Enquanto, com a ponta dos dedos, manipula a massa de um craquelin (pronuncia-se craquelã, e lembra um biscoito amanteigado), na cozinha do Firma, bar no Centro Histórico, o chef Ricardo Dornelles, 26 anos, relata sem constrangimento seus hábitos alimentares no apartamento em que vive sozinho na Rua Coronel Fernando Machado, a poucas quadras dali:
– Todo mundo acha que chef deve cozinhar em casa, mas eu só como pão com requeijão. Não tem nada na minha geladeira. Cozinhar para si é muito ruim – conta um dos sócios do estabelecimento localizado na Rua Coronel Genuíno.
A sofisticação que falta na cozinha de casa sobrou na final do Bocuse d'Or, uma das competições gastronômicas mais importantes do mundo, realizada no dia 27 de outubro, em São Paulo. Vencedor da etapa nacional, ele irá representar o Brasil na seletiva americana, no México, no ano que vem. Caso fique entre os melhores, pode ir a Lyon, na França, participar da grande final, em 2021 – desde 1987, quando a competição bienal foi criada, nenhum latino-americano esteve entre os três melhores.
Na disputa pela vaga brasileira, Ricardo teve de cozinhar para dez chefs renomados, incluindo nomes como Jefferson Rueda – proprietário do paulistano A Casa do Porco – e Luiz Filipe Souza – cujo restaurante, Evvai, detém uma estrela Michelin. A avaliação levou em consideração, além do sabor, apresentação e originalidade dos pratos, itens como organização e domínio de técnicas.
O sabor da vitória de Ricardo teve tempero gaúcho, com receitas e ingredientes da culinária regional. Natural de Porto Alegre, resolveu homenagear em suas preparações velhas conhecidas de quem vive na Capital. As tipuanas da Rua Gonçalo de Carvalho, a "mais bonita do mundo", foram a principal inspiração para as versões requintadas de polenta brustolada e de peixe com purê de ervilhas (ambos acompanhados de preparos com moranga cabotiá) que o levaram à próxima etapa da competição.
Além de, em um dos pratos, usar um creme de erva-mate para destacar a coloração verde, que remetia às folhas das árvores, apresentou as receitas em uma superfície de madeira cujo formato lembrava uma árvore.
Tudo teve de ser preparado em 3h30min, mas o trabalho de Ricardo nos pratos começou bem antes. Segundo colocado nessa mesma etapa na edição anterior do Bocuse d'Or, estava determinado a não bater na trave uma segunda vez. Assim que foi informado sobre as diretrizes da prova, passou 30 dias numa cozinha emprestada por um amigo, elaborando e refazendo as receitas pensadas para a eliminatória.
– Na hora não fiquei feliz com o que entreguei, porque algumas coisas deram errado, e tive de improvisar. Mas eu sentia que era o mais preparado – conta o chef, que, na final, deixou para trás outros três competidores.
Disputas gastronômicas fazem parte de sua carreira, iniciada aos 16 anos, em uma famosa rede de comida australiana – onde começou substituindo um funcionário que havia faltado ao trabalho. Além de ter já participado de outras duas como concorrente, treinou uma equipe de competições do Senac entre 2015 e 2018. Garante, porém, que não é movido pela competitividade. A "obrigação" de estudar e aprender nova técnicas rapidamente, segundo diz, é o principal ganho desse tipo de torneio – procedimentos que hoje utiliza em seu bar, como a preparação do craquelin, foram aprimorados nesses períodos.
– É um método de evoluir rápido, porque a competição exige habilidade ao extremo. É um desafio pessoal – diz.
Meta é ser destaque nacional
Apesar do começo precoce na cozinha, o negócio próprio veio apenas neste ano. Com outros dois sócios, abriu o Firma, na fronteira entre o Centro e a Cidade Baixa.
O cardápio, enxuto, foi elaborado a várias mãos. A principal marca é a associação de pratos internacionais com ingredientes locais. O bao bun (pão chinês cozido no vapor, tradicionalmente recheado com barriga de porco), por exemplo, leva costela bovina cozida lentamente.
No nhoque alla romana (preparado com farinha de sêmola), a batata foi substituída pela moranga cabotiá, enquanto a massa da tradicional bomba de chocolate recebe um toque de erva-mate – como resultado, o doce fica com coloração verde. Os drinks autorais fazem referência ao nome do bar: Meu Patrão, Férias da Firma e Workaholic são algumas das opções.
Inaugurado em maio, o local combina cozinha de chef a preços acessíveis – boa parte dos pratos custa em torno de R$ 20 – com um ambiente despojado e minimalista – a decoração é simples, em preto e branco. Há poucas mesas, e os proprietários estimulam o uso da calçada pelos clientes.
Vizinho do local, Ricardo bate ponto no Firma diariamente. Mas opção pelo ponto central, cercado de bares e restaurantes bem menos gourmet – fica quase ao lado do M&M, xis famoso por atrair o público alternativo e vegano/vegetariano –, não teve a ver com a proximidade de casa. A possibilidade de participar da recuperação do coração da cidade, por anos evitado pelos empreendedores, foi o principal atrativo para o jovem chef, que agora mira mais longe: quer tornar-se referência em boa gastronomia no sul do Brasil.
– A gente confia muito no futuro do Centro Histórico, e acha que muita coisa legal vai vir para cá. Queremos empreender mais, em mais lugares que façam sentido. No sul temos bons chefs, mas ainda não temos um restaurante que faça frente aos de São Paulo. Alguém tem que levantar essa bandeira – sorri.
O Bocuse D'Or
Foi idealizado pelo famoso chef francês Paul Bocuse (falecido no ano passado) para ser uma espécie de "olimpíada gastronômica".
A ideia era reunir 24 jovens chefs de todo o mundo – os talentos mais promissores de sua geração e de seu país de origem –, para preparar em frente ao público um menu elaborado que seria avaliado pelos mais prestigiosos chefs do planeta.
Desde 2005, são realizadas seletivas continentais para chegar aos melhores, que disputam a final em Lyon, na França. A competição, realizada a cada dois anos, é considerada um dos eventos gastronômicos mais importantes que existem.