Há uma urgência incontida em Porto Alegre. No Menino Deus ainda acossado pela água, Paulo Schaeffer tenta remodelar a casa quase vazia que resistiu à segunda enchente histórica.
No Floresta ainda sem luz, Vítor Verri tenta retirar a lama acumulada sobre o estoque que escapou à enxurrada. Um mês após a inundação da cidade, cada quadra guarda um microcosmo das angústias de quem patina para retomar a vida e os negócios.
Aos 60 anos, Paulo mora no número 392 da Rua Barão do Gravataí. No pequeno trecho ocupado por seis casas e quatro edifícios, entre a Travessa Pesqueiro e a Baronesa do Gravataí, a água chegou a 1m50cm de altura. Servidor público municipal, ele era assistente administrativo no antigo Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), hoje extinto, e agora dá expediente no serviço de limpeza urbana.
— Nos primeiros dias da enchente, eu ia de bicicleta todo final de tarde até a orla ver se as bombas estavam funcionando. Aquilo era música para os meus ouvidos. Mas desativaram a casa de bombas — lamenta Paulo, vestindo a calça cor de laranja da prefeitura no meio da sala sem um único móvel.
O servidor estava trabalhando na Lomba do Pinheiro na segunda-feira, 6 de maio, quando o filho Vítor telefonou, avisando que a água se aproximava com velocidade assustadora. Paulo atravessou a cidade e mal teve tempo de desocupar a casa. Com os tornozelos submersos, subia livros, fotos e documentos para cima de um guarda-roupa, ensacava pertences e salvava o violão, enquanto o rapaz levava o gato e o cachorro de estimação. Saiu quando quase já não se ouvia os gritos de militares evacuando moradores de caminhão.
Casa resistiu às duas grandes cheias históricas
Erguida em 1929, em estilo neoclássico, e com a fachada decorada por arabescos, a casa onde Paulo vive com o filho e a ex-mulher está na família há quase 70 anos. Ainda mantém a porta original, encimada por bandeirolas de vidraças verde e branca. Na grande enchente de 1941, a água chegou a um metro. Agora mais alta e mais suja, destruiu sofá, camas e estantes, derrubou o balcão que sustentava a pia e estragou eletrodomésticos.
Há quase um mês morando na casa da namorada, Paulo está orçando os reparos internos, mas, sem um único móvel inteiro, não sabe quando poderá retornar ao lar.
— Perdi praticamente tudo, fiquei quase sem roupas, mas agora vou reconstruir minha vida — afirma.
Um olhar incrédulo
Logo adiante na mesma quadra, o chef Adriano Flores, 37 anos, fuma um cigarro no átrio do charmoso sobrado azul onde mora desde que nasceu. Escorado na porta, cuja marca de barro lhe alcança o ombro, relembra o turbilhão vivido nas últimas semanas.
Casado e com dois filhos, Adriano tirou a família de casa no sábado, 4 de maio, um dia depois de o Guaíba avançar sobre a cidade. Enquanto resgatava a sogra, em Canoas, a água vertia pelos bueiros do Menino Deus, chegando à entrada da Churrascaria Garcias, na Avenida Praia de Belas. Com a residência ainda a salvo, uniu-se aos colegas de trabalho no preparo de marmitas aos flagelados.
Na segunda-feira daquela mesma semana, ele ajudava vizinhos a retirar pertences quando percebeu a subida crescente da inundação. Adriano voltou rápido para casa, elevou alguns móveis, salvou objetos de estima pessoal, como livros e discos de vinil, e empilhou sacos de areia rente à porta. Saiu com a água no joelho.
— Fui amparado por amigos no Bom Fim, mas não tinha água nem luz, então levei a família para minha mãe, em Quintão — conta.
Adriano ficou 12 dias sem voltar para casa. Após vizinhos avisarem que a água havia baixado, limpou tudo em mutirão com amigos. Perdeu sofá, mesa, fogão. A geladeira dá sinais de sobrevivência em meio a paredes inchadas e com tinta caindo.
Dois dias após Adriano trazer de volta a mulher e os filhos, choveu em 12 horas o esperado para o mês inteiro. No meio da manhã, com a água chegando ao portão, eles embarcaram num caminhão do Exército, deixando tudo para trás novamente.
— Essa casa está na família há 63 anos. Tive de botar fora coisas que eram da minha vó. Mas a água não bateu na fotografia do meu vô nem no quadro de São Jorge. Daqui não saio nunca, então agora é começar tudo de novo — comenta.
