Assim que aglomeração virou palavrão, o agito deu lugar a um silêncio carregado de dúvidas na Cidade Baixa. Quando e como o principal reduto boêmio de Porto Alegre voltará depende ainda do curso do contágio por coronavírus, mas já se sabe que os frequentadores não vão encontrar o bairro igual ao que deixaram.
Ao menos quatro bares anunciaram o fechamento durante a pandemia e outros tantos não sabem se vão ter condições de abrir as portas novamente. Membros da Associação de Comerciantes da Cidade Baixa não estão muito otimistas. Alguns acreditam que até um terço dos estabelecimentos podem acabar fechando em definitivo.
— Imagina a situação de um empresário que paga R$ 6 mil por mês no ponto, tem 10 funcionários, como fica em pé? Eu acho que em torno de 30% dos estabelecimentos não vão abrir mais — estima Eli Stürmer, um dos diretores da associação.
O fechamento do Charlie Pub, na Rua General Lima e Silva, foi um dos primeiros a ser noticiado. Em maio, os proprietários do Charlie Brownie relataram nas redes sociais que os problemas enfrentados começaram antes mesmo da pandemia, "com a falta de diálogo entre moradores, empreendedores e poder público", e que mesmo com a possibilidade de delivery, foram obrigados a descontinuar a unidade da Cidade Baixa em razão das perdas.
A proprietária do Cósmica Bar também já estava enfrentando dificuldades antes da covid-19 chegar à cidade. O que a pandemia fez foi antecipar a decisão de fechar o bar na Rua Lopo Gonçalves.
— Foi principalmente em razão da crise e porque, como eu toco o lugar sozinha, começou a ficar bem complicado. Claro que a gente sempre espera que algo bom aconteça, mas, no final do ano passado, quando veio a história do coronavírus na China, já senti algo ruim — relata a proprietária Natália Lescano, que noticiou o fechamento ainda em março, no começo da pandemia.
Nesta quarta-feira (15), faz um mês que Marcus Scalco anunciou a decisão de encerrar as atividades do Bar de Cervejas Especiais Infiel, que manteve por seis anos no Nova Olaria. A telentrega não foi suficiente para manter o negócio. "Cada cliente que comprou algo durante a quarentena fez uma diferença enorme, mas somados todos esforços e vendas não superamos as contas que se acumulam mensalmente, mesmo que reduzidas ao máximo. Mais do que lágrimas temos um agradecimento especial para todos vocês, mas a obrigação de aceitar essa derrota", escreveu Marcus na página do bar no Facebook.
"Passei de empreendedor a desempregado"
Por telefone, Marcus ressaltou que, como a maior parte dos pequenos negócios, seu fluxo de caixa era muito apertado: costumavam trabalhar uma semana para pagar as contas da semana seguinte.
— A gente tentou linha de crédito em bancos e, mesmo se regularizando como os bancos pediram, não conseguimos acesso. Fechar o bar foi a forma de fazer parar de aumentar o buraco — conta, acrescentando:
— Claro que não foi uma decisão fácil, até porque era minha única fonte de renda. Passei de empreendedor a desempregado.
Outro bar que os frequentadores não vão encontrar quando voltarem à Cidade Baixa é o London Pub, na Rua José do Patrocínio. Pelo menos por enquanto.
O proprietário, Toni Missel, precisou desocupar o ponto porque o dono vendeu o imóvel, mas o objetivo é reabrir o negócio depois que a pandemia acabar. Ele ainda não sabe, porém, quando e nem onde. Alguns frequentadores têm sugerido outros bairros, como o Bom Fim, mas a decisão não foi tomada ainda.
— A gente só vai voltar quando as coisas estiverem resolvidas, com vacina. Vamos dar esse tempo para estudar bem as possibilidades — afirma Toni, acrescentando que a casa segue presente nos aplicativos de entrega de comida.
Reformas na pandemia
Quem tinha na bebida o carro-chefe têm dificuldade de se adaptar à telentrega. O Dirty Old Man até tentou vender coquetéis por meio desse modelo, montando combos com ingredientes para que o cliente finalizasse seu drink em casa, mas passa longe de resolver os problemas do bar.
O sócio-proprietário Leônidas Rübenich relata que o "grande baque" foi a sequência de demissões e rescisões — de 15 funcionários, agora há quatro — e há dificuldade de renegociar o aluguel. Enquanto isso, as dívidas aumentam.
