O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Carlos Von Doellinger, afirmou nesta quinta-feira (6) que discorda do diagnóstico feito pelos pesquisadores sobre o impacto da flexibilização da posse e do porte de armas por decretos do presidente Jair Bolsonaro. Ele participou nesta quinta do evento de lançamento do Atlas da Violência 2019 — pesquisa elaborada pelo órgão em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Doellinger foi nomeado para o cargo por indicação do ministro da Economia, Paulo Guedes, depois de fazer parte da equipe de transição do governo Bolsonaro. Pesquisador aposentado do Ipea, ele atuou como secretário do Tesouro Nacional durante a ditadura militar e foi secretário-geral adjunto do Ministério da Fazenda no primeiro ano do governo de José Sarney, sob o comando do ex-governador do Rio de Janeiro Francisco Dornelles (PP).
Sentado ao lado do pesquisador do Ipea e coordenador do Atlas, Daniel Cerqueira, e da diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, Doellinger abriu a coletiva de imprensa fazendo discurso em defesa da posse de armas e criticando o trecho do estudo que aponta o acesso ao armamento como um fator de aumento da violência.
— Na minha posição pessoal, e aqui vou falar como cidadão, não como presidente do Ipea ou economista, mas por uma questão de princípio a mim me incomoda a impossibilidade de o cidadão ter uma arma em defesa de sua integridade física, do seu patrimônio. Acho que esse é um direito que o cidadão deve ter na minha opinião — disse von Doellinger, afirmando discordar da "forma enfática" como o estudo descreve a influência das armas de fogo nos homicídios.
Para von Doellinger, a posse de armas deve ser permitida ao "cidadão de bem, sem registro criminal". Ele afirma defender a posse, não o porte de armas:
— Isso já está muito bem regulamentado e precisa ser restringido.
As declarações provocaram constrangimento. Após sua explanação, Carlos von Doellinger deixou a mesa onde era feita a apresentação e sentou-se junto à plateia de jornalistas, na primeira fileira. Porém, deixou o local antes que os pesquisadores terminassem suas apresentações.
Diante das declarações, Cerqueira e Samira negaram interferências da direção do Ipea na elaboração da pesquisa.
— Vou ter que abrir meu coração para vocês e dizer o quanto me orgulho de trabalhar no Ipea. O Ipea hoje deu uma aula de democracia. O presidente deu sua opinião sobre um ponto do Atlas, mas em nenhum momento tentou mudar ou interferir — afirmou Cerqueira.
Cortes devem afetar o Censo
Outros órgãos técnicos do governo responsáveis por levantamento e análise de dados estiveram no centro de polêmicas nos últimos meses. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) enfrenta cortes que devem afetar a elaboração do Censo Demográfico de 2020.
Diante das restrições orçamentárias, o ministro Paulo Guedes recomendou que o órgão reduzisse o questionário aplicado:
— O Brasil é um país pobre e faz 360 perguntas. Custa muito caro e tem muita coisa do nosso ponto de vista (do governo federal) que não é tão importante.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais (Inep), responsável por elaborar avaliações e recolher dados educacionais, também foi pivô de divergências. Em seis meses de governo, o instituto já está em seu terceiro presidente. Em maio, o delegado Elmer Vicenzi deixou o cargo após tentar ter acesso a dados sigilosos de alunos.
Atlas
Durante a apresentação, Cerqueira e Samira criticaram os decretos de Jair Bolsonaro sobre armamento. Em janeiro, o governo flexibilizou a posse de armas. No começo de maio, outro decreto flexibilizou as regras para o porte de armas — permissão para que cidadãos possam transitar com armamento. As mudanças são contestadas no Supremo Tribunal Federal (STF).
Cerqueira destacou que a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003, reduziu o ritmo de crescimento das mortes violentas no país. Para ele, os decretos de Bolsonaro ampliam o risco de homicídios no país.
O Atlas da Violência mostra que as armas de fogo estão intimamente ligadas a casos de feminicídio. Com base nos dados pormenorizados dos homicídios contra mulheres, o estudo mostra que 28,5% dos assassinatos de mulheres em 2017 ocorreram dentro de casa. Segundo pesquisas internacionais, esses crimes são cometidos quase sempre por pessoas íntimas, como companheiros e familiares. Grande parte dessas mortes é provocada por armas de fogo.
Por isso, Samira diz acreditar que as mulheres serão as primeiras afetadas pelo controle menos rígido sobre as armas de fogo.
— Tem um tempo para que o mercado se adapte e as pessoas possam comprar suas armas. Isso leva algum tempo de acomodação. Muito provavelmente a gente tem dois cenários. Tem um cenário de médio e longo prazo, que é o provável aumento dos homicídios com maior difusão das armas de fogo na sociedade, mas no curto prazo diria que o impacto imediato vai ser para as mulheres em situação de violência doméstica — analisa Samira.
— A gente já constatou nos últimos cinco anos esse crescimento e isso decorre de alterações que o Estatuto do Desarmamento vinha sofrendo nos últimos anos. Ele já vinha sendo flexibilizado, o que o Bolsonaro faz é radicalizar isso — afirma a pesquisadora.