Quando se fala em padaria, pães expostos em um balcão de vidro ou embalados em saco plástico são provavelmente a primeira imagem que vem à mente de quem vive em Porto Alegre. Mas moradores da região central da cidade já experimentam outra realidade na hora de preparar o café da manhã.
Em bairros como Centro, Cidade Baixa, Bom Fim, Moinhos de Vento, Rio Branco, Auxiliadora, Higienópolis e Bela Vista, multiplicam-se o número de versões gourmet, dedicadas exclusivamente à fabricação de diferentes tipos de pães, boa parte produzidos de modo artesanal e em pequena escala.
Somente nos bairros citados, a reportagem contou mais de uma dúzia de padarias nesse estilo, a maioria inaugurada nos últimos quatro anos. Algumas podem, inclusive, confundir quem passa na frente, por levarem fachadas discretas ou lembrarem um café. Outras sequer existem fisicamente, funcionando como clubes de assinaturas de pães sob encomenda.
Em comum, vendem, além de pães, a ideia de que é possível consumir um produto de qualidade superior por um preço semelhante ao praticado pelo supermercado. Muitas exaltam a fermentação natural — mais lenta, o que torna o alimento de fácil digestão —, e outras inspiram-se na confeitaria internacional, e adotam nomes em francês ou inglês. A maioria parece passar incólume a qualquer tipo de crise econômica, vendendo quase tudo o que produzem diariamente.
— É um nicho que vai desenvolver ainda mais, porque o pão das padarias e supermercados em Porto Alegre, em geral, não é agradável. Em plena crise, há espaço para esse tipo de coisa, e não é só porque as pessoas precisam comer. Tem a ver com um estilo de vida que começaram a ter e não querem abrir mão — avalia a professora de Antropologia da Alimentação da UFRGS Maria Eunice Maciel.
A pesquisadora também chama as padarias gourmet de "boutique de pães". Além de estarem localizadas em regiões de maior poder aquisitivo, o pão vendido nesses locais pode custar caro — nos lugares onde a venda é por unidade, há opções entre R$ 9 e R$ 20. Se, por um lado, oferecem um ambiente mais moderno, de certa forma, aproximam-se do passado, quando o dono da padaria era o próprio padeiro.
Mais do que vender produtos diferenciados, no entanto, destaca que todas se apresentam como "espaços de sociabilidade". Ou seja, não se resumem a um lugar que comercializa pão. Várias também funcionam como cafés, e quase todas proporcionam uma relação mais próxima entre o consumidor e o produtor — em alguns desses espaços, há cursos de fabricação de pães e fermentação artesanal.
— Às vezes nós já abrimos a loja com fila. As pessoas gostam de chegar aqui, ficar, conversar, tirar foto da prateleira. Querem ser ouvidas e acolhidas — conta Amanda Sparemberger, sócia da Levain Club.
Conheça algumas padarias gourmets da Capital
Alban Rossollin: autêntica baguete francesa no Auxiliadora
É recomendável estar com o passaporte em dia antes de cruzar a porta do número 232 da Rua Coronel Bordini, no bairro Auxiliadora. Dali para dentro, segundo o proprietário, é território francês.
— Quero que pareça que as pessoas viajaram para lá. Aqui vem muita gente que tem uma ligação com a França ou gosta da cultura... Outros vêm para ver se eu realmente sou francês — sorri o chef Alban Rossollin.
Nascido na colônia francesa do Thaiti e criado em Marseille, no sul da França, ele faz questão de imprimir as referências da região em cada detalhe de sua boulangerie (pronuncia-se bulangerrí e quer dizer padaria, em francês), inaugurada em 2016.
O corredor lateral que conduz aos fundos, onde ficam algumas mesas, tornou-se a Avenue du Prado. As paredes receberam pintura com cal, à moda provençal, e o entorno da porta de acesso foi pintado de branco, a exemplo das casas da região.
Outra parte da cultura francesa pode ser saboreada pelos frequentadores, a maioria moradores e trabalhadores de prédios do entorno. São as baguetes, croissants, cannelés (bolinho crocante por fora e macio por dentro), quiches e tartes produzidas pelo próprio Alban.