— Estamos no limite. Os próximos dias vão ser decisivos para saber se vamos ou não pra lista de bares que fecharam, infelizmente — conta.
Ele acredita que os negócios que sobreviverem vão precisar mudar o modelo de operação após a pandemia, mantendo o mínimo de custos possível.
Guilherme Carlin, sócio do Espaço Cultural 512, também sabe que os negócios vão precisar se readaptar. Ele deve apostar em shows mais intimistas no momento em que for autorizada a reabertura — acredita que, ou por decreto, ou por receio dos clientes mesmo, haverá uma redução considerável do público. Está pensando em uma experiência com música ao vivo e jantar nas mesas, em um primeiro momento, em vez dos shows com gente em pé se aglomerando na frente da banda.
E enquanto a casa não pode abrir, o 512 aproveita para realizar obras do projeto de prevenção contra incêndio, junto com adequações pós-pandemia. Além de alterações na entrada e na saída, está sendo trocado o assoalho. O bar que havia no meio do estabelecimento vai para um canto, mais perto da cozinha. Isso vai gerar mais espaço de salão — que vai proporcionar também mais espaço entre as mesas, essencial durante a pandemia.
Se antes havia álcool-gel só no caixa, a clientela deve encontrar dispensers ao longo da casa inteira.
— A gente sabe que alguns hábitos vão ficar depois da pandemia, a questão da higiene é um deles — opina Carlin.
As últimas a voltar
Além dos bares, a Cidade Baixa tem grande concentração de casas noturnas e de shows, que devem ser um dos últimos modelos com autorização para abrir. Boa parte teve que demitir os funcionários e tentar o possível na negociação do valor dos aluguéis — uma das principais dificuldades relatadas por empresários do setor, uma vez que não há perspectiva de quando poderão voltar a ter alguma receita.
Eduardo Ribeiro, gerente de operação do Margot, relata que, inicialmente, havia uma esperança de abrir até setembro — o que não vai acontecer:
— Agora a gente nem sabe se volta neste ano.
Assim como Eduardo, Lucas Lucena, gerente do Nuvem, assegura que não há planos de fechar o negócio.
— Mas tem que ser uma volta segura, que não traga risco para ninguém — destaca.
Com descentralização da boemia, a pandemia pode ser o fim da Cidade Baixa?
Por pelo menos duas décadas, a Cidade Baixa foi referência na diversão em Porto Alegre. Com a abertura de lugares como a galeria Nova Olaria e o Bar Opinião, acolheu um público que migrou do Bom Fim, palco de reivindicações de sossego por parte dos moradores.
Mas, nos últimos anos, tem havido uma descentralização da boemia, em direção a lugares como Quarto Distrito, Centro Histórico e, novamente, Bom Fim. Busca por segurança e pelas novidades que esses bairros começaram a ofertar figuram entre os principais motivos.
Comerciantes da famigerada "CB" sentiram no bolso a perda de público.
— Essa decaída no movimento foi muito forte, especialmente, no ano passado. Tinha dias que os donos de bares se encontravam na calçada, a espera dos clientes — destaca Natália Lescano, do Cósmica.
Sócio do Dirty Old Man, Leônidas Rübenich destaca a concorrência especialmente com os estabelecimentos com pátio aberto do Quarto Distrito no verão — que podem voltar a levar vantagem por essa característica na volta da pandemia. Aliado a isso, ainda há o preço dos aluguéis na Cidade Baixa, que ficaram "caríssimos", segundo ele. Acredita que a pandemia pode ser a "gota d'água" para alguns estabelecimentos.
Presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-RS), Maria Fernanda Tartoni é mais esperançosa. Ela não acredita que a Cidade Baixa possa viver uma descaracterização pós-pandemia.
— O que eu vejo é que os empresários estão bastante empenhados em manter o seus negócios, não os vejo num caminho de sair dali. A tendência de abertura de novos polos e descentralização existe, mas a boemia segue sendo uma característica da Cidade Baixa e não deve perder a força em razão da pandemia.
Eli Stürmer, o diretor da Associação de Comerciantes da Cidade Baixa, acredita que até pode demorar, mas novos negócios abrirão nos pontos entregues:
— Vai demorar um pouco, porque está todo mundo avaliando o que vai acontecer. Mas a Cidade Baixa ainda é o point, com certeza os pontos vão ser retomados depois.