Um feixe para iluminar
A cinco quilômetros da Barão do Gravataí, Vítor Verri esfrega com esponja as vitrinas da Street Motos, aproveitando a estreita faixa de luz que surge entre as nuvens. Sem energia elétrica desde a fatídica manhã de 3 de maio, o comerciante tenta retirar a lama incrustada na loja de acessórios para motociclistas que mantém há 24 anos na Farrapos. Um dos mais tradicionais pontos de comércio da Capital, a avenida teve dezenas de empresas afetadas pela enchente.
Aos 63 anos, Vítor ocupa 200 metros quadrados do número 985, entre a Ramiro Barcelos e a Gaspar Martins. Ele trabalhava sem sobressaltos quando o Guaíba assomava a Voluntários da Pátria e um cliente entrou procurando capas de chuva:
— Ele me disse bem assim: sou engenheiro ambiental e vou te dar um conselho. A água vai vir e tu vai perder tudo aqui. Sobe tudo o que tu puder — conta Vítor.
Desconfiado, o comerciante foi até a esquina e viu as pessoas batendo em retirada. Ao lado da mulher e dos três funcionários, começou a levar os produtos mais caros, como capacetes e jaquetas de couro, para uma área elevada dos fundos do prédio. Descrente que a água alcançaria mais de meio metro, fechou a loja e foi para casa.
Dura perda e retomada
Por três semanas, Vítor não conseguiu acessar a avenida, onde só era possível trafegar de barco. Quando finalmente subiu a cortina de ferro, as estantes estavam enferrujadas e as mercadorias mergulhadas no lodo. A geladeira boiava na despensa, ao lado de caixas de papelão com botas de R$ 1,4 mil o par. A água que não subiu no depósito dos fundos infiltrou-se pelo teto, vazando uma claraboia. Na contabilidade do alagamento, Vítor calcula prejuízo de R$ 100 mil em produtos, R$ 160 mil em faturamento e gastos de R$ 200 mil na reconstrução. Para piorar, a seguradora negou indenização e a proprietária não responde o pedido de anistiar o aluguel de maio.
— Não consigo dormir à noite e pensei em fechar as portas. Mas tenho vendido alguma coisa pela internet e sigo aqui, limpando de mangueira e com a lanterna do celular. Assim que a luz voltar, reabro em 10 dias — projeta Vítor.
Recomeço
A situação não é diferente na loja ao lado. Com a água escalando quase um metro dentro da Fechosul, o proprietário Tarcísio Morais busca ânimo para dar continuidade aos 62 anos de uma das mais tradicionais casas de fechaduras de Porto Alegre.
Tarcísio estava de férias na Itália com a família quando soube que os 600 metros quadrados da empresa haviam sido alagados. Levou quatro dias para conseguir voltar à Capital, mas não havia como entrar na empresa. O vigia contratado para fazer rondas de barco à noite desistiu do serviço após ser corrido a tiros de uma Farrapos submersa.
— É uma catástrofe. Perdi boa parte do estoque e vamos levar uns seis meses para ver o que é possível recuperar. Comprei um gerador para termos luz e tive de derrubar toda a parte de baixo das divisórias para o ar entrar e secar o chão — comenta Tarcísio.
Quando Tarcísio entrou na loja, em 20 de maio, havia uma camada de dois centímetros de lama no piso. O lodaçal foi retirado em mais de 30 galões de 70 litros cada. No pátio, uma montanha de molas aéreas encharcadas divide espaço com cadeados e trancas automobilísticas. Na frente, não há um único móvel ou peça de mostruário.
Dos 36 funcionários, cinco perderam tudo e muitos moram na Região Metropolitana, enfrentando dificuldade para se deslocar até o trabalho. Tarcísio reuniu R$ 30 mil em doações para os mais afetados e alojou três em um hotel nas redondezas. Por enquanto, as perdas totalizam R$ 4,5 milhões, dois terços em prejuízos materiais e o restante em faturamento. Sem nem sequer uma mesa para receber os clientes que tentam fazer compras mesmo com as cortinas abaixadas, o empresário acelera a reabertura negociando prazo e preço com os fornecedores.
— Meu sócio chegou a cogitar mudar de endereço, mas não podemos sair daqui, é a quadra das fechaduras de Porto Alegre. Sinto um misto de tristeza e indignação, mas não posso esmorecer. Mais de 30 pessoas dependem desse negócio. Vamos nos reerguer — diz Tarcísio, com a voz firme segurando os olhos marejados.