Chef de formação e ex-velejador profissional, ele mudou-se para Porto Alegre em 2014. Conheceu a cidade anos antes através da esposa, a porto-alegrense Letícia Loeff, que também é sua sócia. Ao chegar, impressionou-se com a escassez de opções de lugares para comprar e consumir pães como em seu país — na França, a baguete é coisa tão séria que há regras para o preparo, e um concurso anual cujo vencedor ganha a honra de ser o fornecedor oficial da presidência naquele ano.
O ponto na Bordini atendeu às expectativas para o negócio idealizado após a primeira visita à Capital: um lugar aconchegante, que lembrasse uma casa. Logo tornou-se a segunda casa de Alban, que vive na Rua Casemiro de Abreu, mas passa tanto tempo no trabalho que levou um colchão para uma pequena sala do segundo piso, onde cochila ao longo do dia.
Ele chega ao local às 2h30min para preparar a massa das baguetes. Embora pareça simples, a massa feita com farinha, água, sal e fermento biológico precisa de longos descansos para chegar à textura ideal, com uma casca levemente caramelizada e o interior macio. Entusiasta da produção artesanal, não se incomoda com a rotina exaustiva nem tenta compensar no preço. Assim como ocorre na França, estipulou um valor fixo pelo pão comprido, que pesa em torno de 250g: R$ 9.
— É uma coisa que tem que ser barata para que as pessoas possam comer todos os dias. E, como é fresco, às vezes acaba. Isso ainda temos de explicar para as pessoas, porque o gaúcho não gosta de ser frustrado — conta.
Levain Club: fermentação natural e ambiente descolado
Melhor pedir para sua mãe sentar antes de aparecer em casa com um pão da Levain Club. No negócio de Leandro Harter e Amanda Sparemberger, o maior clássico de padarias gaúchas não consta no cardápio. Lá não tem cacetinho.
A falta do pãozinho tradicional está longe de ser a única diferença entre a loja na Avenida Dom Pedro II e uma padaria qualquer. A começar pela origem do negócio. Criada em 2016, a Levain (pronuncia-se levãn) começou como um clube de assinatura de pães de fermentação longa — são, em média, 24 horas — à base de levain, fermento que dá nome à marca. Os pães, de cerca de 500g, eram entregues uma vez por semana na casa dos assinantes.
Diante da boa aceitação da clientela, que começou a demandar o produto em outros dias, surgiu a ideia de estabelecer uma loja física. O ponto na Dom Pedro II foi inaugurado em 2017. Pôs fim ao clube — que deve retornar em 2020 —, mas abriu outras possibilidades. Com os conhecimentos de Amanda na produção de doces, área em que atuava antes de fazer pães, ampliaram a gama de produtos, funcionando também como café.
O carro-chefe, no entanto, segue sendo a padaria de estilo despojado, onde os pães são acomodados em uma estante junto à entrada, para que o cliente possa interagir, tocando — no pacote, é claro —, olhando e, por fim, escolhendo aquele que mais lhe aprouver. Na última prateleira, um intrigante violão pode transformar-se, literalmente e a qualquer momento, em ganha-pão. Quem toca uma música no instrumento, leva uma baguete grátis para casa.
O cardápio conta com, além das baguetes, apenas três sabores fixos: o Da Casa, em estilo americano — mais ácido, segundo Leandro —, o Da Vovó, que lembra um pão caseiro, e o Multigrãos Integral. Os que levam outros ingredientes — como bacon, ervas, abóbora ou brie com damasco — são sazonais, substituídos a cada dois meses por outras criações do padeiro, que deixou um trabalho na área de marketing para dedicar-se integralmente à produção de pães.
— Aqui vem muitas pessoas que viajaram e conheceram outros tipos de pão, mas também tem uma onda de comer saudável, conhecer o que consome. Tem muita gente querendo produzir seu próprio pão em casa — conta Leandro, que também dá cursos de fermentação natural na padaria.
Cumbuca: o bistrô que virou padaria
Conhecido no bairro Bom Fim, onde funcionava desde 2011, o Cumbuca, bistrô de Alexandre Barboza, esteve prestes a fechar as portas em 2015. Com o movimento mais fraco do que nos primeiros anos, o proprietário buscava alternativas para atrair o público quando surgiu a ideia de utilizar os conhecimentos de um ex-funcionário para produzir pão.
