Nacional de Perfis Genéticos, para cruzamento com DNAs de restos mortais encontrados em todo o Brasil, o que aumenta as chances de identificação. No país, há pelo menos 4 mil cadastros de corpos não identificados. No RS, a cada semana os novos perfis são encaminhados automaticamente para o banco nacional, que faz varredura em busca de compatibilidade.
— A expectativa é de que consigamos identificar uma boa parte dos restos mortais que já fazem parte do banco e, assim, muitas famílias conseguirão encerrar um ciclo de angústia diária — diz a perita criminal Cecília Matte, administradora do banco no RS.
O DNA cedido por familiares nestes casos é usado somente para a busca do desaparecido, não sendo permitida a comparação, por exemplo, com vestígios de crimes. Se o corpo já tiver sido enterrado como indigente, os parentes podem buscar autorização judicial para sepultá-lo em outro lugar.
RS tem 5,2 mil registros de desaparecimentos
De janeiro a maio deste ano, 5.224 desaparecimentos foram registrados no Estado, segundo a Secretaria da Segurança Pública. No mesmo período, foram informadas 2.559 localizações. No entanto, os dados não conseguem revelar quantas pessoas efetivamente estão desparecidas. Em muitos casos, a pessoa retorna, mas isso não é comunicado à polícia. As localizações de janeiro a maio também não são, necessariamente, de sumiços que aconteceram neste ano.
Conseguir desfazer essa cortina de dados distorcidos é um dos desafios da polícia para poder focar nos casos em que realmente há alguém sumido. Na Capital, a delegacia especializada em apurar desaparecimentos realiza rotineiramente varredura nas ocorrências, para filtrar os casos. Ainda assim, há pelo menos 1.150 ocorrências em aberto de adultos desaparecidos em Porto Alegre desde 2004.
— Sabemos que muitos desses casos não representam desaparecimentos reais. Por isso, é tão importante que tão logo a pessoa retorne, a família informe a polícia, para evitar esse retrabalho e nos permitir concentrar o trabalho naqueles que precisam de maior investigação — explica a delegada Roberta Bertoldo.
Boa parte dos desaparecimentos, segundo a policial, envolvem casos de sumiços voluntários e temporários, seja pelo uso de álcool e drogas ou por desentendimentos familiares. Para localizar os desaparecidos, os policias usam diferentes métodos, que envolvem pesquisas e quebra de sigilo, entre outros.
— Buscamos saber se essa pessoa não fez carteira de habilitação, não aparece em redes sociais ou teve movimentação de recebimento de benefícios, de conta bancária, por exemplo. São formas de saber onde ela está — afirma.
Por vezes, a pessoa que consta como desaparecida, quando localizada, informa que não quer mais contato com aquele familiar e pede para que seu paradeiro não seja informado. Há também casos de problemas de saúde, onde o familiar não consegue retornar para casa, e outros que levam à descoberta de crime. Neste último, a maioria tem vínculo com tráfico de drogas.
— Há esses casos que começam como desaparecimentos, e acabam investigados como homicídio, mas, embora haja essa evidência de crime, não há localização do corpo — diz a delegada.
A polícia alerta também para o risco que alguns familiares correm ao divulgar os próprios contatos para informações sobre o desaparecido. Criminosos costumam se aproveitar nessas situações para extorquir os parentes e obter dinheiro. As famílias, já fragilizadas, acabam alvo de novos crimes. Por isso, a recomendação é evitar divulgar os telefones pessoais e optar por indicar os contatos da Polícia Civil ou da Brigada Militar.
Serviço
- Delegacia de Polícia de Investigação de Pessoas Desaparecidas
- Onde fica: 2º andar do Palácio da Polícia, na Avenida João Pessoa, nº 2050, sala 223
- Telefones: 3228-2254 e 98519-2196
- Horário: 8h30min às 12h e 13h30min às 18h, de segunda a sexta-feira
- O que faz: investiga casos de maiores de 18 anos, sumidos em Porto Alegre. O registro pode ser feito em qualquer horário nos plantões de delegacias e na Delegacia Online
Dicas
- Registre o desaparecimento na polícia assim que for percebido
- Leve uma fotografia atualizada para repassar aos policiais
- Outras informações relevantes no momento do registro são saber se a pessoa tem telefone celular e se foi levado junto, se possui redes sociais, os dados de conta bancária, se possui veículo e qual a placa, locais que costuma frequentar, pessoas com quem mantém contato (amigos, familiares), se é usuária de drogas e se houve alguma desavença que pode ter motivado o sumiço
- Comunique o desaparecimento aos amigos e conhecidos, que podem auxiliar com informações. Ao divulgar o sumiço, informe os contatos de órgãos oficiais como Polícia Civil e Brigada Militar para receber informações
- Outra orientação importante é que as famílias comuniquem a polícia não somente o desaparecimento, mas também a localização. É muito comum os policiais depararem com casos de pessoas que não estão mais desaparecidas, mas que no sistema constam como sumidas porque o registro de localização não foi feito
Colabore
Informações sobre casos de desaparecimentos podem ser repassadas à Polícia Civil por meio do telefone 0800 642 0121 ou pelo 197