Cirurgião no maior hospital do Canadá, em Toronto, o médico gaúcho Marcelo Cypel comanda o programa de pulmão artificial da instituição, um dos mais conceituados do mundo. Desde o início da pandemia, tem se dedicado a estudar estratégias de enfrentamento à doença e tratamento de pacientes. Hoje pela manhã, ele falou ao Gaúcha Atualidade.
Como foi o enfrentamento da pandemia no Canadá?
Aqui no Canadá, o lockdown nunca foi feito no senso estrito. Entretanto, medidas restritivas severas ocorreram entre o meio de março e final de maio e foi considerado um sucesso. Aqui só estavam abertos hospitais, farmácias e supermercados. Pessoas podiam sair na rua para exercício ou caminhar em parques, mas as áreas de uso comuns dos parques (gramados ou área de playground) estavam fechadas. A população acolheu muito bem essa ideia. As ruas estavam vazias. O que se viu foi um abatimento da curva importante. Para você ter uma ideia, a província de Ontário tem 16 milhões de habitantes e o máximo de pacientes internados em UTIs no pico foram 210. Com uma população bem menor, Porto Alegre já se tem em torno de 350. Atualmente, no meu hospital, que é o maior hospital do Canadá tem 1 paciente com covid-19. Então, medidas restritivas funcionam sim. Eu nem considero o Canadá como nota A no combate à pandemia – eu considero nota B devido algumas falhas importantes no controle da doença em asilos. Eu considero a Austrália, Nova Zelândia e Vietnã nota A. Esses países foram muito agressivos no isolamento logo no começo e com testagem maciça. A Austrália recentemente teve um outro surto em Melbourne - fechou a cidade por causa de 200 casos que tiveram em um dia e iniciaram medidas restritivas. A Espanha acreditou tanto que as medidas restritivas foram fundamentais que agora está tendo um surto no Norte e voltou com restrições severas naquela região. Alguns dizem: viu como lockdown não funciona? A Espanha fez lockdown e agora estão aumentando os casos outra vez. Verdade que eles já estão há dois meses com comércio girando, turismo aumentando. Vão ter que recuar em algumas áreas? Sim, natural. Outros países da Europa estão na mesma situação. Tenho certeza que aqui no Canadá vão surgir alguns surtos – mas temos a confiança de como agir para evitar algo descontrolado até que uma vacina ou tratamento mais efetivo esteja disponível.
Por que o lockdown é tão polêmico?
O termo lockdown se estigmatizou tanto que agora parece que só tem gente a favor ou contra. Na verdade, existe uma granularidade muito maior entre a abertura completa de um lado e as medidas restritivas extremas que não permitem a saída de casa de pessoas. Acho realmente essa uma medida que só deve ser utilizada em situações extremas como foi a situação de Nova York, Itália e Espanha por exemplo. Nesses lugares havia um fluxo tão grande de pessoas chegando aos hospitais que eles não tiveram escolha. Eu estava em contato com vários colegas nos hospitais de Nova York, já planejando a preparação do nosso hospital em Toronto, e tinham dias que eles entubavam 1 pessoa por hora 24h por dia. Na Espanha e Itália, a mesma coisa – foram atingidos de surpresa. Agora alguns dizem que essas medidas restritivas severas não funcionam – e pior – até aumentam as mortes. E justificam isso dizendo que de 3 a 4 semanas após o lockdown estava morrendo mais gente que antes do lockdown. Isso mostra uma falta de conhecimento básico da história natural dessa doença. Após a exposição ao vírus, o período de incubação (período entre o contágio e o aparecimento dos primeiros sintomas é de 2 a 14 dias). Após o início dos sintomas, a grande maioria dos pacientes que vai desenvolver doença grave, piora o quadro clinico após a primeira semana e acabam sendo internados no hospital entre 7-14 dias. Em locais que apresentam uma capacidade hospitalar adequada, como NY, por exemplo, os óbitos geralmente ocorrem semanas após a internação. Na maioria dos casos entre 4-8 semanas após a internação. Então, usando “mortes” como o desfecho da eficácia do lockdown você tem que olhar lá na frente, não três semanas após. O que você vê nessas 3-4 semanas é uma diminuição das infecções e internações hospitalares. Portanto, os hospitais tanto em Nova York como nesses países europeus começaram a lotar resultante de infecções adquiridas antes do lockdown. Obviamente, as contaminações e algumas mortes resultantes dessas contaminações continuaram a ocorrer mesmo após o fechamento. Isso ocorreu nesses locais pois, com um número enorme de pacientes internados (alguns hospitais tinham mais de mil pacientes internados com covid), os próprios hospitais passaram a ser um foco de disseminação importante da doença através dos seus funcionários. Como uma porcentagem bem alta de profissionais na área da saúde se contaminava, acabavam contaminando familiares em casa.