Começou no almoço, com poucas opções. O produto agradou e logo resolveu colocar cestos em uma pequena mesa no pátio em frente ao bistrô, à tardinha. No primeiro dia, vendeu toda a fornada em menos de uma hora.
— No outro dia, coloquei duas mesas. Um pouco depois, já eram quatro, seis, e vendia tudo — recorda Alexandre, que foi a São Paulo fazer cursos de fermentação natural.
Em 2016, o bistrô que vendia pão virou oficialmente padaria que vende almoço no fim de 2016. Foi quando o proprietário alugou a parte de cima do imóvel e fez as reformas necessárias para adaptar a cozinha à nova realidade.
A Cumbuca, agora padaria artesanal, caiu nas graças da vizinhança, que também costuma lotar as mesas do local para tomar café, às vezes acompanhado de um doce. O número de funcionários triplicou, e o cozinheiro e proprietário virou o padeiro oficial da casa onde, segundo ele, só não se produz o que já vem embalado.
Para leve decepção de Alexandre, fã de fermentação natural — que em geral resulta em pães mais ácidos e cascudos que os de fermentação biológica —, os queridinhos da clientela são os mais tradicionais, como o francês (à moda da casa, feito com levain), o pão d'água e a baguete. Ainda assim, sempre oferece opções "diferentonas", como o rústico com nozes.
Depois de uma pausa, voltou com opções de almoços servidos na cumbuca, nome que batiza o negócio. Foi surpreendido pela renovação do público, quase todo composto de moradores do entorno.
— O Bom Fim é especial, tende a abraçar o que gosta. Fomos acolhidos. Tem gente que não vinha aqui quando era restaurante e virou cliente da padaria. O pão mudou minha vida — diz.
Barbarella Bakery: pão artesanal antes de ser legal
O termo fermentação natural dizia pouco ou nada para a maioria dos porto-alegrenses quando, em 2002, Ana Zita Klein abriu as portas da Barbarella Bakery na Rua Dinarte Ribeiro. Para a engenheira de alimentos, o levain já significava muito. Graças ao seu estudo sobre o fermento agora na moda, no fim dos anos 1990, ela ganhou reconhecimento entre os pares. Resolveu aplicar o que havia aprendido no próprio negócio.
— Eu brinco que meu estágio foi na Barbarella. Ela é bakery porque é cosmopolita, com receitas de vários lugares. E é também um resgate dos bons pães, das boas padarias que existiam nas décadas de 1960 e 1970. Fui aprimorando — conta Ana, que pesquisou o levain em seu trabalho de conclusão da faculdade.
A novidade logo atraiu a atenção da vizinhança e dos meios de comunicação — ostenta nas paredes reconhecimentos de pelo menos três publicações diferentes. Pães americanos, como o bagel, franceses, como a baguete, ou uma versão sofisticada do bom e velho pão de aipim estão entre as múltiplas opções da casa, que pouco mudaram com o passar dos anos.
A padaria com opções além do tradicional chamou a atenção não só pelo cardápio, mas pelo lugar em que foi instalada, um sobrado amplo no Moinhos de Vento, cujas paredes receberam a ilustração da heroína francesa que dá nome ao local feita pelo grafiteiro Leopoldo Kunrath. Meia dúzia de mesas na calçada e um extenso horário de funcionamento (abre todos os dias do ano até as 22h) convidavam os clientes a um happy hour — no cardápio há opções diversas, de saladas a sanduíches, todas acompanhadas de algum tipo de pão.
Aos poucos, Ana viu a concorrência surgir — somente nas imediações há pelo menos dois outros estabelecimentos com perfil semelhante — e o modo de consumo se modificar. Com a crise, a ocupação das meses diminuiu, mas a padaria cresceu tanto que começou a fabricar opções que podem ser finalizadas em casa — a ideia é vendê-las para supermercados em breve. Se a fermentação natural fez sua fama, vê na simplicidade dos pães tradicionais uma das vias mais sustentáveis de seu negócio.
— O levain abriu as portas, mas o francês está entre os que mais vende... É um pão afetivo — diz.