- Estudo de Harvard baseado em comportamentos de outros dois vírus indicou que medidas de distanciamento social em razão do novo coronavírus talvez sejam necessárias até 2022
- Trabalho também mostra que comportamento da covid-19 pode mudar em relação a condições climáticas, com mais casos no frio, o que traz preocupação ao RS
- Desenvolvimento de vacina é crucial para estratégias de enfrentamento do coronavírus no futuro
O momento atual é de enormes incertezas, mas um grupo de pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) resolveu erguer a cabeça do meio do redemoinho para tentar enxergar o que o coronavírus nos reserva no futuro. Em estudo publicado nesta terça-feira (14) na revista científica Science, eles apontam que um dos cenários prováveis é a persistência de medidas de distanciamento social, como as que a humanidade está enfrentando agora, ao longo dos próximos dois anos.
A essência do trabalho, intitulado "Projetando a dinâmica de transmissão do sars-cov-2 durante o período pós-pandêmico", consistiu em desenhar modelos matemáticos baseados no comportamento de outros dois tipos coronavírus que costumam infectar seres humanos, provocando resfriados brandos. A partir dos dados sobre esses vírus, já conhecidos, os cientistas procuraram projetar o que pode acontecer com o novo coronavírus, do qual ainda se sabe pouco.
Os próprios autores reconhecem as limitações do estudo. Especialistas ouvidos por GaúchaZH observam que, se uma vacina eficiente for desenvolvida, os cenários desenhados pelos pesquisadores de Harvard já se alteram radicalmente.
E essa é apenas umas das variáveis. Por exemplo, ninguém sabe ainda se as pessoas infectadas ficam imunes e por quanto tempo, um fator que pode alterar drasticamente a propagação do vírus. Outras incógnitas são a taxa de transmissão e o comportamento do vírus causador da covid-19 em diferentes condições climáticas.
— É um estudo que traz mais perguntas do que respostas. Mas é importante fazer perguntas. Os profissionais e os gestores precisam ter em mente os cenários possíveis para poder trabalhar — avalia o infectologista Paulo Ernesto Gewehr, membro da Câmara Técnica de Infectologia do Conselho Regional de Medicina (Cremers) e médico do serviço de infectologia do Hospital Moinhos de Vento.
Os autores do trabalho, liderados por Marc Lipsitch, do Departamento de Epidemiologia de Harvard, ressaltam a necessidade de estudos sorológicos para obter dados essenciais sobre o novo vírus, de forma a permitir desenhar estratégias em conformidade com o desafio. Como essas informações não estão disponíveis, eles fizeram simulações levando em conta os outros tipos de coronavírus.
Concluíram que há probabilidade de ondas epidêmicas, talvez anuais e com pico no inverno. Além disso, preveem que períodos de distanciamento social rigoroso podem ser danosos se ocorrerem uma única vez e por pouco tempo — no final deles, as pessoas estariam sem imunidade e poderiam se infectar em grande número, gerando um pico epidêmico do qual o sistema de saúde não teria como dar conta.
Por esse motivo, os pesquisadores de Harvard projetam que, até 2022, podem ser necessários diferentes períodos de distanciamento social para a obtenção de um resultado mais eficaz — o chamado distanciamento intermitente.
Paulo Michel Roehe, professor de virologia do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lembra que o momento atual é atípico, marcado pela incerteza, e que muitos fatores impedem que se saiba até quando as medidas de distanciamento social serão necessárias. Se quem for infectado pelo coronavírus ficar imune, por exemplo, o processo se acelera.
— Ainda não tivemos um tempo de distanciamento para saber disso. Se tivermos sorte de desenvolver uma vacina eficaz, também mudaria tudo, poderia até erradicar o vírus. Falo em sorte porque não sabemos se a vacina vai funcionar, se vai oferecer imunidade permanente. Existem vírus, como o HIV e o da herpes simples, para os quais até hoje não temos vacina. No caso do coronavírus, a expectativa é boa. Mas enquanto a vacina não for testada, não temos como saber.
Os impactos econômicos da pandemia fazem Roehe acreditar que, em determinado momento, as atividades terão de ser retomadas, mas com a adoção de cuidados de higiene que não eram habituais.
Uma das questões abordadas no estudo publicado na Science é a possível sazonalidade do coronavírus. Não se sabe como ele se comporta em diferentes climas, mas em geral os vírus encontram menos facilidade de transmissão em ambientes quentes e ensolarados.
Isso gera uma preocupação especial para o Rio Grande do Sul, onde o inverno é mais rigoroso, na comparação com quase todos os outros Estados brasileiros. Por aqui, afirma Roehe, as medidas de isolamento podem ter de ser mais prolongadas, por causa da chegada do frio.
— O Rio Grande do Sul parece estar longe do pico. A gente espera que ele aconteça no inverno. Se for para fazer uma previsão, diria que aqui as medidas terão de se estender para além do inverno. É bem possível que o Rio Grande do Sul tenha de prolongar mais que os outros Estados — diz o professor.
