Nos 495 quilômetros quadrados da capital gaúcha, há lugares onde cada centímetro de chão importa. GZH visitou cinco pontos nos quais o espaço precisa ser usado com sabedoria, criatividade e um bom humor inversamente proporcional à área ocupada. Confira esses exemplos de uma Porto Alegre minimalista.
Na Cidade Baixa, a casa mais estreita da Capital
São necessários dois passos para ir de uma parede a outra da casa que a manicure Aline Marchese, 18 anos, divide com o namorado Ervandil de Souza Medeiros, 30, na Cidade Baixa. São 2m04cm de largura na cozinha e 1m94cm na sala. Nem sofá coube ali: duas cadeiras de praia apontam em direção à TV, alguns palmos à frente.
Considerado o mais estreito da Capital, o imóvel na Rua Lopo Gonçalves ficou famoso ao integrar o Guia de Arquitetura ArqPOA, com o apelido de Casa Mínima. Os arquitetos Rodrigo Poltosi e Vlademir Roman justificam que a inclusão não se deu exclusivamente pela curiosidade, mas também porque a casa ajuda a contar a história do urbanismo dessa região.
A via começou a surgir em 1883, quando os herdeiros de Lopo Gonçalves Bastos doaram à Câmara Municipal um terreno entre a Várzea (onde hoje fica a Redenção) e a Rua da Margem (atual João Alfredo). Seguindo o modelo colonial português, foi feito o parcelamento do solo em lotes estreitos com 30, 25 e 20 palmos de largura, ou reles 4m40cm no total. Um desses terrenos menores, de 20 palmos, foi novamente subdividido, e assim nasceu a Casa Mínima, segundo o Guia.
Vindos do Interior, Aline e Ervandil não sabiam de nada disso quando alugaram o imóvel direto com o proprietário. Escolheram-no em razão da localização: fica perto do Tudo Pelo Social, restaurante em que ele é garçom. Não estranharam a largura de cara, mas logo repararam que precisariam ser muito comedidos ao mobiliar.
— A gente começou a acomodar nossas coisas e vimos que não dava para colocar mais nada. Não dá para ter duas bicis, por exemplo. Receber visita também é complicado — diz Aline.
Porto Alegre ano 250
Porto Alegre completou 249 anos em 26 de março de 2021. Para o Grupo RBS, a data também marcou o início da contagem regressiva para os 250 anos, que são completados agora no fim do mês. Assim, têm sido publicados mensalmente em Zero Hora e GZH, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, conteúdos que abordam aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de a identidade porto-alegrense. As reportagens tratam da Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos lançam um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratam o presente e projetam o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
Outra dor da manicure é não ter espaço para cachorros. Por ora, ela se contenta sendo mãe de outra espécie de pet, mais apropriada ao tamanho do imóvel: acomodou cinco hamsters em duas gaiolas coloridas na sala de estar.
Em vez de alugar uma coisa quadrada, a gente preferiu uma coisa comprida
TÂNIA MAIA
Auxiliar de limpeza
Mas o lar de Aline e Ervandil tem todos os cômodos que se espera de uma casa. O imóvel é basicamente um corredor de quase 20 metros de extensão que se inicia com um hall de entrada decorado com três retratos do casal e vai dando lugar à sala, depois a quarto, cozinha, área de serviço e banheiro. No andar de cima, há um apartamento do mesmo tamanho, só que em ordem inversa, começando pela cozinha. Ali mora a auxiliar de limpeza Tânia Maia, 52 anos, com um filho.
— Em vez de alugar uma coisa quadrada, a gente preferiu uma coisa comprida — diz ela.
Tânia está ali há um mês, mas já pensa em se mudar. Sonha com uma casinha que até pode ser pequenina, mas que seja própria.
A minipraça do bairro Petrópolis
Em poucos minutos de ócio, dá para contar tudo o que há na Praça Doutor Leônidas Xausa. São 13 árvores, um poste de luz, dois bancos, uma lixeira — só o poste, na verdade, a cesta foi arrancada. Para atravessá-la, são 15 passos.
