Médicas, professoras, líderes comunitárias, moradoras engajadas, integrantes de famílias ricas e até as chamadas "donas" estão presentes nas placas de ruas de Porto Alegre. Ainda que não exista um levantamento preciso de quantas vias públicas levam nomes de mulheres, a quantidade é pequena em comparação com os homens que são homenageados.
— Os nomes de mulheres em ruas de Porto Alegre nunca foram objeto de um levantamento exato. Na sociedade, a presença feminina era bem menor que a masculina até pouco tempo. Hoje está invertida essa relação. Para nossa felicidade, viu-se que há mulheres no mundo — afirma o historiador e jornalista Sérgio da Costa Franco.
Para o estudioso, não houve um número significativo de homenagens desse tipo às mulheres nos quase 250 anos da cidade. Os reconhecimentos começaram mais no século 19, quando personalidades femininas passaram a se destacar em profissões liberais.
A primeira mulher a ser nome de rua
Luciana de Abreu foi a primeira mulher a ser escolhida como nome de rua em Porto Alegre. A informação é de Adeli Sell, professor de Literatura e autor do livro Certas Ruas de Porto Alegre. Nas placas instaladas no bairro Moinhos de Vento, Luciana é descrita como a “pioneira na luta pela emancipação da mulher no Rio Grande do Sul”.
— Ela teve uma importância na cidade. Uma pessoa muito encantadora, professora exímia, foi criada em uma família importante. Faleceu jovem e era uma grande poeta na época — descreve Sell.
Professora e escritora, Luciana Maria de Abreu nasceu na Capital, em 1847. Ainda bebê, foi colocada na “roda dos enjeitados” da Santa Casa e acabou sendo adotada por um casal formado por um guarda-livros e uma dona de casa. Descrita pela professora e historiadora Regina Portella Schneider como uma mulher de grande inteligência e leitora voraz, Luciana fez a formação para se tornar professora primária na Escola Normal, que abriu em 1869. Formou-se na segunda turma de diplomados:
— Ela tornou-se professora pública. Ao mesmo tempo, abriu uma escola particular, que era considerada a melhor escola para meninas de Porto Alegre. As famílias mais abastadas procuravam a escola da Luciana de Abreu.
Conhecida por tratar bem a todos e ser muito benquista na sociedade, Luciana foi integrante do chamado Partenon Literário, uma associação que se iniciou em Porto Alegre, em 1868, e que durou até a década de 1880. O grupo promovia saraus e atividades culturais, tendo como integrantes outros nomes da literatura que também batizaram ruas, como Múcio Teixeira, Carlos von Koseritz e Eudoro Berlink. Como sócia e já formada normalista, Luciana foi convidada, em 1873, para dar sua primeira palestra no Partenon Literário, manifestação que era chamada de preleção na época.
— Ela pronunciou as palavras que as mulheres todas de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul tinham esperado desde sempre para ouvir. Falou das condições das mulheres, que na maioria quase absoluta eram analfabetas no Rio Grande do Sul. As mulheres eram consideradas seres inferiores, de pouca inteligência. Ela começou a denunciar a situação — salienta a professora Regina.
Porto Alegre ano 250
Porto Alegre completou 249 anos em 26 de março de 2021 ainda sob impacto da pandemia do coronavírus. Para o Grupo RBS, a data também marcou o início da contagem regressiva para os 250 anos, que serão completados em 2022. Assim, mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
De acordo com a historiadora, a fala foi revolucionária para o período, já que as figuras femininas tinham papéis secundários e eram destinadas ao casamento. Embora bem vestidas, as mulheres só conversavam entre si ou com as escravas. Durante visitas a uma casa, por exemplo, não interagiam com os homens. A Escola Normal foi o que trouxe ao horizonte feminino a chance de ter uma profissão e mais formação intelectual. Luciana criticava essa realidade, enfatizando que os conteúdos mais difíceis ensinados aos homens nas escolas eram substituídos por bordados e cuidados com a casa no currículo das meninas.
— Teve uma repercussão extraordinária na sociedade de Porto Alegre o que ela falou. Naquela época, era um tabu, era aceito que as mulheres eram inferiores e ela foi a primeira que falou. Por isso, foi considerada a pioneira do feminismo no Rio Grande do Sul. Foi ela quem primeiro defendeu a posição da mulher e dos direitos dela na sociedade — comenta Regina Schneider.
Luciana morreu de tuberculose pouco antes de completar 33 anos. Foi casada e teve dois filhos. Defensora da abolição da escravatura, a normalista queria que os cursos superiores também fossem abertos às mulheres. O discurso abriu portas para Rita Lobato, que também é nome de rua na Capital.
