Não é exagero afirmar que o Mercado Público de Porto Alegre passou por uma das semanas mais inusitadas desde a sua fundação, em 1869.
Ela se encerrou, nesta sexta-feira (30) com uma transmissão online de cinco pessoas mascaradas em torno de uma mesa na secretaria da Fazenda da prefeitura de Porto Alegre. Ali eram protocoladas as propostas de dois interessados em gerir o mercado pelos próximos 25 anos, em um formato de concessão de uso. Entre as obrigações em troca, se comprometem a investir cerca de R$ 85 milhões em reformas no espaço.
As propostas, no entanto, não puderam ser abertas. Tudo o que se sabe sobre elas é o nome dos interessados: um consórcio de nome Novo Mercado de Porto Alegre e a empresa DLS Paseo Empreendimentos.
— Para efeitos comparativos, a do Mercado Municipal Paulistano, que foi aberta há cerca de um mês, teve três interessados. Para projetos dessa envergadura, ter dois interessados já é muito bom, pois garante um bom nível de concorrência — declara um otimista Thiago Ribeiro, secretário de Parcerias Estratégicas, um dos mascarados presentes na reunião.
Porém, os envelopes permaneceram fechados por força do Tribunal de Contas do Estado, que no domingo passado (26), em medida cautelar, pediu a suspensão da concessão por entender que haveria a necessidade de uma autorização por lei municipal. Enquanto a prefeitura recorre, questionando o entrave, uma nova ação se avizinha. Dessa vez do Ministério Público pedindo, em ação civil pública, a anulação completa da concessão. A Justiça ainda não se manifestou.
Enquanto isso, o Mercado Público está sem circulação de pessoas em razão da covid-19 desde 7 de julho, o que causou revolta nos permissionários, que acumulam prejuízos e se dizem sabotados pela prefeitura, por impor ao espaço restrições mais rígidas do que a qualquer supermercado privado. Nessa semana, comemoram as últimas ações dos órgãos de controle, por entenderem que o processo de concessão vem sendo tocado a toque de caixa e às escuras, em meio à pandemia. Temem que, em um futuro próximo sob administração da iniciativa privada, o Mercado acabe descaracterizado e se torne apenas mais um supermercado ou um shopping center envolto em arquitetura neoclássica no Centro Histórico.
O receio de que um patrimônio histórico da cidade seja descaracterizado – ou “gourmetizado” – pela exploração da iniciativa privada não é exclusivo de Porto Alegre. Tampouco os problemas atuais de falta de investimento do poder público, que, no Mercado na capital gaúcha, tem como emblema um andar prestes a completar sete anos fechado.
Mas há também boas soluções e insights de outros lugares do Brasil. Eles passam, sobretudo, pela compreensão de que o apelo dos mercadões brasileiros mudou com o passar dos séculos. Quem compreendeu a mudança, saiu na frente.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Explicação na História
Para ajudar a explicar porque tantos mercados públicos sofrem para se tornar negócios saudáveis sob a administração pública, Thiago Grego, sócio diretor da Houer, empresa que presta consultoria para concessões, propõe um resgate histórico.
Os mercados espalhados pelas capitais brasileiras nasceram entre os séculos 17 e início do século 20 como conexões entre campo e cidade: locais para facilitar a venda de alimentos a quem migrava para as metrópoles. Os comerciantes desses espaços pagavam valores menores para trabalhar ali, a fim de que seus produtos pudessem se manter acessíveis e alimentar o maior número de gente possível.
– Com o tempo, outros centros passaram a fazer essa distribuição de forma mais eficiente e o abastecimento alimentício da cidade deixou de necessitar de uma política pública. Restaram os mercados no colo das prefeituras, que até hoje se debatem sobre o que fazer com eles – avalia Grego.
Porém, a união de prédios históricos com um comércio diversificado do que há de mais exótico e representativo de cada local, fez dos mercados pontos turísticos. Mais do que isso: refúgios urbanos a serem experimentados pela própria população. E reside aí a salvação deles.
