Vinte e cinco dias depois, os moradores de Porto Alegre puderam enfim enxergar os próprios pés no chão úmido do Centro Histórico. Após a enchente beirar os dois metros de altura em alguns prédios, transformando ruas em hidrovias de água pútrida, o Guaíba recuou, deixando pelo caminho um inventário da inundação.
Da Avenida Mauá à Rua dos Andradas, da General Portinho à Coronel Vicente, não há uma única quadra incólume ao lixo, à lama e ao odor pestilento que contamina a mais antiga zona urbana da Capital. Por onde se anda, um ruído onipresente de bombas, lava-jatos, máquinas e motores tenta devolver o asseio aos edifícios de fachadas centenárias e ao asfalto que recém volta a exibir seus tons de cinza sob o marrom do barro.
Praticamente não há comércio funcionando na descida da Borges de Medeiros em direção ao Mercado Público. Quem mantém as portas abertas busca escoar mercadorias que viraram entulhos. No McDonalds, funcionários limpam os balcões enlameados. Na Panvel, fraldas, medicamentos e itens de higiene formam uma camada disforme sobre o piso escorregadio enquanto um funcionário veste máscara lamentando perda total.
Quando o Guaíba avançou sobre o Centro, na manhã de 3 de maio, a correnteza escalou os nove degraus da escadaria do Banco Brasil, diante da Praça Montevidéo. Quando desceu, nesta terça-feira (28), deixou sem viço as folhagens que circundam o chafariz, acobreadas pela sujeira. Numa zombaria da inundação, duas correntes segurando placas de entrada proibida resistiam logo abaixo da marca d’água que circundava as paredes da prefeitura.
— É a terceira vez que eu venho aqui limpar e vai precisar de mais uma quarta — desabafa do outro lado da rua o comerciante Jorge Fernando Araújo dos Santos, tentando reabrir a Banca São Jorge, há 60 anos na família e cujo estoque foi destruído pela água revolta.
Logo adiante, na feira do Terminal Parobé, as caixas plásticas que antes expunham frutas e verduras são agora um mostruário da imundície. Virando a esquina, a Júlio de Castilhos virou lixão a céu aberto. Há entulhos nas calçadas, dejetos orgânicos nas sarjetas, pequenos comerciantes jogando fora o que apodreceu e moradores de rua recolhendo o que ainda tem serventia. Na entrada dos prédios, zeladores afastam sacos de areia arrebentados na vã tentativa de conter a enxurrada.
Tentando caminhar em meio às mercadorias espalhadas pelo chão da loja inaugurada há dois anos, Célia e Júlio César Trindade embargam a voz ao comentar o cenário de destruição. Após 15 anos em Canoas, eles transferiram o negócio para Porto Alegre na esperança de incrementar o faturamento.
Abandonaram o local com a água na cintura, na sequência tiveram de sair de casa na Rua Doutor Flores e até então não haviam retornado para contabilizar os estragos. Quando enfim subiram a cortina de ferro, a água acumulada dentro da loja fez despedaçar a porta de vidro.
— Perdemos tudo. Todos os produtos estão encharcados, sujos de barro — lamenta Célia.
Quase não há tráfego nem conversa nas ruas antes tomadas de burburinho e congestionamento. Caminhões esperam a mobília depenada que chega de retroescavadeira e mãos ágeis protegidas por luvas manejam rodos e mangueiras.
Há um olhar de inconformismo em quem trabalha e de espanto em quem observa. No Terminal Uruguai transformado em pocilga pelo acúmulo de lama, um idoso lamenta não poder pagar a conta de luz no escritório da CEEE, fechado há quase um mês. Na Estação Mercado do Trensurb, um casal fotografa a piscina que se formou nas escadarias que levam aos trilhos.
Por todo lado, há servidores do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) estafados, bicicletas do Itaú deformadas e uma camada de barro encruada nas superfícies. Apesar do recuo do Guaíba, ainda há bolsões de água suja, como na Vigário José Inácio, próximo à Mauá, e na Siqueira Campos, entre a Caldas Júnior e a João Manoel.
Aos poucos, num ritmo lento e penoso, a vida começa a voltar ao normal no Centro Histórico. Tem água nas torneiras, luz na maior parte das residências e esperança de dias melhores movendo o ânimo dos moradores.