A Leônidas Xausa é a menor praça urbanizada de Porto Alegre, segundo a prefeitura. Com 220 metros quadrados, fica na Avenida Iguassu, perto do cruzamento com a Guaporé, no bairro Petrópolis. O nome homenageia um jurista, político e professor, como destaca a placa azul fixada em uma estrutura de concreto branca.
Não tem muito movimento ao redor da praça, ela é cercada quase que só por edifícios pequenos. O que sobra são carros estacionados ao redor — essa é a maior serventia do logradouro, segundo um morador.
Por ironia ou não, os bancos são bem menores do que o comum. Cabe apenas uma pessoa bem acomodada. Se forem se sentar duas, as coxas provavelmente vão ficar se encostando. O mobiliário é mais estreito, também. O instalador de internet Cleberson Tavares, 47 anos, estranhou que precisou tirar a mochila das costas para conseguir usar o banco.
Já pensei em convidar as crianças para vir aqui, mas elas não querem. Porque não tem nada, realmente, nessa grande praça
MATILDE GONÇALVES
Babá
Cleberson foi a única pessoa que a reportagem viu utilizar a praça durante a tarde em que o local foi visitado. Sentou-se por uns cinco minutos para mandar mensagens no celular, levantou-se e foi embora.
Um pouco entediados, repórter e fotógrafo convidaram a babá Matilde Gonçalves, 39, que passeava com o shitsu Pipoca do outro lado da rua, para conhecer a praça e nos fazer companhia. Ela conta que trabalha ali perto, mas nunca a havia frequentado.
— Já pensei em convidar as crianças para vir aqui, mas elas não querem. Porque não tem nada, realmente, nessa grande praça — diz, rindo.
A barbearia-cubículo do Centro Histórico
Pedro da Rocha Junior, 27 anos, serve dois copos de Coca-Cola no balcão da barbearia e tenta sair de ré, devagar. Ainda assim, leva uma cotovelada de um dos barbeiros e derrama parte do refri.
Ninguém dá bola para a expressão dramática do homem, que fica imóvel enquanto o líquido pinga no chão. Afinal, é ele o locador da sala de 1m40cm de profundidade por 2m55cm de largura na Rua Vigário José Inácio, quase esquina com a Salgado Filho. Sabe que a Dilermando Barber Shop tem lugar para dois clientes, dois barbeiros e só.
O lugar é tão minúsculo que não dá para baixar o portão durante o atendimento. Os profissionais se movimentam ao redor das cadeiras, uns passos dentro, uns passos fora da loja. A fila ganha forma é na calçada mesmo.
A barbearia pertence a Tiago Luz, 16 anos. Ele viu potencial para o cubículo inspirado nos negócios anteriores do local — ali já funcionaram uma lojinha de conserto de celular e uma carrocinha de cachorro-quente.
— É um bom ponto por ser perto da Salgado, tem bastante movimento, e não achei nenhum barbeiro perto — conta o jovem. — O único ruim é o frio. Quando bate o vento, bá… É frio.
Tiago é filho de cabeleireira, mas aprendeu o ofício vendo vídeos no YouTube. A descrição nas redes sociais promete um cabelo "na régua". O corte degradê é o mais pedido por ali: é aquele com o cabelo cheio no topo da cabeça, laterais raspadas, diminuindo levemente o comprimento dos fios até a altura das orelhas.
O único ruim é o frio. Quando bate o vento, bá… É frio
TIAGO LUZ
Proprietário da barbearia
Tiago e o ajudante Lucas Ferraz, 22, também fazem barba, sobrancelhas e até pintura na minibarbearia. As madeixas do próprio barbeiro foram descoloridas ali.
Por mais cliente que chegue, Tiago não tem pressa de buscar um ponto maior. A única mudança que promete fazer é se livrar do tapete preto em relevo deitado logo abaixo do degrau da loja. Garante que não tem apego pela peça — tão única quanto asquerosa:
— É um tapete de cabelo. Foi grudando sozinho, não dá mais para desgrudar. Tem que trocar, está feio.