Gewehr, que analisou o estudo a pedido de GaúchaZH, destaca a possibilidade de que o novo coronavírus não produza anticorpos efetivos ou duradouros, o que propiciaria novas ondas epidêmicas. Mas, por se tratar de um vírus novo, ressalta que é uma possibilidade em aberto:
— Os pesquisadores dizem que, neste momento, as medidas de distanciamento são necessárias para que o sistema de saúde se prepare para receber pacientes graves. É o que queremos agora. Mas essas pessoas isoladas não vão ter contato com o vírus, por estarem protegidas, escondidas. Na medida em que saírem do isolamento, podem se infectar, e vão ocorrer outras ondas. Teríamos casos ao longo dos próximos anos.
Gewehr considera que é fundamental, para abrir uma porta de saída das medidas de isolamento horizontal, fazer testagens maciças na população, como foram realizadas em países como Coreia do Sul. No Brasil, isso não está acontecendo, inclusive porque faltam testes no mercado. De acordo com o infectologista, se a população for testada em massa, torna-se possível identificar quem já teve covid-19, liberando gradualmente esses indíviduos para retomar atividades, a partir do pressuposto de quem teriam uma certa imunidade, ao menos temporária.
— A testagem massiva é importante para transformar o isolamento horizontal em isolamento vertical. É a forma de sair da situação atual — observa o especialista.
As conclusões do estudo
Imunidade
O organismo de quem é infectado por um vírus produz anticorpos contra esse invasor, que oferecem alguma imunidade frente a novas infecções no futuro. Uma das grandes dúvidas sobre a atual epidemia é o tamanho e a persistência da imunidade garantida pelos anticorpos. De acordo com o estudo, o aparecimento de novas ondas de covid-19 nos próximos cinco anos dependerá de forma decisiva disso — não só porque quem já se infectou não seria infectado de novo, mas porque também não infectaria outras pessoas.
De acordo com os pesquisadores, se o novo coronavírus se comportar como os coronavírus já circulantes, essa imunidade seria temporária (eles falam em um ou dois anos). Nesse caso, surtos poderiam se repetir, talvez anualmente, especialmente no inverno. Quanto menor o tempo de imunidade garantido, mais frequentes deverão ser as medidas de distanciamento social. Um outro fator a observar é se existirá uma imunidade cruzada entre o novo coronavírus e os antigos.
Taxa de reprodução
Outra questão fundamental é a taxa de reprodução do vírus, o chamado R0, que corresponde a quantas novas pessoas são infectadas em média por quem tem um vírus. Esse fator varia bastante de um vírus para outro. Segundo o estudo, os coronavírus que já circulavam tem R0 em torno de dois — ou seja, cada infectado contamina outros dois. Conforme as simulações feitas no estudo, medidas de distanciamento social — como fechamento de escolas, eventos e comércio — derrubariam o R0 em até 60%.
Sazonalidade
Segundo o trabalho, a intensidade dos surtos poderá depender do período do ano em que as infecções começarem a ocorrer e do quanto a taxa de transmissão se alterar de uma estação do ano para outra. Os dois tipos de coronavírus sobre os quais existem dados, causadores de resfriados comuns, apresentam queda de transmissibilidade em estações mais quentes. Segundo os pesquisadores, a queda é mais acentuada nos lugares mais frios e menos importante nos locais mais quentes. Há perigo de picos acentuados no inverno.
Se esse modelo se confirmar para o novo coronavírus, afirma o estudo, medidas prévias de distanciamento social seriam essenciais. No entanto, promover um único período de isolamento coletivo pode ser perigoso, porque quando esse período termina as pessoas estariam sem imunidade e poderiam favorecer um pico, principalmente se o período de liberação para atividades coincidir com a fase de outono e inverno. Os pesquisadores ressaltam, no entanto, que as simulações foram feitas basicamente com dados referentes a países de clima temperado. "A dinâmica de transmissão de doenças respiratórias em regiões tropicais poder ser muito mais complexa", observam.
Distanciamento intermitente
Os pesquisadores afirmam que estratégias de distanciamento social eficientes podem reduzir a incidência das transmissões e evitar sobrecarga nos sistemas de saúde, mas que um único período de distanciamento pode resultar em um grande pico epidêmico. Se o isolamento for realizado uma única vez e por um período relativamente curto, pode fazer mais mal do que bem — quando as pessoas voltam às ruas, estão todas suscetíveis e ocorre uma explosão de infecções.
Nesse contexto, os pesquisadores estimam que, até 2022, podem ser necessários períodos intermitentes de recolhimento das pessoas, a não ser que surja uma vacina ou que a capacidade de atendimento de pacientes graves seja aumentada substancialmente. "Não tomamos posição sobre a conveniência desses cenários, dado o ônus econômico que o distanciamento sustentado pode impor, mas observamos o fardo potencialmente catastrófico para o sistema de saúde se o distanciamento for pouco eficaz e/ou não for sustentado por tempo suficiente. O modelo deverá ser adaptado às condições locais e atualizado à medida que dados mais precisos estiverem disponíveis", afirma o artigo.