Economia e pandemia?
A pandemia causou danos severos na economia no mundo inteiro. Não só no Brasil. Entretanto, vejo muito aqui esse pensamento mágico que o culpado são as medidas restritivas, enquanto na verdade o maior culpado é o vírus e a inabilidade de controlar a transmissão. Com sociedade doente, economia não funciona também. A Flórida e o Texas são exemplos vivos disso. O impacto na economia não é uma curva linear. Se você fecha tudo, o impacto é severo na economia naquele período. Se está tudo aberto, os surtos são incontroláveis e o comércio acaba fechando, pessoas em massa em quarentena e leva muito mais tempo para recuperar. O ideal é achar o “Sweet Spot”, ou seja, diminuir a circulação a um ponto que surta o efeito desejado de baixar significativamente o número de infectados e ao mesmo tempo manter alguma atividade básica econômica e sanidade mental das pessoas. Na minha opinião, 40% de pessoas em casa, como ocorre em Porto Alegre nas últimas semanas é muito pouco considerando o nível de expansão da pandemia. O fator fundamental aqui é a consciência social da população em ter um objetivo unificado. Não adianta o governo restringir isso ou aquilo e ninguém respeitar. Eu tenho vários amigos empresários que estão revoltados porque, enquanto eles estão respeitando as restrições e sendo muito afetados economicamente, outros com salários garantidos parecem que estão de férias, se aglomerando. Essa é uma falta de consciência social absurda. Entendo o lado deles.
Como deve ser feita a reabertura?
A estratégia de reabertura é tão ou mais importante que a de fechamento. Primeiro, para ter reabertura tem que estar pelo menos na fase descendente da curva. Abrir quando está lá em cima com um nível de replicação alto e hospitais superlotados é um desastre. E a abertura tem que ser em fases e de forma gradual. Aqui no Canadá, a primeira fase de abertura incluiu restaurantes no sistema pague e leve. Lojas abertas somente para pegar compras efetuadas por telefone ou internet. Parques ainda abertos só para exercícios. Aí você faz isso 2-3 semanas e vê que está tudo bem e vai para a fase 2. Restaurantes agora abrem, mas mesas só nas ruas, com distanciamento (inclusive a prefeitura de Toronto fechou várias ruas para a circulação de carros para permitir que restaurantes colocassem mesas nas ruas). Lojas abertas, mas com número máximo de pessoas. Parques com áreas comuns abertas, mas com círculos pintados no chão de delimitação onde cada grupo pode ficar. As pessoas agora devem desenvolver suas “bolhas” de contatos que está limitado a 10 pessoas no máximo. Há o uso obrigatório de máscara por lei. Agora já entramos na fase 3 com praticamente tudo aberto, mas respeitando medidas de distanciamento social. Semana passada saiu uma foto bem emblemática aqui nas cataratas do Niágara, de onde partem os barcos para a travessia Canadá-EUA. O barco canadense tinha 15 pessoas e o americano cheio de gente amontoada. O que reflete bem como cada país está lidando com essa pandemia. É bem possível que ocorram outros surtos aqui no futuro, mas por enquanto vamos levando uma vida quase normal, mas de forma cuidadosa.
Ainda existe um pouco de resistência ao uso de máscara?
Essa talvez seja a atitude mais revoltante que eu vejo. Uma medida simples, sem risco e com um poder enorme. Os asiáticos já nos mostraram isso de longa data. Quem já teve na Ásia sabe que você entra num trem e tem várias pessoas de máscara. Se você está com uma coriza você já sai de máscara – isso fora de épocas de pandemia. A máscara não protege muito a pessoa que está usando. Mas protege muito para que a pessoa infectada não transmita. De novo – consciência social. Agora tem uns que falam que uso obrigatório de máscara viola os direitos individuais. Exatamente- elas estão pensando só individualmente. Acho estranho que os mesmos não questionam as leis que dizem ser proibido dirigir alcoolizado. É a mesma coisa. Máscara tem que ser lei também. No fim das contas, vai ter gente que vai dirigir bêbado assim como vai ter gente que não vai usar máscara, mas pelo menos é lei. Eventualmente, mais pessoas vão aderir. O absurdo da negação da máscara chega a tanto que esses tempos vi um texto de um médico gaúcho dizendo que não se deve usar máscara porque aumenta o gás carbônico do sangue, baixa o PH e propicia replicação do vírus. E várias pessoas acreditaram nisso. Se fosse o caso eu e outros colegas profissionais da saúde já estávamos mortos com narcose carbônica já que ficamos, algumas vezes, 12h direto com máscara.
A Suécia é um país que, no início, optou por não fechar a economia. E por isso é usada como exemplo para criticar o isolamento.