A Pizzinha ficou ainda menor
Conhecida pelo parco espaço físico, a Pizzinha foi reaberta há um mês em um ponto ainda menor da Cidade Baixa. A tradicional minipizzaria trocou os 50 metros quadrados do número 461 da Rua José do Patrocínio, onde funcionou até fevereiro do ano passado, pelos 30 metros quadrados do número 998, perto da Praça Garibaldi.
Essa metragem inclui a cozinha, o balcão de atendimento e o espaço para os clientes. A área é coerente com o tamanho do produto vendido, que tem 15 centímetros de diâmetro.
— Desde o nome, é no diminuitivo — destaca a proprietária, Giordana Costa Borckhardt, 39 anos.
A empresária conta que estava para assinar o aluguel de outro imóvel na região, mas desistiu no último minuto porque "era grande demais".
— Não era o que eu queria, eu prefiro que seja pequeno. Não quero precisar contratar garçom, não quero me envolver com mesa — argumenta.
Aberta em 1998, a Pizzinha é um dos xodós do bairro boêmio. Pai e filho, Sérgio e César Borckhardt decidiram fechar as portas do local no ano passado por causa da pandemia. Quem reabriu em novo ponto foi a ex-mulher de César. Ele ficou responsável pela telentrega.
Não quero precisar contratar garçom, não quero me envolver com mesa
GIORDANA COSTA BORCKHARDT
Proprietária da Pizzinha
O cliente que vai até a nova Pizzinha pede seu lanche no balcão — são 33 sabores — e espera algo em torno de cinco minutos (sem fila) para o pizzaiolo Deivid dos Santos montar e assar em forno elétrico. Ele entrega por uma pequena janela na parede, que liga a cozinha à área de atendimento. Quando não leva para casa, o freguês come a pizzinha em pé, ao lado do balcão ou na calçada.
Ainda falta fazer algumas coisas para deixar o espaço como Giordana quer. Ela está orçando uma bancada e algumas cadeiras para deixar os clientes mais confortáveis. Também quer botar um letreiro com o nome da marca na fachada. Esse sim, grande, contrariando a tradição da Pizzinha.
A rua que nem os vizinhos veem
A menor rua de Porto Alegre mede 23 metros de comprimento. A via fica no meio do bairro Farrapos, na Vila Tecnológica, e ninguém parece notar sua existência: não há placa a identificando nem os moradores que a enxergam pela janela de casa sabem seu nome.
Chama-se Rua Edson Luiz Souto, e foi batizada por lei em 2003. Embora tenha um erro de grafia (o certo é Luis, com "s"), homenageia um estudante de 18 anos morto por policiais militares na ditadura. O menino pobre, do Pará, foi assassinado no centro do Rio de Janeiro, marcando um ano turbulento de mobilizações contra o regime militar, antes do Ato Institucional Nº 5 (AI-5).
O desconhecimento é justificável porque a rua não é endereço de imóvel algum: a casa e o minimercado que a cercam têm entrada pela Rua Diógenes Arruda Câmara. E porque é tão pequena que dá para atravessá-la a pé em 15 segundos.
Em uma ponta da via, há a Praça Cilon Cunha Brum, com playground, campinho de futebol e até uma churrasqueira improvisada por moradores. Na outra, um foco irregular de lixo, com a vista da Arena do Grêmio logo acima no horizonte.
Em outras vilas, só querem brigar, incomodar os vizinhos. Aqui é muito bom
GILMAR PLATE
Dono de minimercado
Dono do minimercado na esquina há 12 anos, Gilmar Plate não sabia do título de menor rua da cidade — de acordo com levantamento da prefeitura de Porto Alegre — e era um dos que juravam que ela sequer tinha nome. O comerciante gosta muito do ponto, principalmente porque ali "ninguém incomoda ninguém".
— Em outras vilas, só querem brigar, incomodar os vizinhos. Aqui é muito bom — diz ele.
Seu Plate não imaginava receber a reportagem de GZH no seu mercadinho, ainda mais para falar dessa rua. Conta que só viu repórter aparecer em dias de alagamento. A Edson Luiz Souto é uma das que ficam debaixo d'água quando chove na região.