Não adiantou implorar. Em 2006, o condomínio em que Selene Telles Bueno trabalhava como zeladora anunciou que dispensaria ela e o marido tão logo a lei permitisse. Ou seja, quando se encerrasse a licença maternidade pelo nascimento de Manuela, sua filha. Começa assim, com M de Manuela, a inusitada história do M&M Lanches, no Centro Histórico, em Porto Alegre. O que era um acanhado trailer de xis e cachorro-quente, hoje são três lancherias com um diferencial: oferece nada menos do que 21 sabores de hambúrgueres veganos.
Sem emprego ou moradia e com um bebê de colo, Selene e o hoje ex-marido foram morar por improrrogáveis seis meses em uma casa ociosa de um parente, em frente à Praça Marquesa de Sevigne, onde a Rua Gen Lima e Silva se transforma em Fernando Machado. Depois, o imóvel seria demolido para a venda do terreno. Para tirar um ganha-pão sem precisar deixar Manuela em uma creche, Selene pegou os R$ 5 mil da rescisão trabalhista e investiu na reforma de um trailer e em um curso de Boas Práticas em Serviços de Alimentação do Senac-RS. Abriu o trailer em plena praça, então nada aprazível:
– Ninguém passava por aqui nem para ir ao Zaffari da Fernando Machado. Essa praça só servia para ser assaltado.
Os sabores veganos que fizeram Selene famosa na região nasceram por causa de um cliente específico, um estudante da vizinhança que andava com um livro de práticas veganas debaixo do braço "quando ninguém falava no assunto". Primeiro, ele convenceu Selene a comprar salsichas de soja para vender cachorros-quentes a ele. Depois, a se arriscar nos hambúrgueres diferentões. No boca a boca, virou "o xis vegano da CB", embora, geograficamente, ele fique além dos limites da Cidade Baixa.
– Diversos lugares estão percebendo que tem clientela para lanches sem carne. Tentam fazer, mas percebem que não é fácil acertar. Se usar a mesma chapa da carne, por exemplo, o bife fica duro que é um pau. A temperatura precisa ser menor. Esse tipo de coisa se aprende estudando, testando os sabores, os ingredientes que funcionam e não funcionam – ensina Selene.
Assim, chegou a opções que vão dos populares moranga, aipim e batata-doce aos exóticos como feijão azuki, cevada e – uma das últimas invenções – hambúrguer de ora-pro-nóbis, planta queridinha de dietas veganas por ser rica em proteína. O outro M do M&M Lanches homenageia a segunda filha, Mariana, quando Selene regularizou o trailer junto à prefeitura e ele ganhou um nome. A condição para obter um alvará foi que ela colocasse o trailer para o lado de dentro do imóvel alugado, onde está até hoje.
Com a popularidade do xis, vendido a R$ 17 ou R$ 18, a praça se tornou um ponto de encontro, iluminado e movimentado até meia-noite. O proprietário do imóvel acabou desistindo de vendê-lo. Se por um lado o movimento trouxe segurança, por outro fez com que alguns vizinhos incomodados com o barulho movessem uma ação contra o xis em praça pública. Para se defender na Justiça, Selene bateu de porta em porta nos prédios do entorno e reuniu centenas de assinaturas em sua defesa. Deu certo.
– A praça é um espaço público. Se ninguém usar, é pior para todo mundo. Mas vai explicar isso para alguém que ficava jogando vidros de esmalte nas pessoas da praça? Recebi muito carinho das pessoas aqui da volta e aprendi que não dá para se intimidar com a má vontade de um e outro – conta.
Com o tempo, também desenvolveu suas teorias sobre clientes carnívoros e vegetarianos:
– Nunca deixei de vender hambúrguer de carne, eles só têm menos saída. Mas pode apostar: se um cliente reclama que o lanche está demorando, é o que pediu o xis de carne. É um tipo de cliente mais aflito e mal-humorado. Os vegetarianos são uns amores, pessoas bem mais tranquilas.
Em agosto, Selene abriu uma unidade do M&M Lanches em frente à Praça Garibaldi, no limite da Avenida Venâncio Aires, também assolada pela escuridão e falta de movimento à noite. O novo ponto é a concretização do sonho de abrir "um restaurante de verdade": com mesinhas, cadeiras, garçom e servindo pratos de almoço. O PF vegano sai a R$ 14.
Nesse meio tempo, Selene patenteou a marca "M&M Lanches" e pretende fazer o mesmo com algumas receitas, para eventualmente vender os hambúrgueres em versões congeladas a supermercados. Ela também permitiu que o filho mais velho, do primeiro casamento, abrisse uma unidade na José do Patrocínio usando o nome "M&M 2", mas Selene prefere não se envolver no dia a dia dessa unidade. O trailer segue em atividade mesmo com a aposta alta no novo ponto.
– Passei os últimos 13 anos recusando ofertas de lancherias para vender as minhas receitas. Vamos ver, agora, como me saio no restaurante da Garibaldi. Peguei o ponto praticamente morto, mas não seria a primeira vez que o meu xis ressuscita uma praça.