Essa é uma comparação muito inadequada. Bem, primeiramente, não podemos comparar nível sócio-cultural e densidade populacional da Suécia com os do Brasil. Mesmo com comércio aberto, o público sueco respeitou regras básicas de distanciamento e higiene. Mesmo assim, o número de mortes foi excessivo. A Suécia, quando comparada com os outros países nórdicos (população sócio culturalmente semelhante e de idade populacional semelhante) que adotaram medidas restritivas de circulação da população, tem um resultado infinitamente pior. O número de mortos na Suécia foi 5,7 mil numa população de 10 milhões. Já na Noruega foi de 255 (população 5,4 milhões), na Dinamarca 613 (população de 5,8 milhões) e Finlândia 328 (5,5 milhões). Conclusão: número de mortes de 10-15 vezes comparados aos vizinhos, com uma população duas vezes maior. Um dos argumentos para justificar essa liberdade irrestrita na circulação foi a manutenção da atividade econômica. Pois bem, a previsão de queda do PIB da Suécia é de 5,8% em comparação com 6-6,5% dos países vizinhos.
Uso da cloroquina é tema no Canadá?
Primeiramente, eu acho que não deve haver radicalismo de nenhum dos lados referente a esse assunto. Acho um absurdo quando os que defendem a cloroquina dizem que os médicos que não prescrevem estão sendo omissos e devem ser até processados. Isso chega a ser uma piada especialmente quando seis estudos randomizados nos últimos dois meses (2 prevenções, 2 precoce, 2 hospitalizados) mostram que não tem benefício. Por outro lado, acho que a autonomia do médico deve ser preservada para prescrever uma medicação desde que explique o grau de evidência para o paciente – isso é um acordo entre o médico e o paciente. Então, acho que algumas sociedades talvez tiveram uma postura muito forte nisso. De novo, sou contra o radicalismo (embora dia 15 de junho o FDA tenha suspendido a possibilidade do uso dessa droga fora de estudos clínicos). Um dos problemas que eu tenho visto, é que está faltando muita leitura. De novo, com as “Lives” e mídia social se pega o assunto já digerido e muitas vezes distorcido. Uma das críticas que os que defendem fazem é que nenhum estudo indicou medicação de uma forma precoce (nos primeiros 4 dias) como preconizam. Primeiro, que essa informação não é verdade. Um estudo espanhol e um americano-canadense utilizou de forma precoce nos primeiros quatro dias. Aí vem a crítica que nesse último estudo só 58% dos pacientes foram testados. Os outros estavam com sintomas e tiveram contato com pessoas covid, mas não testados. Enquanto isso pode ser uma crítica, isso nada mais é que a realidade da prática diária. Ou você acha que aqui no Brasil estão testando pacientes com resultados nos primeiros quatro dias de sintomas? Quase ninguém. Aí dizem que o estudo é um crime porque alguns pacientes não tomaram toda dose da medicação. Isso mostra uma falta completa do entendimento de método científico de ensaios randomizados em que pacientes são sorteados em grupos com intenção de tratamento (intention to treat). Tenho um grupo de colegas onde alguns são radicalmente pró-cloroquina. Parece até religião. Eu cheguei para eles e fiz uma proposta. Pessoal, se vocês discordam desses estudos vamos fazer um aqui nos moldes que acharem ideal. Com esses números exorbitantes de pacientes atualmente, vamos pegar e fazer um estudo randomizado exatamente usando o kit que vocês acham mais ativo. Vamos nas UPAS e cada paciente que chegar com síndrome gripal nos primeiros quatro dias vamos randomizar um grupo com cloroquina mais kit e não cloroquina. Em uma semana você consegue recrutar centenas – ou até milhares de pacientes. Em 15 dias vocês têm o resultado. Quem foi para UTI e quem não foi. A resposta que eu recebi: Não e ético não dar cloroquina para o grupo controle. Ai quando você ouve isso acaba a discussão. Aqui no Canadá a mortalidade de quem tem menos que 60 anos é 0,4%. Se você tiver 40 anos é 0.2%. Esse é o principal motivo pelo qual o médico que prescreve cloroquina acredita que ela funciona. Ela trata 100 pacientes e ninguém morre e acha que é devido a medicação enquanto, na verdade, é resultado da baixa mortalidade da doença numa população especifica. Só para terminar nesse assunto. De novo, eu não tenho nada contra quem prescreve essa medicação e vou ser o primeiro a celebrar se sair algum estudo decente positivo no futuro. A discussão da relação risco x benefício é feita diretamente com paciente. O que me preocupa mais, é que muitos desses (não todos) que prescrevem essa droga, não acreditam em máscara ou isolamento social também. Essa é a linha típica de pensamento. Aí se torna perigoso, porque o risco não e mais só para aquele paciente, mas sim para a sociedade como um todo.