A primeira médica a se formar no Brasil
Nascida aos sete meses de gestação, em Rio Grande, no dia 7 de junho de 1866, Rita Lobato Velho Lopes foi a primeira médica a se formar no Brasil. Iniciou os estudos no Rio de Janeiro, mas concluiu a diplomação na Escola de Medicina da Bahia, terminando o curso de seis anos em quatro, em 1887.
— Na segunda metade do século 19, algumas mulheres começaram a tentar cursar a faculdade de Medicina. Era algo inacessível, tinha que ter muita força de vontade, normalmente algum parente para ajudar. Muitas brigaram com a família e se tornaram médicas. Não era profissão de mulher — explica o professor Adeli Sell.
O escritor ainda salienta um dado que contextualiza a falta de espaço para as mulheres. De 180 ruas dedicadas a médicos em Porto Alegre, apenas nove são doutoras e, dessas, três são ruas sem saída.
— No início dos cursos superiores não havia matrícula de nenhuma mulher. Eram só os homens que se matriculavam nas escolas de Medicina, de Direito e de Engenharias, que foram as primeiras. Aqui em Porto Alegre, não havia mulheres. Não era costume, nenhuma se atreveria a isso — ressalta a professora Regina Schneider.
A historiadora lembra que ainda era a época do Império e se faziam exames preparatórios para ingressar nas faculdades. Não havia vestibular como hoje. Antes de o Ensino Superior chegar ao Brasil, os membros das famílias mais ricas estudavam na Europa. Foi apenas no final do século 19 que começaram a surgir os primeiros cursos no Brasil.
A coragem de Rita exigiu persistência para enfrentar represálias e seguir até o final do curso. Segundo os autores Genaro e Nicolau Laitanos, que escreveram Médicos que Denominam Ruas em Porto Alegre, o pai de Rita, Francisco Lobato Lopes, viajou para a Bahia e esperava a filha em frente à faculdade para retornar em segurança para casa.
Rita Lobato não foi apenas pioneira nos estudos de Medicina. De acordo com o livro Logradouros Públicos em Porto Alegre: presença feminina na denominação, organizado pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre, a médica ainda foi a primeira vereadora do Estado, atuando em Rio Pardo. Conforme a publicação, a doutora também morou em Porto Alegre e Pelotas. Morreu aos 87 anos, em 6 de janeiro de 1954, em Rio Pardo.
A lei que escolheu o nome de Rita Lobato para um dos logradouros do bairro Praia de Belas é de 14 de julho de 1967. A pequena rua liga a Avenida Praia de Belas à Rua General Sérgio de Oliveira.
As ruas das "donas": Laura Mostardeiro
Os porto-alegrenses estão acostumados com nomes de ruas que começam com “Dona”. São 63, segundo o vereador João Carlos Nedel, parlamentar que denominou aproximadamente 700 logradouros na cidade.
— As mulheres com nomes de ruas só aparecem numerosas quando grandes proprietárias de terrenos urbanos, sempre reverentemente tratadas como "dona": Dona Gioconda, Dona Veva, Dona Gabriela — observa o historiador Sérgio da Costa Franco.
Uma das mais conhecidas, a Rua Dona Laura fica no bairro Rio Branco, ligando a Rua Dr. Miguel Tostes e a Rua Coronel Bordini. A denominação faz referência a Laura Mostardeiro, esposa de Antônio José Mostardeiro. Laura doou terras para municipalizar a região do bairro Moinhos de Vento. Conforme o professor Adeli Sell, Laura era amante de poesia e foi quem pediu os nomes da Avenida Goethe e ruas Schiller, Cabral e Casemiro de Abreu.
A filha que mora na rua com o nome da mãe
O nome da rua onde vive a aposentada Janete de Abreu, 55 anos, traz boas recordações. A casa dela fica na Rua Paulina de Abreu, no bairro Mário Quintana. A homenagem foi proposta por ela mesma ao vereador João Carlos Nedel para destacar o trabalho de sua mãe e de outras mulheres pela comunidade.
— Moro aqui desde o começo da vila. Fomos removidos para a Chácara da Fumaça em 1986 e até agora estou aqui — conta Janete, comentando que a família foi uma das fundadoras da vila.
A exemplo da mãe, a líder comunitária se engajou para auxiliar os vizinhos e ainda faz alguns trabalhos voluntários, mesmo estando aposentada por invalidez.
— Minha mãe era uma pessoa do bem, que ajudava a comunidade. Dava catequese para as crianças, fazia partos. Muitas crianças vieram pelas mãos dela. Acho que herdei dela tudo isso, adoro fazer o bem para os outros.
Paulina de Abreu morreu no dia 14 de abril de 1991, aos 61 anos, após sofrer uma parada cardíaca. Ela deixou Janete e mais quatro filhos.