Privatizado antes de ser tendência
A concessão de mercados à iniciativa privada, aos moldes que a prefeitura de Porto Alegre deseja implementar, é algo relativamente novo no Brasil. Mas quem liga para o Mercado Central de Belo Horizonte ouve uma mensagem de espera curiosa: “Mercado de Belo Horizonte, privatizado desde 1964”.
A história é curiosa: em 1959, o mercado mineiro sofreu um incêndio, e a administração municipal permitiu que os comerciantes trabalhassem de forma improvisada. O local seria deles se topassem reconstruí-lo em cinco anos. Quando o prazo estava prestes a se extinguir sem sinal algum de tijolos, o prefeito anunciou que venderia o terreno. Em duas semanas, os comerciantes arrumaram parceiros para erguer o prédio, gerido por eles até hoje.
Mesmo sem a imponência dos outros tantos prédios históricos mineiros, o Mercado vale pelo conteúdo: são mais de 400 lojas onde se encontra desde iguarias locais como queijo, cachaça doce de leite até animais engaiolados (seguidamente alvo de polêmicas). E sobra algo que em Porto Alegre faz falta:
— Sempre me chamou a atenção a falta de jovens no nosso Mercado Público. Sem eles, não se renova o público. Seja administrado pela prefeitura ou por uma concessionária, o Mercado deveria ser o farol de todo potencial de experiências do Centro Histórico — observa Ângela Baldino, ex-secretária de Turismo da gestão José Fogaça (2005-2007) e integrante do PoA Inquieta, uma das institucionais que discute inovações no turismo na cidade no Pacto Alegre.
No Mercado de Belo Horizonte, além da adesão da boemia, chama a atenção a quantidade de iniciativas de integração à cidade, como visitas guiadas de escola e projetos como o Cozinha Escola, em que empresas de lacticínios promovem cursos nas dependências do mercado com ingredientes locais.
Equilíbrio de vocações é o desafio
Em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal Fluminense, Ricardo Ferreira Lopes estudou espaços públicos de sociabilidade. Se viu diante do papel dos mercados públicos nas metrópoles.
Ironicamente, estudou um espaço que herdou a vocação de um mercado após a perda de um deles: a Cobal do Humaitá, centro de distribuição de alimentos no Rio de Janeiro que se tornou ponto de comércio e boemia após a demolição do Mercado Municipal da Praça XV, em 1956, até hoje considerada um dos maiores pecados urbanísticos da história nacional.
— Se você tem pouco tempo em uma cidade, aconselha-se sempre ir ao mercado. Não porque é um ponto turístico, mas quase pelo oposto. Porque é uma representação do que é interessante daquele povo. Manter isso é o grande desafio dessas concessões.
O pesquisador alerta que muitas vezes as concessões partem de uma máxima perigosa para o patrimônio histórico:
— Boa parte das pessoas vai dizer que preferem “gourmetizar” um espaço, mesmo que ele perca esse charme, do que manter uma estrutura precária. Então é o poder público que precisa se preocupar em não descaracterizá-la. Em proporcionar as duas coisas: uma experiência típica em um espaço adequado — opina Lopes.
Se a concessão for adiante, Porto Alegre estará na dianteira de um processo recém implementado também em outros patrimônios culturais emblemáticos como o Mercado Central Paulistano, cuja concessão por 25 anos teve envelopes abertos no último dia 2, com uma outorga mais de 200% superior à pedida pela prefeitura.
Em Belém, o histórico Mercado de São Brás, inaugurado em 1910, iniciou o processo de concessão à iniciativa privada em novembro passado.
Será interessante comparar o espaço, em alguns anos, com o ainda mais emblemático Mercado Ver-o-Peso, de 1625. Ali, na maior feira livre da América Latina, desde 2016 a prefeitura tenta dar início a uma reforma com recursos públicos sem sucesso.