Irmanados pela proximidade geográfica e pelo culto à vida noturna e boa mesa, dois dos mais tradicionais bairros da Capital sucumbiram à fúria da enchente que varreu Porto Alegre. Pelas esquinas onde se bebia cerveja com o desprendimento dos boêmios na Cidade Baixa e passeava com a serenidade dos idosos no Menino Deus, agora há refugiados esparramados pelas calçadas, tendas distribuindo remédio contra leptospirose e uma profusão de barcos trazendo gente que jamais imaginou ver a água subindo pelas paredes do apartamento.
— Ah, o asfalto. Tô há quatro dias sem ver o asfalto — suspira o eletricista Rafael Oliveira, ao colocar os pés sobre o pavimento da Avenida José de Alencar, por volta das 13h desta terça-feira (7).
Rafael recém havia descido do bote no qual voluntários haviam resgatado seus pais Julieta, 86 anos, e Fábio, 93. Há meio século morando no bairro, ele passou os últimos dias vendo uma lâmina barrenta se aproximar. Cogitou sair quando a calçada ainda estava seca, mas cedeu ao apelo do pai para que ficassem em casa, cuidando da mãe, que padece de Alzheimer e há dois meses sofreu um acidente vascular cerebral.
Quando Rafael viu que a entrada do prédio já estava alagada, restou esperar pelo socorro náutico que percorre as ruas do bairro. Pelas hidrovias da região mais baixa do Menino Deus, o resgate surge de barco, moto aquática ou caminhão, mas qualquer coisa que flutue também pode ser tábua de salvação.
Uma quadra adiante, o engenheiro agrônomo Walter Frederico, 49 anos, esperava por transporte até algum hospital. Sentado no chão, ele recém havia sido retirado de casa em uma lancha, mas havia mergulhado na água suja o pé esquerdo, onde tem uma ferida aberta em função de osteomielite crônica. Mesmo com um saco plástico cobrindo parte da perna, ele temia por contaminação.
— Moro no terceiro andar e achei que a água ia descer. Fica como lição para sair antes da próxima vez — resigna-se Frederico.
Embora boa parte do bairro ainda estivesse incólume a força da enxurrada, sobretudo nas travessas mais elevadas da José de Alencar, o Menino Deus alagadiço em nada lembrava a homenagem musicada de Caetano Veloso. Não havia água nas torneiras nem energia nas tomadas e um jacaré foi avistado nadando sem pudor pelas imediações da Getúlio Vargas. Nas tendas montadas para acolher desabrigados, uma algaravia de voluntários clamava por coolers, coletes, água e remos. Na falta de barcos, pessoas eram resgatadas em pás de retroescavadeiras.
Tentando controlar a angústia alheia, a administradora de condomínios Mônica Rispoli reuniu no salão de festas os derradeiros habitantes do Residencial Torre de Vincennes, na Rua Ribeiro Cancela. Ela começou a evacuar o prédio na sexta-feira (3), quando a água chegou na Avenida Praia de Belas. Na terça, restavam 15 adultos, cinco idosos, quatro cachorros e seis gatos, todos sem ter para onde ir.
— A inundação já chegou a quatro metros, alagando a garagem. Nesse momento, o importante é estar unido — salienta Mônica, caminhando com água quase pela cintura na Rua Itororó, enquanto retornava para coordenar um almoço coletivo.
Se em muitos pontos era praticamente impossível se deslocar pelas vias que aproximam o Menino Deus da Cidade Baixa, o altruísmo se irradiava pelo ar. Quem deixava de caiaque uma Baronesa do Gravataí submersa, recebia em terra firme um picolé doado pela Eskimó Sorvetes, da Lima e Silva, situada três quadras acima. Nessa zona alagadiça onde os bairros se confundem, a solidariedade unia vizinhos desconhecidos.
Morando em Porto Alegre há quatro meses, o analista de sistemas roraimense Felipe Agner, 36 anos, abrigou em casa a auxiliar de enfermagem uruguaia Rosa Beltrame, 72 anos. Socorrida por bombeiros quando a água chegou perto do segundo andar do prédio onde mora, Rosa ficou vagando pela José do Patrocínio em sua scooter elétrica até ser reconhecida por um amigo. Também desalojado, ela não podia abrigá-la, mas pediu amparo a Agner.
Desde segunda-feira (6), eles dividem o apartamento na Rua Luiz Afonso com a mãe e um sobrinho de Felipe, que não conseguem voltar para Boa Vista, em Roraima. Na porta de casa, no alto da escadaria e na entrada do edifício, sacos de areia tentam conter a água que teima em se aproximar pela José do Patrocínio.
— Só consegui pegar uma bolsa com roupas e remédios. Sorte que os bombeiros pegaram minha scooter, pois tenho enfisema pulmonar e essa cadeira são minhas pernas — afirma Rosa.
Perto dali, o músico Rafael Rodrigues e a farmacêutica Márcia Leite surgiam de uma Rua da República submersa segurando nos braços dois gatos. Como muitos moradores da região, eles resistiam a sair de casa, mas se assustaram quando uma corrente de lama chegou ao Pão dos Pobres, a pouco mais de uma quadra do condomínio onde mora.
— Decidi sair quando vi que a água não ia recuar. Dos 20 apartamentos do prédio, só um segue ocupado — relata Rodrigues.
Na manhã calorenta que sucedeu a inundação, havia também efervescência diferente espalhada pela Cidade Baixa. Enquanto comerciantes tentavam vedar as frestas das cortinas de ferro com espuma expansiva e caminhonetes chegavam com garrafas de água, moradores discutiam buscando culpados para a enxurrada e famílias inteiras arrastando bagagens assomavam nas paradas de ônibus. Mas não havia ônibus transitando pelas ruas alagadas, apenas barcos e motos náuticas procurando por náufragos de edifícios.