Homenageados como heróis pela população, profissionais da saúde também sucumbem à covid-19. Mais de 6,2 mil contraíram o vírus, de acordo com a Secretaria da Saúde do Estado – o número representa 10% do total de contaminados no Rio Grande do Sul.
Apenas os hospitais de Clínicas e Conceição, referências no atendimento a pacientes em Porto Alegre, tiveram, somados, 1.323 funcionários contaminados. Pouco mais de 600 permanecem afastados de suas atividades.
Conheça alguns desses profissionais que, embora não tenham escapado do vírus, conseguiram superar a adversidade.
Técnica de enfermagem curada descobre gravidez: “Um presente de Deus”
Técnica de enfermagem do Hospital Conceição, Camila da Silva Szabo deixou a UTI covid-19 às lágrimas em um sábado, 11 de abril. Alguns de seus colegas, perfilados em um corredor, batiam palmas para celebrar sua melhora após uma semana internada.
– Nunca vou encontrar palavras para agradecer o que vocês fizeram por mim. Obrigada, de coração – disse a técnica de 32 anos, ainda sobre o leito hospitalar.
Camila está entre os 806 funcionários do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) diagnosticados com covid-19 até a última quarta-feira (23). Desses, 379 seguem afastados do trabalho.
Asmática, a técnica entrou na UTI do hospital no dia 4 de abril, sentindo uma falta de ar aguda que lhe impedia de colocar os sapatos sozinha. Na unidade, passou dois dias entubada e outros cinco com um cateter nasal, isolada de sua família.
– Os dias eram muito longos. Foram os piores da minha vida – afirma Camila.
Depois de liberada da UTI, passou um final de semana sob observação em um quarto do Conceição. Tinha pouco apetite, mas se motivava a comer ao ler os bilhetes deixados pelas cozinheiras em sua bandeja. ”Estamos rezando por ti”, dizia um deles.
Camila retornou para casa assim que a equipe médica teve certeza de sua recuperação, mas ainda precisou se manter afastada do marido, o empresário Caio Augusto Poloni, 35 anos. Por uma semana, dormiram em quartos separados e usaram banheiros diferentes.
A profissional, curada da covid-19, retornaria ao trabalho em meados de junho. Uma notícia inesperada, contudo, manteve Camila afastada. Pouco mais de um mês após o fim do tratamento, descobriu que está grávida de uma menina. Pela sua segurança – e a de Valentina –, o hospital decidiu deixá-las em isolamento.
– Estava tentando há dois anos, nem acreditei quando vi aquele coraçãozinho batendo. Depois de tudo o que eu e a minha família passamos, veio esse presente de Deus – comemora.
“É assustador porque sabemos como a doença pode evoluir”, diz pediatra do Clínicas
Médico com 30 anos de experiência em UTIs pediátricas, Francisco Bruno passou cinco dias em uma situação, para ele, pouco usual dentro de uma unidade de terapia intensiva – a de paciente.
O pediatra teve os primeiros sintomas de coronavírus em um sábado, 20 de junho. Passou o final de semana em casa, abatido, mas sem desconfiar que fossem sinais de covid-19.
– Nunca achamos que será com a gente, né? Sempre pensamos que estamos protegidos, que só acontecerá com os outros – diz Francisco.
Na segunda-feira seguinte, acometido por tonturas, o médico decidiu consultar-se no Hospital de Clínicas, onde trabalha. Tinha febre de 37,5ºC e, de imediato, foi testado para a covid-19. Recebeu o resultado positivo três dias depois, em isolamento domiciliar.
– Aquilo me desnorteou. Covid, eu? Mas agora, olhando para trás, era algo bem possível.
Segundo Francisco, as manifestações da doença pioraram ao longo da semana. Sentiu falta de ar, perdeu o paladar e mediu febre superior a 38ºC. Até que, no dia 29, deu entrada na UTI do Clínicas.
Hipertenso e com sobrepeso, o médico temeu pelo pior. Pela câmera do celular, tentava espiar os valores de oxigenação e frequência cardíaca registrados pelo monitor atrás do seu leito.
– É assustador, porque temos noção de como pode evoluir a doença e do que está acontecendo ao redor – recorda.
O seu tratamento incluiu dois antibióticos (azitromicina e amoxicilina) e um cateter de alto fluxo (suporte respiratório menos invasivo do que um ventilador mecânico). Francisco curou-se do vírus e completou a recuperação em casa, sendo assistido, a distância, pelos filhos. Retomou os atendimentos no Clínicas nesta terça-feira (28).
– A cabeça e o corpo “caíram” juntos. E, agora, estão se levantando juntos, também.
“Sentia angústia de não saber o que aconteceria comigo”, conta plantonista
Há pouco mais de um mês, Jéssica Minetto Franco, 27 anos, percebeu um aperto incomum no peito e dificuldades para respirar. Desconfiou que, pelo ritmo intenso de trabalho desde a chegada da pandemia no Estado, estivesse sofrendo de uma crise de ansiedade.
Jéssica é médica da UTI do Hospital Universitário, em Canoas, e residente do segundo ano de cirurgia geral do Hospital Conceição, em Porto Alegre. Teve, nos últimos quatro meses, mais do que o dobro da quantidade habitual de plantões nas duas unidades, passando a dormir em casa, quando muito, duas noites na semana.
A desconfiança de que o mal-estar não estava relacionado ao estresse surgiu no quinto dia de sintomas, quando perdeu o olfato e o paladar. Jéssica recorreu a um laboratório particular, onde confirmou seu receio – havia contraído coronavírus.
– Atendi o primeiro caso de covid-19 em Canoas, em março, e só fui contaminada em julho. Até acho que demorou. Pensei que seria contaminada bem antes – confessa.
A médica teve sintomas leves e cumpriu quarentena em seu apartamento, tomando medicamentos apenas para alívio das dores no corpo. Acostumada a tomar conta dos outros, precisou se recolher para cuidar de si mesma.
– Sentia uma angústia de não saber o que aconteceria comigo. Será que eu ficaria bem? Será que eu desenvolveria um quadro grave da doença? Trabalho no meio de muitos pacientes. E não são só idosos ou pessoas que têm doenças. Tenho pacientes de 30 e poucos anos entubados, em estado grave – conta.
No 14º dia após o início dos sintomas, reapresentou-se para o trabalho. Por causa do afastamento de outros colegas que também foram infectados, conta que a demanda de atendimentos está ainda maior.
– Às vezes, saio de um plantão de 12 horas, abro uma rede social e me deparo com as pessoas se aglomerando. Penso: "Meu Deus, eu só queria que ficassem uma hora dentro de uma UTI". Para ver se tomam consciência.